*POR ANTONIO LAVAREDA

Modelo viciado leva à Câmara 513 empreendedores individuais

Regra eleitoral obsoleta inviabiliza enraizamento dos partidos na sociedade e fragiliza a democracia.

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(Crédito: Divulgação)

Edmund Burke, o pai do conservadorismo, jamais poderia imaginar que o seu conceito de “livre representação” encontraria o paroxismo nos trópicos brasileiros. No “Discurso aos Eleitores de Bristol” (1774), declarou aos que o sufragaram ao Parlamento britânico que o exercício do seu mandato estaria desvinculado deles, e somente obedeceria aos desígnios que ele próprio identificasse, não aceitando espelhar a vontade dos representados.

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Pesquisas mostram, quatriênio após quatriênio, o Congresso brasileiro como o pior avaliado entre os nossos três Poderes —o Senado com nota melhor que a
Câmara—, mas são rarefeitas ou muito superficiais as discussões a respeito.  Cita-se com frequência entre os problemas o excessivo fracionamento das bancadas, mas se tangencia sua extensão e origem. A fragmentação real, na verdade, é muitas vezes maior que a medida pela distribuição das representações partidárias, na qual o país é recordista. Isso porque cada parlamentar leva consigo a consciência de que obteve seu  mandato em uma lógica fundamentalmente individualizada, pois a maioria absoluta das legendas inexiste na mente do eleitor.

O ditame da Constituição de 1988 ao configurar nossa democracia consagrou o papel dos partidos, vedando a possibilidade de candidaturas avulsas, reservando-lhes no conjunto o monopólio da representação da sociedade. Entretanto, hoje eles são quase todos hidropônicos, como aqueles vegetais cujas raízes sem solo ficam mergulhadas em líquidos nutrientes.

São, na prática, organizações legais-burocráticas, sem vínculos diretos com a população, que cartorialmente chancelam candidaturas, organizam bancadas e, a
partir do tamanho destas, extraem parcelas do fundo partidário, do fundo eleitoral e as muito ambicionadas fatias de verbas do Executivo. Neste último caso, vez por outra a expectativa se frustra, e o apoio prometido sobe no telhado. Em que país do mundo um governo entrante anunciaria pela manhã que uma legenda ocuparia três pastas do seu ministério para, à tarde do mesmo dia, o líder parlamentar afirmar que ele e os colegas votariam de modo independente? E como é que se naturaliza algo assim?

No momento em que boa parte do país se mobiliza para coibir ataques à institucionalidade democrática, é imperioso reconhecer que, além de defendê-la, será imprescindível fortalecê-la, pois é exatamente a fragilidade que oportuniza o proselitismo e a sanha dos seus inimigos. E isso convoca a participação de todos —políticos, sociedade civil e meios de comunicação— para revigorá-la. Há vários fatores que explicam as patologias do nosso sistema político, mas um deles tem um papel central nessa etiologia: o modelo de lista proporcional “desordenada” que o Brasil pratica de forma absolutamente singular nos seus detalhes, como mostraram Lavareda (1991), Giusti (1994), Nicolau (2017) e Costa Porto (2022), e que é nefasto por pelo menos cinco motivos.

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1) Ele gera nos três níveis da federação contextos de seleção darwiniana. Disputas renhidas com um copioso número de concorrentes, o que, por si só, eleva às alturas o custo das mesmas. O triunfo é reservado em muitos casos aos campeões do “extrativismo”, sejam eles de esquerda, centro ou direita. Por essa designação, entenda-se a capacidade de obter o máximo possível de recursos provenientes de emendas —no caso dos incumbentes, que beneficiarão prefeitos que os retribuirão com votos—, de doadores, do apoio de entidades, de organizações variadas, ou mesmo da fortuna familiar. Ao final da jornada, temos na Câmara Federal, rigorosamente, 513 empreendedores individuais. De pouco adianta a ação afirmativa. Mulheres tiveram direito a 30% do fundo eleitoral.

