A 60 anos do frustrado “Plano Marshall”

Há seis décadas, uma conferência especial da OEA aprovou em Punta del Este um programa de ajuda de Washington para a região, ao qual só se opôs Cuba, representada por Che Guevara, que desencadeou ao mesmo tempo uma crise política na Argentina

A 60 anos do frustrado “Plano Marshall”
John Fitzgerald Kenned (Crédito: Getty Images)

Em 17 de agosto de 1961, a conferência especial da OEA em Punta del Este, convocada para discutir a situação do continente, culminou com a aprovação da chamada Aliança para o Progresso, programa de assistência dos Estados Unidos à América Latina, anunciado em março pelo presidente norte-americano, John Fitzgerald Kennedy. Apenas Cuba votou contra, e o seu representante na reunião era o argentino Ernesto “Che” Guevara, que estreou nos foros diplomáticos vestindo seu uniforme de comandante guerrilheiro, discursando como porta-voz do governo cubano chefiado por Fidel Castro.

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Já se passaram 60 anos desde o fim daquela conferência, que constituiria um marco nas relações hemisféricas, um frustrado “Plano Marshall” dos Estados Unidos que acabará neutralizado pelo confronto Leste-Oeste, o assassinato de Kennedy e a Doutrina de Segurança Nacional, que promoverá polarização ideológica, ditaduras militares e governos anticomunistas na região. É a história de uma “teoria do dominó” invertida na América Latina: para combater a influência soviética e as insurgências armadas, consideradas por Washington como uma ameaça à democracia, foram executados golpes militares que bloquearam ou afogaram em sangue a vida democrática na região.

Invasão. Em 17 de abril de 1961, ocorreu a invasão da Baía dos Porcos, que buscava derrubar Fidel. Da Nicarágua, onde foram despedidos e arengados pelo ditador Luis Somoza Debayle, saiu um grupo armado de 1.500 homens, em sua maioria cubanos, treinados na Guatemala, em navios da United Fruit Company, com o apoio da CIA. No dia seguinte, ficou claro que Fidel e seus homens haviam controlado a situação. A CIA então pediu ao presidente Kennedy, que havia assumido há menos de três meses, a intervenção aberta dos Estados Unidos junto à Força Aérea, mas ele se recusou, o que levou a comunidade cubana anticastrista nos Estados Unidos a acusar Kennedy de ser um traidor.

O fracasso da invasão da Baía dos Porcos resultou na demissão do Diretor da CIA Allen Dulles e na sua substituição por John McCone. Mas a escalada entre Washington e Havana continuaria. No contexto regional e hemisférico, Kennedy acreditava que a Argentina poderia ser um mediador entre os Estados Unidos e Cuba. Assim, a pedido do presidente dos Estados Unidos, foi estimulado um encontro entre o presidente Arturo Frondizi e Ernesto Guevara para discutir a espinhosa questão, além de tentar trazer de volta aos trilhos as relações entre os dois países após a fracassada invasão da Baía dos Porcos.

CIES

No início de agosto de 61, as atenções de todo o continente estavam voltadas para o balneário uruguaio de Punta del Este. A Reunião do CIES (Conselho Interamericano Econômico e Social), convocada especialmente pela Organização dos Estados Americanos (OEA), começa no dia 5 e nela foi estabelecida a adesão continental à Aliança para o Progresso. O texto oficial afirmava como objetivo geral “melhorar a vida de todos os habitantes do continente”. Além disso, estabeleceu objetivos específicos: um aumento anual de 2,5% na entrada de capital de investimento estrangeiro, estabelecimento de governos democráticos, eliminação do analfabetismo adulto até 1970, estabilidade de preços, eliminação da inflação ou deflação, distribuição mais equitativa da renda, reforma agrária, planejamento econômico e social. Foram elencadas medidas de natureza social, política e econômica e, para garantir esses objetivos, os Estados Unidos comprometeram-se a cooperar em questões técnicas e financeiras.

