Como tolerar os intolerantes do cancelamento?

Hoje, fala-se em toda parte da “cultura do cancelamento”. Mas o que significa essa expressão? Qual é o seu escopo? Em que contexto se verifica?

Como tolerar os intolerantes do cancelamento
Imagem ilustrativa (Crédito: Canva Fotos)

Em termos gerais, o cancelamento refere-se a limitar ou proibir diretamente a inclusão ou participação de qualquer pessoa em um evento ou situação, com base em suas declarações ou devido a algum aspecto de sua história pessoal, normalmente praticada pelos “intolerantes”. Representa uma atitude punitiva e, há já algum tempo, suscita questionamentos.

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Dado que o cancelamento é algo que ocorre em espaços promovidos por discursos progressistas ou que fazem da liberdade e da tolerância pilares fortes da sua identidade, como é que aqueles que militam em causas justas cometem a injustiça de assumir uma resposta intolerante?

Até aqui, a cultura do cancelamento é outro dos paradoxos do progressismo. Em uma entrevista recente, o polêmico diretor de cinema John Waters disse de forma sucinta: “Hoje os censores são jovens ricos e progressistas que são contra a liberdade de expressão pela qual eu lutei”. Nesse sentido, o fenômeno do cancelamento está associado ao problema contemporâneo do “politicamente correto”; ou seja, quem não reproduz o sentido comum, quem faz uma pergunta provocadora ou incômoda, corre o risco de ser cancelado.

Como funciona?

A caraterística problemática do cancelamento é que ele não atua sobre os discursos, mas pune diretamente as pessoas. Porque a verdade é que os discursos não deixam de existir porque não é permitido a alguém exprimir esse ponto de vista. Não são poucas as pessoas que hoje dizem: “Isso eu falo pra você, aqui, mas eu nunca diria publicamente ou em uma rede social”. Eis também outro fator que contribui para o problema geral representado pela cultura do cancelamento: sua expansão como fenômeno virtual de massas, por meio de linchamentos, escraches e formas de assédio cuja origem não é restabelecer a questão do que é justo, mas usar o anonimato das redes para agir impunemente. Há muito se investigou que na virtualidade as pessoas se comportam de uma maneira que nunca fariam pessoalmente ou cara a cara.

A figura do escrache teve uma raiz legítima na história da Argentina, nas mãos de quem não encontrava resposta para o julgamento das vítimas do genocídio. Hoje em dia, em tempos de virtualidade, qualquer pessoa pode falar o que quiser sobre quem quiser, geralmente instrumentalizando uma vitimização inquestionável. Quem é acusado é rapidamente tomado por criminoso – e quem não gosta de entrar numa onda de escândalo para acusar alguém e projetar as suas próprias culpas? Querer estar ao lado dos “bons” supõe a projeção básica da maldade própria – já que na acusação não há nuances nem questionamentos possíveis, o escrachado é tão ruim quanto um genocídio. Porém, o efeito mais nocivo é que o acusador conta uma verdade concedida (emocionalmente) que torna dispensável qualquer mediação dialógica ou judicial. Portanto, não será mais necessário pensar se o que foi feito é crime ou não, nem é preciso pensar se quem cometeu uma ação infeliz tem chance de reabilitar a sua conduta, não, porque o que se busca é escárnio e humilhação.

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Quem cancela?

Com base no exposto, cabe indagar sobre algumas características psicológicas das pessoas que cancelam. Anteriormente, me referi ao mecanismo de projeção psíquica, que está ligado ao pensamento binário e sem nuances; ou seja, pensa com um espectro radical em que o bom e o mau não têm pontos intermediários, nem possibilita situações que possam ser esclarecidas dialogicamente.

Desse modo, o cancelamento supõe uma trama de rigidez psíquica, fortemente valorativa e passível de identificação com os discursos de massa. Qualquer discurso pode tornar-se “de massa”, na medida em que já não serve para pensar, desenvolver ideias ou questionar, mas tem como função residual servir apenas para julgar de forma reativa.

Quem cancela renuncia ao ato psíquico mais típico do pensamento, que se baseia em questionar as certezas, em interrogar as cenas que vemos. Nos tempos modernos, quando a forma mais comum de loucura é ser apaixonado pela verdade (hoje a verdade se declara, e mal se investiga), a hesitação é considerada um gesto de cumplicidade ou omissão. Nossa ideia de verdade já não pressupõe que seja necessário qualquer esforço, após o qual se chega à conclusão. Os discursos do cancelamento são baseados em verdades imediatas e, portanto, contribuem para a geração de fissuras; geralmente, fissuras cuja função é preservar a ilusão de estar do lado “dos bons” e assim surge outro paradoxo: muitas vezes aqueles que dizem que é preciso ir além das divisões, submissões, segregações, etc., não fazem mais que gerá-las novamente. Essa é outra característica da vitimização. O livro “O Tempo das Vítimas”, da psicanalista Caroline Eliacheff e do jurista Daniel Soulez Larivière, é uma excelente leitura para aprofundar essa questão.

