A construção da identidade

Um conceito chave na política contemporânea

A construção da identidade
(Crédito: Canva Fotos)

Já há algum tempo e em quase todos os lugares, escreve-se e ouve-se sobre identidade e sua construção: identidade nacional, identidade política, identidade étnica, identidade de gênero e um longo “etecetera”. Trata-se de uma constelação discursiva em que se utiliza ou se discute a noção de identidade, e que se difundiu em várias línguas.

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Agora, quando se fala em “identidade”, do que se fala mesmo? A resposta, que está longe de ser óbvia, e ainda menos unânime, está cercada de debates, ainda que, por outro lado, seja uma palavra da linguagem comum. Quem não sabe o que é um documento de identidade? Mas o assunto tornou-se complexo. O significado da palavra não só não é evidente, como também leva a mal-entendidos, a confusões. “Deveríamos ser capazes de explicar facilmente o que entendemos por termos como ‘nossa identidade’, mas nos amarramos nas nossas próprias explicações”, observa o filósofo da linguagem Vincent Descombes. “Sentimo-nos traídos pelas palavras que usamos. Parece impossível, de repente, dizer o que queremos dizer sem também dizer coisas que não tínhamos intenção de dizer e de assumir”. Em seu artigo “Définir l’identité”, Robinson Baudry e Jean-Philippe Juchs não dizem algo muito diferente:

Evocar a identidade hoje parece realçar um discurso completamente trivial, embora a noção seja de uso comum. No entanto, embora possamos nos referir a ela facilmente, defini-la é uma tarefa incômoda.

Certamente, a primeira coisa a fazer, dada a diversidade de coisas a que se refere a palavra “identidade”, é apontar que ela integra diferentes vocabulários ou linguagens. Na fala comum, o seu significado deriva da locução latina idem, na qual tem origem, e que denota “o mesmo”, “a mesma”, “igual”, “idêntico”.

De “identidade” resultam “identificar” e “identificação”. Nesse sentido, pode-se dizer que nos tempos atuais é o Estado que nos dá uma identidade, atestando nos documentos de identificação que somos a mesma pessoa que afirmamos ser. Além disso, no vocabulário filosófico ocidental, o conceito de identidade que afirma, apoiado em um pressuposto ontológico, que tudo é igual a si mesmo (A = A) constituiu, por séculos, um dos pilares da lógica formal clássica. Você poderia dizer que essas duas são as acepções tradicionais do termo.

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A complicação não surgirá até que, já na segunda metade do século XX, a palavra seja incorporada ao movimento das ideias no meio intelectual. O primeiro passo foi a sua entrada no léxico das ciências sociais, onde a noção de identidade foi assumida como instrumento para abordar, pensar e investigar uma série de fenómenos da vida individual e/ou social. Em outras palavras, nas últimas décadas o termo “identidade” passou a fazer parte de uma linguagem especializada, na qual encontra novos usos e debates acadêmicos sobre esses usos. Os novos significados que o termo adquiriu, no entanto, não ficariam confinados ao âmbito dos estudos universitários. Aos poucos, os assuntos da identidade, das suas definições e dos seus problemas extrapolaram os limites da pesquisa e das discussões eruditas e entraram no discurso público. Nos atendo ao domínio do espanhol, podemos indicado como exemplo dessa expansão o Dicionário da Língua Espanhola, da Real Academia Espanhola, que desde sua edição de 2002 incorporou dois novos significados para a palavra “identidade”:

Um seria o conjunto de características de um indivíduo ou de uma comunidade que o caracterizam em relação aos outros. E o outro consciência que uma pessoa ou comunidade tem de ser ela mesma e diferente das outras.

Identificando a identidade

A trajetória do conceito de identidade no pensamento social e político contemporâneo começou nos Estados Unidos. Como surgiu nesse contexto, em que se tornou objeto de análises e pesquisas, de teses e controvérsias? Em 1983, o historiador norte-americano Philip Gleason publicou o artigo “Identifying Identity: A semantic history”. O artigo, que continua a ser um texto de referência, estuda as vicissitudes do conceito de identidade desde a sua entrada no vocabulário psicossociológico do seu país.

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Não mais era possível falar em imigração ou etnia prescindindo da palavra “identidade”, declarou Gleason no início, referindo-se ao estado das disciplinas do mundo social em seu país. O termo, advertiu ele, era onipresente e indescritível.

Ao rastrear a origem dos significados eruditos da palavra, além de seus usos ocasionais por diferentes autores, o historiador encontrou duas tradições principais. A primeira teve seu ponto de partida na obra de Erik Erikson, psicanalista que emigrou da Alemanha em 1933 e posteriormente naturalizou-se estadunidense.