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O representante de Cuba, Ernesto “Che” Guevara, não assinou a declaração final. E no dia seguinte ao fim da conferência, ele voou de avião particular para Buenos Aires para se encontrar com Frondizi na Residência de Olivos. Naquela época, Albino Gómez era um jovem diplomata de 32 anos destacado pela Cancillería para a Presidência da República e colaborador próximo do presidente Arturo Frondizi. Único protagonista vivo desses acontecimentos, é assim que lembra aquele momento hoje, aos 93 anos, com grande detalhe: “Eu trabalhava com Frondizi todas as manhãs em Olivos e todas as tardes na Casa Rosada, sempre que não houvesse uma das 32 tentativas de golpe, com as juras dos ‘continuistas’ e ‘quedantistas’ de que ele não seria capaz de governar o mandato de seis anos, e de fato o destituíram antes de completar quatro anos. Para Frondizi, a Aliança para o Progresso era uma iniciativa valiosa, pois pelo menos com ela o presidente John Kennedy destacava a importância do desenvolvimento na América Latina, mas sempre fez sérias objeções por considerar que não era suficiente para resolver os problemas estruturais do desenvolvimento. E já nos debates posteriores, na segunda e na oitava Reunião de Consulta dos Chanceleres, em Punta del Este, um grupo de países liderados pela Colômbia passou a acompanhar automaticamente as diretrizes da política estadunidense para o nosso continente. A Argentina, acompanhada pelo Brasil e um punhado de países, se opôs à exclusão de Cuba do Sistema Interamericano. Mas foram derrotados. A Argentina votou contra a exclusão de Cuba da OEA, em primeiro lugar porque essa sanção não estava prevista na Carta da Organização, mas sobretudo porque entendeu que tratar o problema cubano desta forma era contraindicado, como acabou sendo demonstrado posteriormente no continente. Porque, além disso, todos os países membros da OEA tiveram que romper relações com Cuba”.

Gestões

Sobre a fugaz visita de Che a Buenos Aires, Albino Gómez recorda: “Muitos se atribuíram crédito pela entrevista de Che com Frondizi, quando o único que viajou com ele, e se ele não ia, Che também não iria, foi o doutor Jorge Carlos Carretoni, então assessor do Conselho Federal de Investimentos. Muitos também se atribuem a ideia de trazer o Guevara, mas aparentemente só o deputado Camet, membro da Comissão de Relações Exteriores da Câmara dos Deputados, teria feito a sugestão a Frondizi. Com Guevara, que recebi em Olivos e apresentei ao escritório de Frondizi, fiquei do lado de fora com o embaixador cubano dedicado especialmente ao nosso continente, que também viajou de avião com Guevara e Carretoni. Ali, Guevara despediu-se de Carretoni, agradecendo-lhe a companhia, que o fazia sentir-se seguro, mas chegou a Olivos da embaixada em carro, acompanhado pelo embaixador da chancelaria cubana, Aja Castro, que também o acompanhou no mesmo avião desde Punta del Este. O engraçado é que Guevara estava tão cansado pela falta de descanso devido ao assédio jornalístico que dormiu em paz durante toda a viagem de menos de uma hora”.

Últimos meses do governo Frondiz

Oscar Camilión e Horacio Rodríguez Larreta (pai), colaboradores próximos de Frondizi, junto com o embaixador dos Estados Unidos, Richard Goodwin, usaram argumentos convincentes para tentar convencer Kennedy de que isolar Cuba seria a pior estratégia. Goodwin viajou a Buenos Aires e continuou a se encontrar com Camilión e Rodríguez Larreta, sendo vigiado pelos serviços de inteligência, sob o controle das três Forças Armadas. Goodwin havia tido uma longa conversa com Guevara e depois comunicou a Kennedy a possibilidade de Frondizi receber Che para tentar convencê-lo a rever sua posição, como já havia feito com o presidente brasileiro Jânio Quadros.

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Tudo acabou com a expulsão de Cuba da OEA

Poucos meses depois, em fevereiro de 62, tomou-se a decisão direta da OEA de que todos os seus membros deviam romper relações com Cuba. Albino Gómez lembra que “Frondizi fez um discurso no dia 3 de fevereiro em Entre Ríos que em nada sugeria a ruptura, mas no dia 8, cinco dias depois, ele resolveu pela ruptura, que ele mesmo chamou de seu ‘testamento político’ e que nada fez para impedir, um mês mais tarde, em 29 de março, a sua derrubada. Agravado pelo triunfo peronista em nove províncias. Também não ajudou não reconhecer aquele triunfo, que levou (Alfredo) Vítolo a telefonar para ele às duas da manhã depois da votação, e eu o atendi porque naquela noite dormi no escritório de Olivos. Vítolo disse-lhe que, apesar da sua lealdade, como radical e Ministro do Interior, diante do desconhecimento de uma vitória legal, não podia aceitar a sua anulação e estava renunciando. O Frondizi disse-me que fosse procurar Frigerio às quatro da manhã para informá-lo sobre o Vítolo, mas que o golpe era imparável apesar de tudo, e devia ir imediatamente a Montevidéu. Frigerio não conseguia acreditar que havia anulado o voto das nove províncias. Eu consegui integrar para ele o gabinete de salvação com o cordobês (Enrique) Martínez e (Oscar) Puiggrós, ambos amigos pessoais de Aramburu, que – ao que parece – fez o que pôde, mas não deu certo”.

