Hoje não tem marmelada e o picadeiro está vazio. Celebrado anualmente no dia 27 de março, o Dia Nacional do Circo não poderá ser festejado como queriam os palhaços: gerando risadas de plateias aglomeradas e recebendo intensos aplausos como retribuição. A pandemia de covid-19 mudou completamente o cotidiano de quase 10 mil brasileiros que se sustentavam dos rendimentos obtidos a partir de suas apresentações debaixo da lona.
“Já vivi outros momentos complicados, pois tenho uma carreira de mais de 30 anos. Mas esse é mais desafiador porque está cercado de muita incerteza. Há uma insegurança, pois precisamos nos reinventar e não sabemos se vamos acertar”, diz Jonathan Cericola, que dá vida ao palhaço Pão de Ló, personagem criado originalmente por seu bisavô.
Cericola começou na atividade aos 7 anos de idade e representa a quinta geração de artistas circenses da família responsável pelo Circo Teatro Saltimbanco, que possui uma lona fixa em Itaguaí (RJ) e outra itinerante que costumava rodar por municípios do estado do Rio de Janeiro.
A pandemia chegou no Brasil em março do ano passado. Jonathan Cericola conta que os desdobramentos da rápida propagação da doença deixou a todos espantados e sem saber o que fazer no primeiro momento. A partir do segundo mês de paralisação das atividades, a necessidade de se reinventar foi ficando clara para aqueles que dependem do circo. Um desafio para muitas pessoas que não se viam, de uma hora pra outra, abandonando suas atividades como palhaços, malabaristas, acrobatas, contorcionistas, equilibristas, ilusionistas e outros artistas.
Alguns se aventuraram em novos negócios, como a venda de alimentos e o transporte de passageiros. Outras apostaram em levar o picadeiro para a internet, como Jonathan. Fechado desde março do ano passado, o Circo Teatro Saltimbanco chegou a retomar apresentações com público reduzido no início do ano. Não durou muito: um novo agravamento da curva de contágio forçou novamente a interrupção. Para lidar com a situação, o intérprete do Palhaço Pão de Ló tem adaptado apresentações para as redes sociais, usando canais no YouTube e no Instagram. Embora avalie que as ferramentas virtuais ofereçam algumas possibilidades interessantes, lamenta a falta de calor humano.
“No nosso trabalho, nós interpretamos o público. Antes do espetáculo, eu não sei exatamente qual esquete eu vou apresentar. Isso depende do comportamento da plateia. A gente observa alguns sinais para selecionar a melhor esquete dentro do nosso repertório”, diz.
“A troca é fundamental para nos orientar e também para nos dar um retorno. Através dela, sabemos se o público está gostando ou se precisamos mudar a apresentação de rumo. E, na internet, não tem isso. Não tem o riso, o aplauso, aquela senhora que aperta sua mão e te agradece no fim do espetáculo. Recebemos curtidas, comentários, mas o calor humano faz falta”, acrescenta Jonathan.
O setor cultural foi um dos primeiros a sentir o impacto da pandemia. Cinemas, teatros, casas de shows, circos e outros espaços voltados para a arte ficaram impossibilitados de reunirem público. Um auxílio emergencial para garantir uma renda mínima a artistas foi aprovado no Congresso Nacional em março do ano passado. Ele foi pago pelo governo federal em nove parcelas entre abril e dezembro de 2020: nos primeiros cinco meses, o valor era de R$ 600 e, nos outros quatro, caiu para R$ 300.
Os repasses foram feitos a maiores de 18 anos sem emprego formal e com renda inferior a maio salário mínimo, que não estivessem recebendo benefício previdenciário ou assistencial e que tenha tido, no ano anterior, rendimento tributáveis abaixo de R$ 28,5 mil. Muitos artistas circenses se enquadravam nessas condições. Na semana passada, o governo federal instituiu por medida provisória um novo auxílio de quatro parcelas, com valores mais baixos, entre R$ 150 e R$ 375, e com pré-requisitos novos que reduziram o número de beneficiários.
Uma ação emergencial específica para o setor cultural também saiu do papel em junho do ano passado. Trata-se da Lei 14.070/2020, que ficou conhecida como Lei Aldir Blanc em homenagem ao compositor que faleceu devido a complicações da covid-19 logo no início da pandemia. Articulada no Congresso Nacional, ela foi aprovada com apoio de parlamentares da base do governo e da oposição.
Através dela, a União ficou responsável por repassar aos estados e municípios R$ 3 bilhões, que poderiam ser empregados de diferentes formas: renda emergencial aos artistas, subsídios para manutenção de espaços, empresas e instituições culturais, editais para realização de eventos ou para produção cultural, entre outros.