Na opinião de Gleason, teria sido Erikson quem deu cidadania ao termo nos Estados Unidos. “Erikson foi uma figura chave para espalhar a palavra. Ele cunhou a expressão ‘crise de identidade’ e fez mais do que ninguém para popularizar o termo”. Embora a psicanálise freudiana fosse a sua doutrina básica (em Viena havia se formado em psicanálise infantil sob a direção de Anna Freud), Erikson também será atraído, já em seu país de adoção, pela pesquisa antropológica cultural sobre o “caráter nacional”. Mais do que isso, ele também faria alguns trabalhos de campo naquela disciplina, cuja figura mais proeminente era a antropóloga Margaret Mead.

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Erikson conhecia e admirava o trabalho de Margaret Mead a respeito do caráter norte-americano, e elaborou primeiramente suas ideias sobre identidade na interação entre a “identidade do ego” e a “identidade de grupo”, no âmbito da pesquisa sobre o caráter nacional realizada durante a Segunda Guerra.

A concepção psicossocial de identidade que Erikson propôs já na nos anos 50 (seu “Childhood and Society” foi publicado em 1950) carregaria os traços desse encontro com a antropologia cultural norte-americana. Ele mesmo dirá que os conceitos de “identidade” e de “crise de identidade” que ele cunhou vieram de suas “observações pessoais, clínicas e antropológicas, durante as décadas de 1930 e 1940”. Em sua opinião, o estudo da identidade havia se tornado tão estratégico quanto os de Freud sobre a sexualidade. Então, o que era a identidade para Erikson? Um processo psicossocial “localizado” em três ordens: a ordem somática, a ordem do ego e a ordem social.

“A identidade resultava da interação entre essas diferentes dimensões.”

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Para Erikson, que trabalhava dentro da tradição freudiana, comenta Gleason, os componentes de interioridade e continuidade eram indispensáveis.

A identidade era formada e modificada pela interação entre o indivíduo e o meio social, mas, apesar das crises e mudanças, sedimentava-se no fundo uma “confiança acumulada” na “individualidade e continuidade interna” do próprio ser.

Isso, acrescentemos, fará que a concepção de Erikson seja criticada por assumir um critério substancialista ou essencialista da identidade, isto é, a de ser algo que apesar das mudanças continua igual a si mesma. O questionamento se tornará mais vivo quando a análise da identidade for transferida para os grupos sociais.

O termo “identificação”, proveniente do vocabulário freudiano e utilizado por Erikson, serve a Gleason para fazer a passagem para a outra perspectiva, a partir da qual será abordada a questão da identidade no ambiente universitário norte-americano. Nesta corrente, a palavra “identificação” também será usada, mas sem conexão com a doutrina psicanalítica. “Interacionismo simbólico” é o nome dado a essa orientação que teve como fundadores o sociólogo Charles H. Cooley (1864-1929) e, sobretudo, o filósofo social George H. Mead (1863-1931), ambos estadunidenses. Gleason sintetiza a contribuição desta corrente para a compreensão do mundo social em duas teorias: a teoria dos papéis e a teoria dos grupos de referência, ambas importantes na literatura sociológica que trata do processo de aquisição de competências e normas fundamentais de vida social. Ou seja, o processo de socialização dos membros de um grupo social. Os sociólogos, escreve Gleason, tendem a ver a identidade como um artefato de interação entre o indivíduo e a sociedade; consiste essencialmente em ser designado por um determinado nome, aceitar essa denominação, internalizar as exigências que acompanham o papel que a designação indica e comportar-se de acordo com essas prescrições.

E ele acrescenta linhas mais tarde, citando o livro de Peter Berger, “Invitation to Sociology”, que “as identidades não são apenas conferidas socialmente”, mas também “devem ser mantidas socialmente, e assim acontece com grande frequência”.

Desse ponto de vista, a identidade não mais implicava um núcleo sólido e contínuo, como na corrente inspirada nas análises de Erikson.

O rumo acadêmico posterior das definições e abordagens assumiria uma dessas duas orientações. Mas a questão identitária não se limitou ao vocabulário intelectual dos especialistas.

Por meio das chamadas “políticas identitárias”, ativas desde a década de 1970 nos Estados Unidos, a palavra saiu do discurso erudito e inseriu-se em um vocabulário público. Movimentos de setores que eram ou se consideravam socialmente marginalizados por questões raciais, étnicas, religiosas, sexuais, etc., demandariam reconhecimento e direitos em nome de sua identidade particular.