O BID, único legado da ALPRO

A iniciativa de um programa abrangente de investimentos dos Estados Unidos na América Latina teve como pano de fundo as ideias promovidas por Nelson Rockefeller na Segunda Guerra Mundial, e também as reiteradas demandas de apoio econômico que os países do continente fizeram aos Estados Unidos desde o lançamento do Plano Marshall, em 1948. Em 1954, a Conferência Interamericana de Ministros da Economia foi realizada em Quitandinha, Brasil, e nessa ocasião Antonio Cafiero, enviado de Perón, defendeu a iniciativa chilena de criar um Banco Interamericano de Desenvolvimento, apesar da posição contrária assumida pelo Departamento de Estado. O projeto de um banco interamericano, porém, não prosperou até que se materializou uma nova conjuntura na região. Foi somente após a revolução cubana que os Estados Unidos começaram a apoiar a criação do referido banco, em meados de 1959. O BID seria a pedra angular do ALPRO, tanto é que, até hoje, continua sendo a principal instituição financeira destinada a financiar empréstimos para o desenvolvimento das economias latino-americanas.

Che em Buenos Aires

A última visita de Ernesto Guevara à Argentina ocorreu em 18 de agosto de 1961, quando se encontrou com o presidente argentino Arturo Frondizi e, no caminho de volta ao aeroporto, visitou uma tia sua. Che foi transportado secretamente e a notícia só se tornou pública quando ele deixou o país. Não há fotos de Guevara durante sua curta estada na Argentina devido à natureza fugaz do encontro, embora haja uma curta filmagem em preto e branco dele caminhando pela Quinta de Olivos. No livro “Célia, la madre del Che” (Sudamericana, 2005), Julia Constenla reconstrói os acontecimentos, nesta crônica:

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“Em 17 de agosto de 1961, Guevara deu uma palestra na Universidade de Montevidéu diante de um público que transbordava o campus e as ruas da vizinhança. À noite, jantou com Salvador Allende, que também passava pelo Uruguai. No dia 18 de agosto, um desavisado capitão que se dirigiu ao Aeroparque de Buenos Aires para receber um visitante desconhecido que devia levar para Olivos quase sofreu um ataque cardíaco ao ver o inconfundível “Che” Guevara descer do pequeno avião. As suas instruções eram precisas: levá-lo no carro que esperava na pista diretamente para a Residência de Olivos. A viagem havia sido mantida em segredo. Albino Gómez abriu a porta para que Guevara entrasse no gabinete presidencial. Enquanto durou a reunião a portas fechadas, ele permaneceu na antessala com o Dr. Ramón Aja Castro, chefe do Departamento de Assuntos Latino-Americanos de Havana. Che e o presidente argentino conversaram por quase uma hora e meia; e o tratamento foi respeitoso. Frondizi deixou transparecer que suas propostas foram ouvidas com interesse. O visitante solicitou que antes de se deslocar ao aeroporto, com a mesma discrição com que havia chegado, que pudesse visitar sua tia María Luisa Guevara Lynch, que há muito tempo estava gravemente doente. Aparentemente, María Rosa Oliver, uma inteligente e fervorosa defensora de Cuba, por quem Che tinha grande afeto, esteve lá. Estava em uma cadeira de rodas naquele dia. Che não viu os seus pais e apenas passou rapidamente de carro por uma cidade onde já começava a circular a notícia da sua inesperada visita”.

S.S.G / F.B.

*Por Santiago Senén González e Fabián Bosoer – jornalistas e historiadores. E Vittorio Hugo Petri colaborou na investigação.

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*Este texto não reflete, necessariamente, a opinião da Perfil Brasil.

*Texto publicado originalmente no site Perfil Argentina.

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