O mito da moderação no Chile

Desde 1990, o Chile se destaca na América Latina por ser uma nação sem grandes choques em que seus presidentes não só chegaram ao fim do mandato, mas também foram protagonistas de uma alternância democrática absolutamente pacífica e moderada

O mito da moderação
“O objetivo de Pinochet era claro: evitar o retorno à política dos partidos políticos menores e das periferias do espectro ideológico, especialmente da esquerda”. (Crédito: Marcelo Hernandez/ Getty Images)

O Chile viverá hoje uma das eleições mais polarizadas e incertas desde o retorno à democracia. Segundo as últimas pesquisas, divulgadas há duas semanas, os candidatos mais votados têm posições ideológicas distantes da moderação que caracteriza o país desde 1990. No entanto, essas eleições têm outro protagonista além dos candidatos: o inconformismo da sociedade com sua política de classe. 

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Será por acaso que os dois candidatos que lideram as urnas sejam um jovem esquerdista que conta com o apoio do Partido Comunista e um ultraconservador que reivindica Augusto Pinochet? Não exatamente, porque se analisarmos o que têm sido os últimos anos, a política chilena foi conduzida por uma mensagem clara contra as estruturas e coalizões partidárias tradicionais que governam o país desde o retorno à democracia. 

Mas como o Chile passou de um modelo de estabilidade e moderação ideológica a um país atravessado pela polarização? Desde 1990, o Chile se destaca na América Latina por ser uma nação sem grandes choques em que seus presidentes não só chegaram ao fim do mandato, mas também foram protagonistas de uma alternância democrática absolutamente pacífica e moderada. Desde 1990, apenas duas coalizões governaram: a Concertación de Partidos / Nueva Mayoría, associada a posições de centro-esquerda, e a Alianza por Chile (ou em alguns anos chamada Chile Vamos) de centro-direita. 

Assim, o Chile tornou-se para a opinião pública latino-americana uma espécie de oásis onde a harmonia e o consenso prevaleciam naturalmente. Porém, muito pouco dessa alternância foi tão acidental quanto parecia, mas foi causada por um sistema eleitoral e pela distribuição de cadeiras projetada pelo ditador Augusto Pinochet antes do retorno à democracia. Esse sistema, denominado “binominal”, consistia em dividir a Câmara dos Deputados em distritos. Cada um desses distritos ou círculos eleitorais era composto por apenas duas cadeiras ocupadas pelos dois candidatos da lista mais votada. Nesse sistema, apenas as duas coalizões mais importantes tinham a possibilidade de acessar o Congresso e, portanto, ocupar espaços de poder. O objetivo de Pinochet era claro: evitar o retorno à política dos partidos políticos menores e das periferias do espectro ideológico, especialmente da esquerda. Portanto, graças a este sistema, o Chile manteve um bicoalicionismo moderado por 25 anos até o final do binômio em 2015, quando os cidadãos reivindicaram o direito de escolher outros partidos e o Chile substituiu seu sistema por um proporcional como conhecemos na Argentina. 

Desse modo, acreditar que o Chile foi um país onde a moderação veio apenas da opinião pública e que os eleitores escolheram livremente as opções centristas é mais um mito do que uma realidade. Com a incorporação ao Congresso de novos partidos fora das coalizões tradicionais, as demandas sociais ganharam visibilidade na arena política e com a eclosão de 2019 novas lideranças se posicionaram nos extremos do espectro ideológico. 

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E hoje, os candidatos presidenciais são representações fiéis desse fim da moderação. Embora seja verdade que os pesquisadores cometeram graves erros nas previsões das últimas eleições e, portanto, os resultados de hoje são incertos, a maioria dos consultores concorda que é altamente provável que os dois candidatos mais votados sejam o jovem deputado de esquerda Gabriel Boric e José Antonio Kast, um ultraconservador que representa as opções da extrema direita. Pelo contrário, Yasna Provoste (da Democracia Cristã e ligada à Concertación) e o partido de centro-direita Sebastián Sichel (Chile Vamos) estão vários pontos abaixo dos candidatos preferidos. Finalmente, e subindo nas pesquisas, está Franco Parisi, candidato que para alguns consultores pode até ser a surpresa da noite. Mas, mesmo nesse caso, a lógica seria a mesma: escolher candidatos que não venham de estruturas partidárias tradicionais e, assim, superar a lógica binária da Concertación-Alianza por Chile / Chile Vamos.

Ao contrário do que se esperava, o surgimento de candidatos nos extremos não ajudou a acalmar o clima social. A campanha presidencial de 2021 esteve envolvida em todos os tipos de escândalos, aumentando o descontentamento da sociedade em relação à sua classe política. Somente durante a última semana de campanha, José Antonio Kast negou que Pinochet fosse um ditador e declarou com total facilidade que não havia perseguidores políticos, sua plataforma de campanha foi duramente criticada por suas tentativas de restringir os direitos individuais em busca da segurança e da ordem, um candidato da aliança de Gabriel Boric foi acusado de fraude na destinação de recursos públicos e o próprio presidente esteve à beira de um impeachment por crimes de venda de mineradora. E tudo isso acontece enquanto Santiago experimenta manifestações semanais de diferentes grupos sociais e a Assembleia Constituinte está em processo de redigir uma nova Constituição Política a partir do zero.

O Chile vota em um clima de inconformidade social sem precedentes, o que torna muito difícil para as urnas prever com certeza quem pode ganhar, já que, como consequência desse descontentamento, as últimas eleições tiveram índices de abstenção muito elevados. 

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Por isso, não só nada foi dito ainda, mas estas eleições também nos lançam novas questões. Em primeiro lugar, será verdadeiro o prognóstico das pesquisas que dão a José Antonio Kast uma vantagem garantida? Será que Gabriel Boric conseguirá manter a segunda posição apesar dos escândalos e erros das últimas semanas de campanha? Qual será a atuação dos moderados Yasna Provoste e Sebastián Sichel? Será que Franco Parisi será a surpresa da eleição e conseguirá passar ao segundo turno ou os cidadãos o condenarão por não ter aparecido para fazer campanha em território chileno? Teremos que esperar até esta noite para descobrir.

*Por Clarisa Demattei – Graduada em Ciência Política (UCA). Pesquisadora do Centro de Estudos Internacionais (CEI-UCA).

*Este texto não reflete, necessariamente, a opinião da Perfil Brasil.

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*Texto publicado originalmente no site Perfil Argentina.

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