Jonathan teve acesso a recursos públicos do auxílio emergencial e também da Lei Aldir Blanc. Segundo ele, os repasses são bem inferiores aos rendimentos que o circo daria se estivesse funcionando, mas dão um desafogo. Porém, manifesta preocupação com a situação a longo prazo, sobretudo, pelas exigências do Poder Público.
“A subvenção nos coloca numa situação complexa, pois temos que oferecer uma contrapartida e temos que prestar contas. Então, os mesmos governos que te exigem a contrapartida são também os que não dão autorização para o funcionamento. Imagine um circo pobre onde está faltando comida. A família quer usar o dinheiro pra se alimentar. Mas não pode, tem que usar esse dinheiro pra comprar uma lona nova para o circo. Isso ajuda em que? Não adianta ter dinheiro na conta e não ter comida na mesa. É emergencial. Se a situação se prolongar e não for possível reabrir o circo, em algum momento, o circense vai precisar desse dinheiro para sobreviver”, avalia.
Mapeamento dos circos
O Instituto Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) chegou a divulgar estudo onde estimava que 700 mil pessoas poderiam ser beneficiadas pela Lei Aldir Blanc. No meio circense, no entanto, o acesso ao recurso foi restrito. E, entre quem teve acesso, relatos como o de Jonathan são comuns.
A Associação Brasileira de Artes, Cultura e Diversões Itinerantes (ABACDI), entidade que reúne artistas e produtores culturais que atuam em defesa de políticas públicas para a cultura, avalia que há um excesso de normas impostas pelos governos estaduais e municipais, que tinham autonomia na distribuição dos recursos e usaram a lei como se fosse uma iniciativa de fomento e não de auxílio emergencial.
“Vejo muita burocracia na prestação de contas, muita exigência absurda. Se era para ajudar, deveria ser uma doação aos artistas, nos moldes do auxílio emergencial. Mas não tem sido assim”, diz Ana Lamenha, presidente da ABACDI.
“Tem dono de circo que quando pega esse dinheiro já está endividado, com comida faltando na sua mesa e sem condições de pagar salário para sua equipe. Como que ele pega esse dinheiro e não pode resolver esses problemas imediatos? Vai ter que investir só em material para o circo? Prioridade é alimentação e o circense é gente como qualquer um”, completa.
Em meio à pandemia, associações e sindicatos de todo o país criaram um fórum permanente em prol de políticas públicas. A aliança, da qual a ABACDI faz parte, conseguiu tirar do papel uma demanda antiga dos circenses: um censo do circo.
O mapeamento foi publicado em julho do ano passado no site da Fundação Nacional de Artes (Funarte), que é vinculada ao Ministério da Cidadania. Ele lista 651 circos em todo o Brasil, responsável por garantir sustento para 9.579 pessoas. Quase 80% estão concentrados nas regiões Nordeste (271) e Sudeste (248). Foram mapeados ainda 31 circos no Norte, 31 no Centro-Oeste e 70 no Sul.
“Não são tantos circos assim. Se houver boa vontade, é possível ajudá-los”, diz Ana Lamenha.
A realidade, porém, não tem sido fácil para boa parte deles. Enquanto alguns estão enfrentando dificuldades para prestar contas de recursos da Lei Aldir Blanc, a maioria não conseguiu sequer ser incluído como beneficiário, por motivos variados. Os que conseguiram recursos, terão prazo para prestação de recursos ampliado para 31 de dezembro, segundo garantiu o secretário de Cultura, Mário Frias. O decreto deve sair na semana que vem,
“Há uma parcela significativa de trabalhadores do circo analfabetos ou semianalfabetos. E para essas pessoas, o acesso ao recurso é um desafio. A lei exige um projeto que deve ser apresentado online. E tem estados que pedem uma porção de documentos. A pessoa nem sabe ler, como ela vai fazer isso tudo?”, questiona Ana Lamenha.
Esse, entretanto, não foi o único problema que causou a restrição do número de beneficiários.”Teve município onde o prefeito simplesmente não quis pegar recursos da Lei Aldir Blanc, porque não queria ter trabalho com a prestação de contas. Outras cidades que receberam a verba não incluíram os trabalhadores do circo entre os beneficiários. É complicado porque a maioria dos circos é itinerante. Muitos estavam em cidades pequenas e pobres do interior quando a pandemia chegou. E nem sempre foram reconhecidos como cidadãos pela secretaria de assistência social desses municípios. O apoio recebido variou muito, dependendo de cada prefeitura”, acrescenta.
