Os presidentes Ricardo Lagos e Michelle Bachelet apoiaram Gabriel Boric no segundo turno das eleições no Chile, eles permitiram que a social-democracia fosse vilipendiada? Eles não tinham alternativa; o candidato derrotado, José Antonio Kast, representava valores contrários aos defendidos pela coligação identificada como “Concertación”. O primeiro ato desse grupo foi promover o Não no plebiscito de 5 de outubro de 1988, que encerrou o governo de Augusto Pinochet. Essa coalizão é formada pelos partidos Socialista, Democracia Cristã e Pela Democracia, identificados com a centro-esquerda.
Patricio Alwyn e Eduardo Frei, ambos do DC, governaram de 1990 a 2000; Ricardo Lagos, de março de 2000 a 2006, enquanto Michelle Bachelet o fez em 2006/10 e 2014/18. Sebastián Piñera, centro-direita, foi o sucessor de Bachelet duas vezes, vencendo as eleições de 2013 e 2017.
O presidente Lagos, ao contrário de Bachelet, foi à imprensa para explicar seu apoio a Gabriel Boric, que durante sua carreira como militante universitário foi um crítico feroz das políticas da “Concertación”, chamando-as de “neoliberais” para indicar sua continuidade com o modelo econômico de Pinochet em acordo com a terminologia da extrema esquerda. O presidente eleito liderou as revoltas estudantis de 2011 e participou da violência de 2019, que causou 34 mortes transformadas em mártires, forçando o acordo de 15 de novembro para convocar a Convenção Constituinte. A animosidade contra a “Concertación” também se manifestou com o veto de inclusão nas primárias convocadas pela Frente Ampla e pelo Partido Comunista.
O Presidente Lagos reconhece que se fez uma caricatura “do que aconteceu nos últimos trinta anos porque entre 1990 e 2010 foram anos de taxas de crescimento acelerado onde conseguimos reduzir a pobreza e a desigualdade”, acrescentando que “entre 2010 e 2020 perdeu o ritmo de crescimento e nem a pobreza nem a desigualdade poderiam ser reduzidas às taxas de antes”.
Nesse texto, ele defende que as diferenças à esquerda são uma luta geracional onde os jovens acreditam que o mundo nasce com eles e acrescenta: “Sempre tive muito orgulho de ser social-democrata porque é o caminho para fazer mudanças reais , aqueles que eles suportam.”
A abordagem geracional parece ingênua diante do peso ideológico do movimento que deslocou a social-democracia do quadro político no Chile. O próprio Lagos reconhece que as tentativas de modificação do sistema institucional implicam em risco para os fundamentos do sistema democrático e que a violência permitiu aos dirigentes pensar que “com esta revolta se poderia chegar ao céu“. A eleição do candidato do Partido Comunista à presidência da Convenção e o teor das discussões apontam para mudanças institucionais que colocarão à prova a estabilidade do país. Soma-se a isso a atitude complacente em relação ao terrorismo na Araucanía, que visa dividir o país. Nesses setores, diferentemente da social-democracia, o fim justifica os meios.
Em um contexto de polarização ideológica, é difícil entender por que Lagos e Bachelet adiaram sua intervenção até o último momento sem deixar explícito no primeiro turno seu apoio à candidata da “Concertación” Yasna Provoste, que prevaleceu nas eleições internas abertas ao PS e PR e que também era a única mulher entre os candidatos à presidência.
Tanto Ricardo Lagos quanto Michelle Bachelet permitiram que as realizações da “Concertación” fossem vilipendiadas, desde a vitória do Não até trinta anos de progresso interrompido. Os vencedores atingiram a social-democracia mais do que a direita porque sabiam que eram os únicos votos com os quais poderiam triunfar, abrindo as portas para um futuro incerto onde só se pode esperar a inspiração divina ou o conselho do Velho Vizcacha (Mujica) para que o país evite a loucura revolucionária e volte ao caminho do progresso.
Interrompido ou ininterrupto?
*Por Felipe Frydman – Diplomata.
*Este texto não reflete, necessariamente, a opinião da Perfil Brasil.
*Texto publicado originalmente no site Perfil Argentina.