Cinco pontos para entender a explosão de protestos na Colômbia

A fúria vai além da reforma tributária que a desencadeou. A desigualdade e um acordo com a guerrilha sem fechar são causas profundas

Por Gabriel Gaspar – cientista político chileno

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A Colômbia tem sido abalada há dias por mobilizações massivas. Sua origem pontual foi a rejeição de uma reforma tributária promovida pelo governo. De repente, milhares de manifestantes foram às ruas para protestar. Tudo em meio a um momento difícil da pandemia que já dura mais de um ano. Os protestos não param e já faz algum tempo que o presidente Iván Duque retirou o projeto e o ministro das Finanças renunciou. Mas os protestos continuam, com mais de vinte vítimas fatais, cidades semiparalisadas, ruas e estradas interditadas, carnavais pacíficos durante o dia, junto com graves incidentes noturnos, que incluem assaltos a postos de controle da polícia. Além disso, denúncias de violência policial e militarização de cidades e preocupação da comunidade internacional. Nessa altura, devemos supor que se a reforma tributária foi a faísca, é preciso avaliar por que a pradaria estava tão seca, o que permitiu seu incêndio. Dada a proximidade dos eventos, apenas podemos sugerir alguns fatores que explicariam a atual crise colombiana. Diante disso, propomos cinco teses.

1. O fim da guerra

Nos últimos anos, a Colômbia testemunhou a conclusão do processo de paz, com a assinatura dos acordos entre o governo do então presidente Santos e as FARC. O conflito interno mais longo da América Latina chegou a seu fim. A assinatura da paz não foi fácil; para começar, o referendo convocado para a ratificação dos Acordos foi rejeitado e, embora a aprovação tenha sido posteriormente desbloqueada, a implementação tem sido lenta e tortuosa até hoje. Mas acabaram os combates, as FARC depuseram as armas e se juntaram à política como partido – onde é preciso frisar que seus resultados até agora têm sido ruins –, e as Nações Unidas supervisionaram o processo. No fundamental, o conflito armado terminou. O novo cenário provocou mudanças no sistema. Assim como as FARC se desmobilizaram, o discurso duro que explicava todos os males do país devido à presença da guerrilha também começou a perder força. Esse tipo de posição foi liderada pelo ex-presidente Álvaro Uribe, que governou o país com mão de ferro no início do século e formou um partido: o Centro Democrático, que conseguiu colocar no poder o atual presidente Duque. Em um nível mais subjetivo, a paz gerou diversas e fortes expectativas. Para um setor do país, o fim da guerra e da guerrilha ia gerar um cenário favorável para dar um grande salto rumo ao desenvolvimento; para outros, a paz significaria o fim da violência e dos abusos, a alegria já vinha. Como resultará o processo depois de alguns anos, veremos mais adiante, mas o que destacamos aqui é que o fim da guerra imperceptivelmente abriu espaço para uma reformulação da política e estimulou muitas expectativas.

2. Violência e desigualdade

A assinatura dos acordos facilitou a desmobilização do grosso das tropas farianas. Ao longo da guerra, as FARC construíram um verdadeiro Estado guerrilheiro nas áreas sob seu controle, localizadas nas regiões mais remotas, montanhosas e selváticas do vasto território colombiano. Nessas áreas exerciam governo, administravam justiça, arrecadavam impostos, mantinham a ordem. Quando se desmobilizaram e foram para os locais de concentração, esses territórios foram ocupados por dissidências que nunca aderiram ao processo de paz, como a Frente 1 do Guaviare, comandada por Gentil Duarte. Além dessas dissidências, também o Exército de Libertação Nacional foi para as áreas vazias. Nos territórios que as mais de 60 frentes das FARC desocuparam, também se estabeleceram vários grupos armados do narcotráfico: os Rastrojos, o Cartel do Golfo, os Pelusos, entre outros, buscando controlar as fronteiras e os corredores para retirar a droga. Ou seja, todos se instalaram, exceto o estado. A violência aumentou devido à disputa pelo controle territorial. Até o momento, vários desses grupos fazem incursões e operam fora das fronteiras, invadindo o território venezuelano e equatoriano; e onde se instalam, corrompem, extorquem e estabelecem todo tipo de alianças que facilitam o seu funcionamento. A eles se juntou a dissidência liderada pelo negociador de paz, Iván Márquez, acompanhado por “el Paisa”, chefe das tropas especiais das FARC; estes abandonaram o processo de paz, se sublevaram novamente, e se identificam como FARC-Nueva Marquetalia. Mas a violência não é o único fator que perdura. O mesmo aconteceu com a profunda desigualdade social que impera há muito tempo na Colômbia, como em muitos outros países de nossa região. Segundo dados do Departamento Administrativo Nacional de Estatística, DANE, 42,5% da população colombiana vivia na pobreza em 2020, um aumento de 6,8% em relação a 2019. Ou seja, 21,02 milhões subsistem com menos de US$ 11 por mês.

