Chile e o colapso da democracia representativa

Na América Latina, a maioria da população vive no século XXI. Ela está perturbada com a pandemia e sente uma incerteza insuportável sobre seu futuro

Chile e o colapso da democracia
Protesto contra o presidente Sebastian Piñera, outubro de 2019, em Santiago, Chile (Crédito: Marcelo Hernandez/Getty Images)

Há muito afirmamos que a democracia representativa está entrando em colapso, particularmente no Chile. Alguns analistas tendem a explicar o problema pelos erros do presidente de seu país, sem levar em conta que se trata de algo mais profundo, global, típico do mundo que nasce com a terceira revolução industrial.

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É interessante notar que o assunto desta nota são as eleições chilenas. O Chile tem sido um país com uma democracia alternativa estável que funcionou bem durante décadas e aparece nos primeiros lugares em todos os estudos econômicos e sociais.

Nas pesquisas, a população que expressa sua insatisfação com o sistema aceita que está economicamente melhor do que o de muitos países da região.

Manuel Castells disse no seminário “Explosões sociais: uma visão global”, organizado pelo CEP, que “o que está acontecendo no Chile não é nada excepcional, é um fenômeno global. Não tenham medo, vocês não estão sozinhos, se afundar, afunda com o resto do mundo, porque o mundo inteiro está assim. Ou a espécie humana acorda de alguma forma, não só com respeito ao clima, mas com respeito às instituições, com respeito às aspirações de todos os jovens do mundo ou desaparecemos”.

“Os cidadãos não confiam nos seus parlamentares, nos seus governos, nos seus presidentes ou, sobretudo, nos seus partidos políticos. Eles rejeitam unanimemente todos os partidos, que não são considerados legítimos ou viáveis. Mais especificamente, pensam que a classe política se encastelou em si mesma, só falam entre si e não se preocupam com os interesses dos cidadãos exceto quando precisam vender uma opção no mercado eleitoral a cada quatro anos “, acrescentou o atual Ministro das Universidades do governo da Espanha.

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Círculo vermelho

É verdade que o círculo vermelho está fechado. Seus membros repetem o discurso do século passado, falam do que lhes interessa: governança, partidos, populismo, direita, esquerda, enquanto a maioria da população vive no século XXI. Tem problemas que não têm a ver com as lutas dos líderes autistas, mas com os seus problemas concretos. A grande maioria dos latino-americanos sofre com a pandemia, sente uma incerteza insuportável sobre seu futuro. Eles vivem em uma sociedade em que são necessários elementos tecnológicos que os conectem com o mundo e se tornem indispensáveis, como os smartphones e a Internet.

Enquanto isso, a maioria dos políticos fala de teorias inúteis, ou simplesmente tenta provar que é mais “esperto” que os seus adversários. Se insultam, se ignoram, se perseguem, correm atordoados dentro de uma porta giratória, na qual são ora perseguidores, ora perseguidos.

Esquecem do mais importante: aquilo que faz sonhar ou permite que sonhem as pessoas comuns. A chave da política contemporânea é a empatia, que os cidadãos sintam que seus líderes se identificam com seus problemas e sentimentos, que se solidarizam, que buscam soluções.

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Castells diz que uma consequência dessa situação são as explosões sociais, movimentos que não são articulados, nem tentam mudar as instituições como faziam aqueles do século passado. Eles são nada mais e nada menos do que explosões provocadas por pessoas que não aguentam mais. Por quê? Por qualquer coisa.

Em alguns lugares, ocorrem com violência limitada, em outros com verdadeira selvageria. É importante entender por que as pessoas não aguentam mais em realidades tão diversas, por que tomam o Capitólio, queimam a Colômbia, se mobilizam no Chile, Equador.

Continua Castells: “a violência não vem de provocadores profissionais. Existem infiltrados e existem vândalos, mas não é essencial. O essencial é que segmentos de um movimento muito mais amplo, democrático, pacífico, etc. não aguentam mais e se dispõem a enfrentar a polícia”.

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“Não pense que isso vai passar. Não pensem que se fecharem os olhos, este é um pesadelo que desaparece e pronto. Não vai passar. Há causas muito profundas que vocês devem encontrar, e para as quais vocês, a sociedade chilena, devem encontrar as soluções. Mas não tentem ignorar isso e que ninguém pense que com quatro medidas de algum tipo dá pra resolver”, avisa.

As eleições chilenas

Os resultados das eleições da semana passada são uma expressão da crise da democracia representativa. A abstenção foi de 60%, superior à do plebiscito constitucional de 2021, que chegou a 49%. Foi o mesmo número das duas últimas eleições presidenciais em 2013 e 2017.

“Os eleitores agora decidem o que querem de forma cada vez mais independente.”

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Se, como disseram os analistas, a maioria dos chilenos estava convencida de que era importante mudar a constituição, deveria ter havido uma participação maior, mas na realidade, não parece que o assunto mova a maioria da população.

Desde 2012, quando o voto voluntário foi estabelecido, o Chile é um país com alta abstenção. Alguns agora acreditam que tornar o voto obrigatório é a solução, mas isso apenas esconderia o verdadeiro problema: por que os chilenos não querem participar?