Atividade familiar
O uso de apresentações circenses como parte de um espetáculo que visa o entretenimento é uma prática que remete à Antiguidade. Na sociedade grega, exibições de contorcionismo. No Egito e na Índia, existem registros históricos de pinturas de malabaristas. O Império Romano foi responsável por erguer arenas onde milhares de pessoas eram recebidas para assistir corridas de cavalos, caçada de animais, lutas de gladiadores, etc.
Mas o circo moderno, da forma como conhecemos, tem origem na Inglaterra do século 18. Ele foi trazido para o Brasil por imigrantes europeus em meados do século 19 e foi pouco a pouco se popularizando.
O Dia Nacional do Circo foi instituído em 1972 e a data remete ao aniversário de Abelardo Pinto, responsável por dar vida ao palhaço Piolin, que fez muito sucesso na década de 1920 e foi homenageado pelos modernistas na Semana de Arte Moderna.
Como em boa parte do mundo, a atividade no Brasil ganhou uma dimensão familiar. O ofício de palhaço, malabarista, acrobata é ensinado de pai para filho. O circo vai assim atravessando gerações, que dele extraem o sustento para toda a família, incluindo idosos e crianças. A pandemia colocou um desafio inédito para toda essa comunidade.
“A vida de circo, muitas vezes, já é uma vida sofrida. Então os artistas não se deixam abater por pouco”, diz Ana Lamenha.
Ela avalia que o circense é, geralmente, um empreendedor formado pela própria vida. Mais do que se apresentar no picadeiro, ele aprende a administrar o comércio de pipoca e de cachorro-quente e a organizar a bilheteria. Assim, além da criatividade inerente à sua atividade artística, ele desenvolve uma versatilidade que tem sido importante durante a pandemia.
Um documentário financiado através de edital da Funarte e lançado no ano passado pela ABACDI mostra como alguns artistas estão se virando: uns vendendo brinquedos infantis e alimentos na beira do asfalto, outros trabalhando na construção civil ou como cuidador de idosos.
“Faço transporte de passageiros de uma cidade para outra de manhã e, à tarde, vendo ovos”, conta Edson Oliveira da Conceição, o palhaço Pessebe do Circo Fênix, em Jaguaribe (BA).
Mas não é fácil criar, de uma hora para outra, novos caminhos para obter renda. Sensível a esse cenário, em determinados locais, a população das próprias comunidades onde eles estão inseridos colaboraram doando cesta básicas. Algumas regiões também contam com a presença da Pastoral dos Nômades, serviço da Igreja Católica organizado para prestar assistência a ciganos e a trabalhadores de circos e parques itinerantes. Sua ação tem garantido apoio em situações consideradas mais críticas.
Coletivo artístico
Um grupo de artistas que há anos aposta no poder da organização coletiva encontrou caminhos para ajudar o maior número possível de circenses. O Circo no Beco é uma ocupação artística que ocorre há 18 anos no Beco do Aprendiz, no bairro de Pinheiros, na cidade de São Paulo. Realizando eventos que mobilizam a população, colocam em pauta discussões sobre a diversidade cultural e sobre os efeitos positivos da ocupação artística dos espaços públicos. Não se trata, portanto, de um circo tradicional com lona e picadeiro, mas de uma articulação de mais 150 artistas que encontraram na união uma fonte de renda.
Entre esses artistas está Lúcio Maia, ator que iniciou sua trajetória no teatro em 1989. Em 2007, quando se mudou para São Paulo, se sentiu abraçado pelo universo do circo. Hoje, atua como ator, diretor, palhaço, arte-educador e produtor. Ele conta que, quando a pandemia chegou ao Brasil, o coletivo estava no meio de um festival, realizado anualmente para celebrar o aniversário do Circo no Beco, que coincide com o Dia Nacional do Circo.
“Na sexta-feira, dia 13 de março, o evento lotou. Foi uma noite linda. No dia seguinte, notamos uma forte redução do público. Parecia mais um ensaio que um festival. E aí a gente foi se atentar para as notícias da pandemia. Notamos que muitos eventos estavam sendo cancelados e resolvemos seguir o fluxo. A gente não tinha ainda a completa noção do que estava acontecendo. Interrompemos o festival no dia 15. Mas tínhamos trabalhado meses para organizá-lo e ficamos muito frustrados. E aí surgiu a ideia do online”.