3. Pandemia descontrolada

A Colômbia, como o resto da região, sofre há mais de um ano com a pandemia. Os números hoje são duros: quase três milhões de infectados e mais de 76 mil mortes. O ritmo da vacinação é baixo, sendo que até o momento, segundo dados do Ministério da Saúde, são cerca de 5 milhões de vacinados, dos quais 1,5 com ambas as doses. No final de abril as autoridades planejavam intensificar os seus esforços e chegar a 9 milhões de vacinados até o final de maio, o que obviamente será difícil na situação atual. Os colombianos, como a maioria dos latino-americanos, estão exaustos da quarentena, prejudicados pela recessão, especialmente os trabalhadores informais. Um horizonte infinito de pandemia assola a população.

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4. Esgotamento precoce do processo de paz

A paz veio, a maioria dos guerrilheiros e milicianos das FARC, cerca de 12 mil combatentes, participaram do processo. Mas o processo começou a amainar, os compromissos assumidos pelo Estado em termos de apoio aos ex-combatentes, regularização fundiária e outros acordados nas negociações foram cumpridos parcial e lentamente, e alguns diretamente não foram cumpridos. Ao assumir o governo do Presidente Duque, o descontentamento aumentou, com as autoridades questionando fortemente os mecanismos e poderes acordados na Justiça Especial de Paz. O pior é o grande número de assassinatos de líderes sociais, líderes de direitos humanos, representantes de deslocados e vítimas desde o fim do conflito. Quase meio milhar desde a assinatura dos Acordos, aos quais devem ser somados cerca de 200 ex-combatentes desmobilizados, a grande maioria deles por assassinos de aluguel, todos com ampla impunidade. O processo foi um fracasso? É cedo para fazer um juízo categórico, mas é evidente que nem tudo o que foi acordado nas longas negociações de Havana foi cumprido. O fundamental foi cumprido: o fim das ações armadas, o desarmamento da guerrilha e sua transformação em partido político. Uma parte não mensurável dos desmobilizados voltou para as montanhas, principalmente para a Nueva Marquetalia.

5. Recomposição da representação política

A Colômbia pós-conflito manteve algumas tendências históricas, como a desigualdade social, mas também impactou a política. Durante grande parte do século XX, a clivagem entre liberais e conservadores perdurou, mas o auge da guerra no final do século passado possibilitou o surgimento de uma nova clivagem, onde o uribismo se posicionou fortemente contra o resto. O fim da guerra liberou o problema que as FARC criaram para a social-democracia colombiana – algo semelhante ao que Sendero Luminoso criava para a esquerda peruana na época – e por sua vez, foi deixando o uribismo sem projeto. Falta pouco mais de um ano para que o mandato do presidente Duque termine e já se perfilam os presidenciáveis, entre os quais se destaca Gustavo Petro, um ex-militante do M19, logo membro do esquerdista Polo Democrático, e hoje ex-prefeito de Bogotá. As pesquisas dão a ele 30% de apoio e o segue com quase a metade disso o ex-governador de Antioquia, Sergio Fajardo. A ala direita do Centro Democrático está perdendo terreno e é bem provável que isso se acentue com as mobilizações. A prefeitura de Bogotá foi vencida por Claudia López, que não esconde sua condição de lésbica. As FARC tiveram um péssimo resultado eleitoral. Continuidade e mudança na Colômbia do pós-guerra.

Conclusão

Foi neste quadro de frustrações, mudanças, expectativas não atendidas e medo e desilusão diante da pandemia que o governo tentou uma reforma tributária que aumentava os impostos. Conhecemos a reação pela imprensa. As mobilizações acrescentaram novos pontos à agenda, impossíveis de ignorar se se busca uma solução: a investigação dos mortos e feridos destes dias, a responsabilidade política e institucional nisso tudo, uma análise profunda da Polícia Nacional, principal responsável pelas vítimas segundo os primeiros relatórios. Acrescentemos que também existem feridos e mortos entre os uniformados. O governo propôs um calendário de diálogo dilatado demais dada a urgência e gravidade dos acontecimentos. O Congresso convocou o Ministro da Defesa para dar explicações, as lideranças sociais condicionam o diálogo ao fim da repressão, o governo pede o fim de toda violência. A desordem, especialmente a interdição de estradas e ruas, está causando escassez e desabastecimento, exacerbando o drama da pandemia. A economia obviamente sofrerá mais. Em suma, a crise está a todo vapor, seu curso é incerto e exige que todos os envolvidos construam rapidamente uma saída. Caso contrário, as condições para um aprofundamento estão dadas. O que dizer se a crise persiste com suas consequências econômicas, sociais e migratórias, e bem ao lado de uma Venezuela já em crise há anos, um mundo andino convulsionado e um Brasil onde a pandemia contagiou tudo.

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*Texto publicado originalmente no site Perfil Argentina

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