Na outra margem

A literatura norte-americana sobre identidade atravessaria o Atlântico nas últimas décadas do século XX. Os debates em torno da política de identidade e do direito à diferença também aconteceriam na outra margem. Eric Hobsbawm registrou, em artigo de 1996, o tópico “surpreendentemente novo” da identidade e quão recente o termo foi incorporado à linguagem política britânica. Depois de observar que não havia entradas para a palavra nos dicionários de ciências sociais antes da segunda metade da década de 1960, ele recomendou acompanhar os novos usos do termo nos Estados Unidos.

Naquela sociedade, observou Hobsbawm, o hábito de tomar o pulso era mais comum (embora como nota de rodapé, deve-se dizer que o termo “identidade” já havia sido assunto de um artigo curto, mas bem informado, no “The Blackwell Dictionary of Twentieth-Century Social Thought”, editado em 1993).

No pensamento social europeu, a noção de identidade encontrará diversas respostas: rejeições, incorporações, críticas e reformulações conceituais. Foi provavelmente no campo da etnologia que o termo teve maior circulação em um primeiro momento.

Mas, nos círculos intelectuais, não demoraria muito para que a noção importada pudesse detectar ou dar nome às preocupações e reflexões provocadas pela atualidade das experiências em andamento: o avanço da globalização econômica e a mundialização da cultura; o projeto de unidade europeia (era possível falar de uma identidade europeia?); migrações de países que surgiram em antigos territórios coloniais; as alterações no mapa político europeu causadas pelo fim do mundo soviético. O pensamento social francês foi a princípio o mais relutante em prestar atenção às teorias e disputas que brotavam nos campi americanos – mesmo que em muitos casos o que vinha dos Estados Unidos fosse uma reelaboração universitária do que se identificava como “French theory”. De resto, não era a “identidade nacional” um leitmotiv do discurso político da extrema direita, personificada por Jean-Marie Le Pen e sua Frente Nacional? Mas, finalmente, as viagens e trocas de professores e pesquisadores abririam o caminho para o “desvio norte-americano” no espaço hexagonal. Como “virada pragmática” e “virada linguística”, o assunto da identidade seria parte do movimento que introduziu no horizonte intelectual francês a etnometodologia.

Embora simplificando ao extremo, algumas referências tiradas ao acaso das leituras podem nos dar uma ideia da circulação que esse assunto alcançará no vocabulário e na polêmica intelectual na França. Em 1977, apareceu, como o selo das Éditions Grasset, “L’identité”. O livro foi resultado de um seminário multidisciplinar idealizado e organizado por Jean-Claude Benoist, que aconteceu no período acadêmico 1974-1975, sob a direção de Claude Lévi-Strauss. Tanto no curto prólogo que encabeçava o volume quanto nos comentários finais do seminário, é evidente que o livro estava inscrito em uma polêmica e que o mestre da antropologia estrutural se distanciava do tema da identidade, uma “moda”, como ele a chama:

“Hoje é moda, sem mais valor do que uma mera moda, censurar os antropólogos por fundir culturas radicalmente diferentes no moinho de nossas categorias e classificações e por sacrificar sua originalidade distintiva e caráter inefável quando as submetemos a formas mentais específicas de uma época e de uma civilização”.

O seminário foi idealizado para abordar criticamente a questão da identidade, convidando especialistas em diferentes setores do conhecimento – da etnologia à matemática, da filosofia à linguística, à psicanálise e à biologia – a expor sobre o uso do conceito de identidade em seus respectivos campos de trabalho. Cada apresentação foi seguida de uma discussão entre os participantes. Nas palavras finais, porém, Lévi-Strauss retornaria ao debate. “Por que nós, sendo etnólogos, formulamos este problema da identidade?” Porque eles foram objeto de um ataque violento, ele respondia. “Dizem-nos: o propósito da etnologia é identificar culturas alheias e irredutíveis aos nossos próprios modos de pensar. Ao fazer isso, insistem eles, vocês anulam a originalidade específica de culturas diferentes da nossa”. A etnologia seria, segundo essa visão, uma forma de pensamento colonial. Lévi-Strauss não citava nomes ou textos. Referindo-se aos argumentos apresentados no seminário, ele observou que “em cada caso havia mais uma crítica à identidade do que a sua afirmação pura e simples”. Ou seja, nada endossava o substancialismo que ele percebia em seus adversários. No entanto, o autor de “O Pensamento Selvagem” não rejeitava completamente a noção de identidade. Seria, escreve em poucas linhas que não se destacam pela clareza, “uma espécie de pano de fundo virtual ao qual é essencial nos referirmos para explicar um certo número de coisas, mas sem que jamais tenha uma existência real”.

Alguns anos depois, a prestigiosa revista dirigida por Pierre Bourdieu, “Actes de la recherche en sciences sociales”, dedicou ao tema da identidade e da região um de seus números. A publicação trazia um artigo de seu editor, “L’identité et la représentation”, mas talvez o mais sugestivo foi que a edição abria com as conversas sobre a “identidade judaica” de Jean Bollack e Pierre Bourdieu com Gershom Scholem, o renomado historiador e filólogo israelense.