Do Circo no Beco, surgiu o Circo na Nuvem, que se desdobrou em novos projetos inscritos em editais públicos de fomento, incluindo a Lei Aldir Blanc. O mais recente se encerrou nessa semana: a Convenção na Nuvem. O evento, todo online, incluiu espetáculos, oficinas, workshops e rodas de conversa sobre os mais variados temas como metodologias pedagógicas do malabarismo e o potencial de transformação social do circo.
“O projeto inicial incluía compra de alguns equipamentos. Mas vimos que tinham muitos artistas passando dificuldade. Então abrimos mão dos equipamentos para contratar e envolver mais artistas. Eram 32 atrações no projeto original e, no fim, ficou com quase 50 atrações. É hora de investir em material humano”, avalia Lúcio.
Essa perspectiva também foi adotada pelos eventos já consolidados. O Festival Internacional de Circo de São Paulo (FIC) realizou sua última edição em dezembro de 2020, com um modelo híbrido, mesclando apresentações presenciais e online. “Nossa primeira preocupação foi a de, minimamente, contribuir e abraçar os profissionais e representantes da produção em circo estabelecidos, em especial, na cidade de São Paulo, sem restringir a participação de representantes de outras regiões. Como tal, aumentamos significativamente o número de atividades e de profissionais beneficiados”, informa a organização.
Segundo o site do FIC, mais de 850 artistas foram contemplados. As apresentações selecionadas, bem como os debates realizados, ainda estão acessíveis ao público. Elas ficarão disponíveis até junho num esforço para gerar reconhecimento e abrir oportunidades aos profissionais envolvidos.
Formação presencial
Se os eventos online podem oferecer novos caminhos para a capacitação, a crise da pandemia afeta iniciativas tradicionais voltadas para a formação. A Escola Nacional de Circo, vinculada à Funarte e sediada no Rio de Janeiro, está fechada desde o início da pandemia. Em dezembro do ano passado, a lona de circo foi retirada do espaço. Recentemente, a Funarte informou que as aulas dos alunos voltariam em um novo espaço, ainda não divulgado.
No início do mês, 38 artistas lançaram um abaixo-assinado online pedindo que as instalações da Escola Nacional de Circo sejam destinadas à sua função original e que as bolsas pagas aos estudantes sejam mantidas. Mais de 15 mil pessoas já assinaram. “Dita medida, que pega de surpresa toda a comunidade escolar e a classe circense, soma-se a um contexto já complexo e delicado. A falta de planejamento pedagógico e de definição de protocolos de enfrentamento à pandemia para o restabelecimento das aulas, algo que foi obrigatório em todas as instituições de ensino, revela o total desconhecimento do papel da Escola como instituição de ensino”, diz o texto.
Segundo a Funarte, a lona foi comprometida pelos ventos e chuvas em 2020, razão pela qual será trocada em meio a outras medidas de revitalização. Há tratativas em curso com circos da cidade do Rio de Janeiro para a realização de algumas das aulas práticas já nesse primeiro semestre.
“Isso ocorrerá apenas até que a nova lona da Escola Nacional de Circo seja instalada, quando então as atividades retornarão integralmente à sede da instituição. Estamos trabalhando para o retorno gradual e responsável, respeitando a grade curricular e todos os protocolos de segurança”, informou, em nota, a Funarte. A fundação também afirma que vem quitando as pendências com os bolsistas e espera colocar em breve os pagamentos em dia.
Criada em 1982, a Escola Nacional do Circo recebe jovens de todo o país, tendo formado mais de 2,5 mil profissionais e se consolidado como um espaço de excelência internacional voltado para formação circense.
Desde 2015, o Curso Técnico em Arte Circense é reconhecido pelo Ministério da Educação (MEC). A formação, que inclui quatro semestres letivos e soma um total de 2.798 horas/aula, tem sido responsável por formar novos talentos todos os anos, alguns dos quais se destacam hoje no exterior.
No documentário Dossiê Escola Nacional de Circo, produzido na marca dos 25 anos da instituição, sua importância como vetor de valorização do circense em todo o Brasil é destacada por um de seus fundadores, o produtor cultural Orlando Miranda. Ele lembra o impacto imediato que a novidade anunciada pelo Ministério da Educação criou no país.
“Qualquer circo que estivesse viajando no Brasil começou a ser visto de outra maneira. Até então, era considerado uma arte menor, que ainda não tinha tido destaque como o teatro, a dança e a ópera”, observou.
Em meio à pandemia, o tamanho do circo é novamente questionado. Mas o artista luta porque sabe que, quando tudo passar, a resposta estará na risada da criança. Ela não pode ser medida.
(Agência Brasil)