Eles se enganariam fazendo com que jornalistas e políticos se congratulassem pelo fervor cívico do povo chileno que vota em massa, sem saber a verdade. O importante não é coagir os cidadãos a votar, mas descobrir por que existe esse abismo entre o velho discurso político e a maioria da população.

A abstenção entre os jovens foi imensa, como vem ocorrendo há anos. Em todo o continente há um desencontro entre os jovens e os partidos. São poucos os jovens que leem manifestos ou ouvem discursos de políticos. Geralmente acham que são chatos. Eles estão na Internet ou no YouTube, ouvindo coisas que são mais interessantes para eles.

Os jovens foram os protagonistas da rebelião de outubro de 2019 que levou a esta assembleia constituinte, mas os números dizem que eles não se rebelaram clamando por uma mudança constitucional. Essa foi uma pauta dos chilenos politizados. Os jovens do continente querem uma revolução mais profunda do que aquela que promovíamos nós, os antigos. Eles sentem que há pouco lugar no mundo para o seu mundo.

A maioria dos eleitos não se identifica com nenhum partido político, apesar de que o Chile tem sido um dos países mais partidários do continente.

No Chile, a lista que unificou a direita obteve 24% dos votos; a centro-esquerda que governou boa parte dos últimos anos 16%. Não há dúvida de que nesses partidos há muitas lideranças bem formadas, mas chegaram, somadas, a 40% desse 40%. Uma nova esquerda em que se destacam o Partido Comunista e a Frente Ampla, formada por movimentos surgidos nos protestos estudantis de 2019, obteve 18%. Os constituintes que receberam mais apoio foram os independentes, que obtiveram cerca de 40% dos votos e poderiam controlar a Constituinte.

Se calcularmos essas porcentagens sobre o total de eleitores, a direita e a centro-esquerda somadas teriam 16% do apoio da população, a esquerda 7% e os independentes 16%. E os demais? Eles não foram votar. Talvez eles estivessem mais interessados na realidade virtual do que na extra mental.

Os resultados expressam o desencontro da população com o estilo daqueles que governaram o Chile desde 1990 e com a lógica do sistema. Isso não é novo, foi expresso nas eleições peruanas e equatorianas, na rebelião na Colômbia, etc.

“De acordo com o Observatorio Nueva Constitución, 64% dos eleitos não têm militância política e apenas 36% pertencem a alguma organização desse tipo.”

Nas eleições seccionais houve surpresas: o Partido Comunista ganhou a Prefeitura de Santiago, os candidatos da Frente Ampla ganharam Maipú, Santiago e Viña del Mar. Embora a nova prefeita de Santiago, Irací Hassler, afirme ter se convertido ao comunismo lendo Marx, nada do que ela defende tem a ver com “O Capital”. Propõe uma Prefeitura Constituinte com ênfase na igualdade de gênero, uma agenda ambiental e uma orientação governamental feminista. Irací significa “reino das abelhas” em tupi-guarani, língua tão estranha a Marx quanto as suas propostas.

Segundo o analista Roberto Isikson “a elite, a mídia, o sistema político e as empresas não fomos capazes de ver o que estava acontecendo. É uma rejeição do sistema político atual, de toda a elite tradicional”.

De acordo com um levantamento do Centro de Estudos Públicos (CEP), Sebastián Piñera tem 9% de aprovação entre os chilenos, sua reprovação chega a 74%. Esses números contrastam com os dados da mesma pesquisa, que afirmam que 16% acredita que sua situação econômica é muito boa ou boa, 48% que não é boa nem ruim e apenas 35% dizem que é ruim ou muito ruim. Os números contrastam com os de outros países como o Equador, onde 72% consideram que é muito ruim.

Existe um abismo entre a percepção da realidade econômica do entrevistado e a do país. 70% qualifica como ruim ou muito ruim a situação do país, mas apenas 36% avalia dessa forma sua situação pessoal; 23% diz que a situação do país não é boa nem ruim, 48% vê assim a situação pessoal; 7% acredita que o país está indo bem ou muito bem, 16% descreve assim a situação pessoal. Estamos melhor em um país que está muito mal.

Percepções

Em qualquer país, quando analisamos pesquisas, damos mais importância às percepções sobre a vida concreta. Em nenhum outro lugar a distância entre a percepção da situação pessoal e a do país é tão grande. Poderíamos dizer que os chilenos sentem que o seu país está muito mal, mas que eles mesmos não. Que explicação pode ter essa lacuna?

Sebastián Piñera disse que “não estamos sintonizados com as demandas e desejos dos cidadãos, estamos sendo desafiados por novas expressões e lideranças. É nosso dever escutar com humildade e atenção a mensagem do povo”. Suas palavras são um bom balanço da situação.

Precisamos fazer um esforço para repensar a política com a ampla intervenção de todos os atores sociais e individuais, de todas as tendências. Já faz um tempo que a gente se propôs a fazer isso de forma cabal, com um programa acadêmico endossado pela GWU e pelo Grupo Perfil.

*Por Jaime Duran Barba – Professor da GWU e membro do Club Político Argentino.

*Texto publicado originalmente no site Perfil Argentina.

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