Outro sinal de que a questão identitária ganhava tração foi o último trabalho de Fernand Braudel, “L’identité de la France”. Braudel só conseguiu completar os três primeiros volumes de um plano que ficou inacabado. “L’identité”, que apareceu postumamente em 1986, não era uma história da França, mas uma interpretação da França.

Pouco antes de sua morte, o grande historiador declarou no Le Monde:

“Acredito que a questão da identidade francesa se impõe a todos, sejam de esquerda, de direita ou de centro, de extrema esquerda ou de extrema direita. É um problema que se coloca a todos os franceses. De resto, a cada momento a França viva volta-se para a história e para o seu passado para extrair informações sobre si mesma, que pode ou não aceitar, que transforma ou às quais se resigna. Mas, em última instância, é uma questão para todos”.

Partindo da indagação sobre as particularidades do racismo contemporâneo, Étienne Balibar e Immanuel Wallerstein elaboraram um conjunto de ensaios em 1988 sob o título “Race, nation, classe: Les identités ambiguës”. Ao longo de treze ensaios, o filósofo francês e o historiador americano mostravam as suas coincidências e divergências, mostrando, entre outras coisas, que a questão identitária não deixava o campo marxista indiferente. Nesse mesmo ano, apareceu na “Esprit” um artigo de Paul Ricoeur que teria grande influência (não só no meio universitário francês), “L’identité narrative”.

Em um artigo que mirava ao último livro de Braudel, o historiador francês Gérard Noiriel escreveu:

“A questão da ‘identidade nacional ’está hoje no centro das preocupações não só dos homens políticos, mas também dos intelectuais. Cada vez mais artigos, obras e colóquios se dedicam a esta questão no mundo inteiro”.

Na França, continuou, “é o último livro de Fernand Braudel o que legitima entre os historiadores o uso de uma expressão em que antes desconfiavam”.

Para Noiriel, o desejo que animara a obra posterior de Braudel inscrevia-se em uma genealogia que remontava a J. Michelet e continuava com E. Renán e logo com o geógrafo Vidal de la Blache.

Afinal, como ignorar a reflexão sobre a identidade da França que está na base da ambiciosa obra coletiva do historiador Pierre Nora, “Les lieux de mémoire”? Não havia uma, mas várias Franças (…)

Notas finais

O trabalho de reflexão e pesquisa de sociólogos, antropólogos, filósofos e psicanalistas que tomaram o conceito de identidade como objeto ou como instrumento de interpretação não remete a uma única teoria. Porém, além de divergências importantes, os estudos que atendem aos frutos da pesquisa coincidem em um ponto: mostram que a identidade, seja ela individual ou grupal, não é a manifestação de um núcleo interior que cada pessoa traria consigo ao nascer – ou expressão do caráter primordial de um grupo ou povo –, mas antes o resultado contingente e nunca inteiramente concluído do processo de interação entre o “exterior” e o “interior” de cada subjetividade. Como as tradições, as identidades não devem apenas ser transmitidas e inculcadas, mas também arranjadas e renovadas, tanto no que preservam na forma de memória quanto no que é esquecido. Às vezes para integrar novos membros ao próprio grupo, outras vezes para legitimar exclusões. Variam, a depender da sociedade, as agências por meio das quais os membros de um grupo são induzidos a adotar os códigos de uma cultura. Os sociólogos chamam esses processos de “socialização”. Os discursos identitários constituem uma forma de construir significados que influenciam e organizam tanto as nossas ações quanto a nossa concepção de nós mesmos. Eles nos unem em uma comunidade imaginária e nos separam dos outros através de um trabalho contínuo de diferenciação simbólica: nós e eles.

Não é o filósofo uruguaio Arturo Ardao quem confirma para nós que não há identidade sem alteridade, quando afirma que a noção e o nome de América Latina se articulam numa dupla oposição? Por um lado, a antítese ligada à imagem da América como Novo Mundo, em oposição ao Velho Mundo, nome que evocava a Europa, em primeiro lugar, mas também a Ásia e suas antigas civilizações; por outro lado, a antítese sublinhada pelo adjetivo “latina”, que opõe esta América, a do Sul, à outra América, a do Norte, a América saxônica.

*Por Carlos Altamirano – Professor emérito da Universidade Nacional de Quilmes e pesquisador do Centro de História Intelectual dessa universidade.

*Este texto não reflete, necessariamente, a opinião da Perfil Brasil.

*Texto publicado originalmente no site Perfil Argentina.

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