Pouco afeitas à briga de cotoveladas dessa competição, só elegeram 18% das vagas. O extrativismo mencionado é, a princípio, legal, mas nem sempre, como a imprensa já cansou de registrar. Por conta disso, circulam rumores de campanhas orçadas ano passado em valores estratosféricos —mais de R$ 10 milhões, de R$ 20 milhões, e até mais de R$ 50 milhões. Algumas exitosas, outras não. O certo é que, embora haja também uma parcela expressiva de recursos públicos envolvidos, é impossível a Justiça Eleitoral fiscalizar a contento 28.274 contas. Não pode ser saudável um modelo que, pelo seu custo, induz à busca desenfreada de recursos, e que não resistiria a um exame com lupa da contabilidade dos concorrentes. Por quanto tempo a política continuará a bailar na beira desse abismo?

2) O sistema alveja no cerne a coesão partidária, ao transpor para o interior de cada legenda o grau máximo de competição. O principal adversário do candidato
não é um antagonista de outra agremiação, mas o seu colega de partido que pode ocupar o lugar que lhe caberia em função do número de cadeiras que supostamente será alcançado pela sigla. A partir daí, o “vale tudo” se estabelece, e a linha da cintura é ignorada. A crônica política fornece exemplos à mão cheia de episódios de antropofagia entre  correligionários.

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3) Promove uma exacerbada personalização da representação. Apenas 15 dias após a votação do primeiro turno em 2022, pesquisa Ipespe/Abrapel apontou que
50% dos entrevistados não lembravam o nome do partido dos candidatos em quem tinham votado para a Câmara Federal e assembleias estaduais. A pesquisa
não checou se os demais lembravam corretamente das siglas. Provavelmente parte significativa não cumpriria esse requisito.

Outras pesquisas acadêmicas, como a do Eseb (Estudo Eleitoral Brasileiro), em outros anos registraram que, 45 dias após a eleição, só um terço dos entrevistados
era capaz de citar o nome do candidato proporcional em quem havia votado. Imaginem as respostas que obteremos se repetidas as duas perguntas um ano ou
dois anos após a eleição. Escolhas “desimportantes” geram rápido esquecimento. E a desconexão entre candidatos e partidos não é inócua. Sem essa “amarra” o
parlamentar pode flutuar, trocando de aquário a cada “janela”, ou contribuir para fundir agremiações ou o que lhe for conveniente, autonomizado pela invisibilidade da marca partidária.

4) O modelo deturpa papéis básicos dos partidos na democracia. O papel de agregação e articulação de interesses sociais é substituído pela justaposição das
agendas de empreendedores individuais. Perde-se a função de âncoras políticas estabilizadoras do regime, porque sem conexão social não podem estruturar e
orientar fatias da opinião pública, organizando a informação política relevante. E muito menos podem ajudar o cidadão a avaliar de forma sinóptica os candidatos ou questões em tela. A propaganda eleitoral dos cargos legislativos é quase sempre mero pastiche biográfico.

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Por isso, quando vista, não raro é recepcionada com risos e deboche. Vítima das listas desordenadas disponibilizadas pelos cartórios partidários, o eleitor paulista, por exemplo, no ano que passou teve que escolher, de última hora como quase todos fazemos, um nome para deputado federal entre 1.540 candidatos, e mais um entre os 2.059 que buscavam a deputação estadual. Há o mínimo de racionalidade nisso? Parte significativa dos eleitos necessitará depois buscar um símbolo, uma marca, que auxilie sua identificação nessa autêntica selva na próxima competição. O caminho mais rápido será patrocinarem ou se somarem a iniciativas populistas esdrúxulas, exequíveis ou não, que chamem atenção e lhes credenciem individualmente aos olhos dos eleitores desorientados. Essa pseudo solução individual só contribui para deslegitimar a instituição. Quem tiver dúvidas, examine a relação de projetos em tramitação.

