ANÁLISE

Desta vez o Brasil pode e deve fazer certo o combate à fome

*Por Elisabetta Recine

É possível reduzir os indicadores de pobreza e fome, mas se não mudarmos os determinantes estruturais , os resultados serão desfeitos.
O presidente Luiz Inácio Lula da Silva, durante Cerimônia de Lançamento do Brasil sem Fome. (Crédito: Ricardo Stuckert/ PR)

A crise global da fome está em estado de alerta em todas as frentes, exacerbada pelas consequências da pandemia da Covid-19, pelas alterações climáticas e pela guerra na Ucrânia. As Nações Unidas confirmam que o progresso global em matéria de fome está letalmente inverso – com a Organização para a Alimentação e Agricultura registrando os piores números de insegurança alimentar em oito anos, e o objetivo global de acabar com a fome até 2030 parecendo estar fora de alcance.

Publicidade

Os preços dos alimentos estão estagnados em máximos históricos, e os países de baixa renda enfrentam uma crise de dívida cada vez mais intensa. A Iniciativa dos Cereais do Mar Negro, que deveria garantir que as exportações de cereais da Ucrânia pudessem partir dos portos do país no Mar Negro, entrou em colapso, eliminando assim uma “corda salva-vidas” para os países pobres importadores de alimentos. As cúpulas internacionais vieram e foram com uma escassez de ideias ou ações sobre a fome.

O Brasil, uma superpotência agrícola e o maior exportador líquido de alimentos do mundo, também viu a fome e a pobreza aumentarem nos últimos anos, depois de a administração de Jair Bolsonaro ter desmantelado as políticas sociais, em meio a uma recessão econômica. Infelizmente, quase três em cada cinco famílias nem sempre têm o suficiente para comer, enquanto 33 milhões de pessoas (cerca de 15 por cento da população) passam fome.

Mas agora o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que tomou posse em janeiro, se prontificou. “Sou obcecado em combater a fome… Quero que os trabalhadores possam mais uma vez fazer três refeições por dia de forma digna e fornecer alimentação de qualidade para seus filhos”, disse ele ao lançar o plano Brasil Sem Fome no final de agosto.

Indiscutivelmente o conjunto de políticas anti-fome mais abrangente que o mundo já viu, este plano ousado abre uma nova frente na guerra global contra a fome, precisamente quando a esperança começava a se esvair.

Publicidade

O Brasil Sem Fome – assessorado pelo Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (CONSEA), órgão que presido – tem objetivos abrangentes, mas simples. O objetivo é eliminar o Brasil do Mapa da Fome da ONU até 2030 e garantir que mais de 95% das famílias tenham segurança alimentar até o final da década. Visa também melhorar o acesso a dietas saudáveis ​​e iniciar a transição para uma agricultura sustentável.

Serão aproveitados cerca de 32 programas e políticas para atingir essas metas – desde transferências monetárias para famílias pobres até a compra de merendas escolares saudáveis ​​produzidas por pequenos agricultores; desde pagamentos de transição agroecológica ao apoio às mulheres negras e rurais, ao reforço da proteção da Amazônia. Tudo isto estará no âmbito de um aparato concebido especificamente para trazer as vozes das pessoas marginalizadas e com insegurança alimentar para o processo de tomada de decisão.

Se este plano parece familiar, é porque é uma reformulação das políticas Fome Zero introduzidas pela primeira administração de Lula em 2003 – mas com uma dose extra de ambição na governação democrática e na produção sustentável de alimentos, atingindo os grupos mais marginalizados.

Publicidade

Essa política original reduziu para metade a insegurança alimentar no Brasil e retirou o país do Mapa da Fome da ONU – tornando a nação um exemplo do desenvolvimento internacional. Ao vincular as transferências monetárias à frequência escolar e aos cuidados de saúde, ao alavancar as compras governamentais para apoiar os pequenos agricultores e, o que é crucial, ao construir órgãos de tomada de decisão inclusivos, o governo Lula teve sucesso onde muitos falharam.

Mas a subsequente demolição do aparelho anti-fome do Brasil foi igualmente dramática. Depois de chegar ao poder em 2019, o governo de extrema direita de Bolsonaro impôs uma austeridade opressiva e desmantelou as bases das políticas de segurança alimentar e nutricional. Os brasileiros ficaram sem rede de segurança, enquanto o país era atingido pela pandemia de Covid.

Isto nos ensina uma lição fundamental: é possível reduzir significativamente os indicadores de pobreza e fome, mas se não mudarmos os determinantes estruturais das desigualdades, os resultados serão fácil e rapidamente desfeitos. Desta vez, o legado deve ser mais duradouro e profundo.

Publicidade

*Elisabetta Recine é presidente do CONSEA.

Assine nossa newsletter

Cadastre-se para receber grátis o Menu Executivo Perfil Brasil, com todo conteúdo, análises e a cobertura mais completa.

Grátis em sua caixa de entrada. Pode cancelar quando quiser.