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Em que mundo se cancela?

A referência ao livro anterior é um bom ponto de partida para citar outro: “Indignação Total”, de Laurent de Sutter, filósofo e professor de Teoria do Direito. Nosso mundo tornou-se viciado em escândalos, aos quais as pessoas se colam irreflexivamente para sentir poderem assim sentir que estão vivendo alguma emoção forte, que estão militando por alguma causa, para esquecer o vazio de sentido da nossa vida cotidiana. Cada um, atrás do seu computador, faz julgamentos sobre o bem e o mal, se pronuncia diariamente sobre o tema da semana, como se essa nova forma de entretenimento não fosse uma nova forma de controle social.

O fato que os dois livros que mencionei foram escritos por teóricos do direito não é por acaso, porque o cancelamento está ligado a outro aspecto crucial deste século: a judicialização da vida; ou seja, hoje em dia todos os conflitos se resolvem com ameaças de ações judiciais, com envio compulsivo de cartas-documentos, com a interpretação precipitada de tudo o que nos acontece em termos de danos que devem ser indenizados. O individualismo contemporâneo torna as pessoas cada vez menos capazes de enfrentar uma situação em que possa haver tensão sem antecipá-la hostilmente, sem fantasiar uma resolução agressiva, sem fazer do adversário um inimigo, sem fazer do outro um ser maligno que pode nos destruir, se não o destruirmos primeiro.

Desse modo, cancela-se em um mundo que perdeu a capacidade de interação e no qual o vínculo social é tão fragmentado que é melhor que cada um se encontre somente com quem pensa da mesma forma, quem reforce as suas opiniões e expulse o diverso. É assim que se cancela em um mundo que perdeu a dimensão pública do debate e que acredita que o slogan “O pessoal é político” – ao invés de se relacionar à politização de situações que se acreditava serem privadas – equivale a tornar o íntimo uma nova forma de negócio publicitário.

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Política

Em seu livro “O Declínio do Homem Público”, o sociólogo Richard Sennett aborda o desenvolvimento contemporâneo de uma “ideologia da intimidade”, que degrada o compromisso político a um mecanismo psicológico. Assim, a política se faz a partir de uma subjetividade elevada a modelo, com uma consequência desastrosa, porque anula a ação política. É o que vemos hoje quando, por exemplo, no Twitter alguém “ataca desde a esquerda” alguém com quem compartilha muito mais do que com um verdadeiro adversário.

É assim que os movimentos enlouquecem e implodem e cada um perde a sua representação e identidade, devido aos pseudo-debates internos em busca de prestígio, cada um delira com o seu micromundinho devido ao ressentimento e ao narcisismo. Isso de “atacar desde a esquerda” (apelar a uma pretensa autoridade/superioridade moral) não é um método de argumentação ou uma forma de abrir um debate, mas sim a exposição de um mecanismo maluco (porque sou mais psicanalista do que você, porque sou mais ambientalista do que você, porque sou mais feminista do que você, etc.) que institui uma ruptura do espaço público indispensável para fazer política. Nas redes sociais, a militância se transformou em exibicionismo.

O que fazer?

“O cancelamento é um fenômeno de massa, irreflexivo e binariamente justificado, que ignora a forma em que transgrede as suas próprias intenções.”

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Quem cancela diz falar em nome da verdade, mas que verdade? Aquela que se baseia em sua própria percepção. Por exemplo, alguém determina o que aconteceu em uma cena a partir do que vê em um vídeo que dura uns poucos segundos e que se tornou viral. Ao contrário de quem pôde dizer “penso, logo existo”, quem cancela diz: “vejo, essa é a única verdade” e, portanto, não importa se há crime ou não, se há instância judicial ou não, se há um conflito que pode ser restituído ou raciocinado, não, quem cancela em um segundo já pulou todas essas etapas e decide de que lado está. O dos bons, claro.

Chamar a atenção para esta massificação que, em nome da paixão, vai contra a capacidade de pensar, é um dos desafios mais importantes deste momento. Em dias de haters, trolls e outros infortúnios virtuais, desativar as nossas reações imediatas é uma ação tolerante, em vez de complacente ou condescendente. Só há uma coisa mais triste do que ser um hater ou troll assumido: ser um sem sequer sabê-lo.

*Por Luciano Lutereau – Doutor em Psicologia e Filosofia.

*Este texto não reflete, necessariamente, a opinião da Perfil Brasil.

*Texto publicado originalmente no site Perfil Argentina.

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