5) E, por fim, e ainda mais delicado, a governabilidade fica à mercê da capacidade de “sedução” dos governos e dos presidentes das casas ao nível individual. Para as questões correntes os representantes ainda podem ser disciplinados pelos líderes partidários com a ajuda do regimento. No entanto, quando se tratam dos grandes temas, em especial dos que exigem PECs, a tal disciplina se esvai e tudo passa a depender de “incentivos laterais seletivos”. Deles, todos lembramos a problemática tipologia utilizada na Nova República, as emendas do “orçamento secreto” sendo a versão mais recente sob investigação. Por óbvio, não há modelos de representação ideais, mas quando se cogitam mudanças a única bússola razoável é identificar qual regra, além de mais factível, ajudaria rapidamente a enfrentar a maior patologia do sistema —no nosso caso, a hiper personalização dos mandatos parlamentares, causa e consequência da inviabilização dos laços de representação dos partidos na sociedade. E, como decorrência, da opacidade de parte considerável do jogo político que se dá longe dos olhos da população.

O caminho plausível é o da adoção do sistema proporcional de listas ordenadas, adotado em países culturalmente parecidos com o nosso, como Portugal, Espanha, Argentina e Uruguai. Ele não contradiz a Constituição, não requerendo PEC. Pode ser viabilizado por lei ordinária, simples, sem muitas firulas, deixando que ao longo do tempo os próprios partidos optem pelo modo de aprovação das respectivas listas, apenas assegurando aos atuais detentores de mandato uma posição destacada no ordenamento. Alguém dirá que essa proposta foi rejeitada em momentos anteriores, mas isso não serve como argumento dissuasório. Por acaso lá atrás havia clareza de que a democracia estava em perigo? De que era preciso reforçar, concretar, os pilares da representação? Com a mudança, em um ou no máximo dois ciclos eleitorais, teríamos um choque de partidarização, com as legendas enraizadas no tecido social, correntes de opinião finalmente bem assentadas e a óbvia consequência de diminuição do número de legendas, retirando-nos da triste liderança mundial de fragmentação parlamentar.

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Além dos benefícios gerais para o sistema político, o que inclui campanhas 80% mais baratas, para a maioria dos segmentos específicos não haveria qualquer
prejuízo, ao contrário. A esquerda, que por circunstâncias históricas conta com alguma identificação partidária, poderia se rejuvenescer, entronizando novos quadros que individualmente não conseguem encarar a forte correnteza do modelo atual. A direita bolsonarista se beneficiaria pela capacidade de propelir ideologicamente listas ordenadas. Os evangélicos descarregariam seus votos e consolidariam listas que a hierarquia das igrejas apontasse. Os partidos históricos de centro —MDB, PSDB, Cidadania— teriam finalmente capacidade de utilizar o recall e a marca que ainda detêm para reconquistar bancadas que foram esvaziadas em disputas personalizadas.

Quanto ao novo centro (PSD) e a direita liberal (União Brasil, Progressistas e outros) teriam a seu favor, inicialmente, a popularidade dos muitos governadores,
senadores e prefeitos para turbinar as respectivas legendas. Na lógica desse modelo, além de os partidos se esforçarem para evitar o risco de “maçãs podres”, todas as listas se veriam compelidas utilitariamente a apresentar programas e mensagens claras com os quais estariam naturalmente comprometidos seus integrantes. Assim, os eleitores saberiam, por exemplo, se a bancada na qual votarão apoiará ou se oporá aos candidatos a governo nas três esferas. Depois, ficaria muito mais fácil acompanhar minimamente o seu desempenho durante a legislatura. Essa transparência permitiria punir ou gratificar a legenda na próxima eleição. Seria bom para todos, ou quase todos. Os únicos prejudicados seriam os poucos políticos eventualmente dependentes da opacidade do sistema atual. E que, por isso, arrumam todo tipo de desculpas para se opor à ideia. Embora sabendo que, sem essa necessária partidarização da sociedade, a democracia
brasileira seguirá politicamente invertebrada, mais suscetível que outras a vergar sob a demagogia e a violência dos seus inimigos.

*Antonio Lavareda é Doutor em ciência política e professor colaborador da UFPE (Universidade Federal de Pernambuco). Presidente de honra da Abrapel (Associação Brasileira de Pesquisadores Eleitorais).

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