O que é esse novo mercado de figurinhas NFT? Há vinte anos, uma exposição organizada pela Royal Academy de Londres incluía uma obra de Maurizio Cattelan, La Nona Ora, cujo título se refere ao momento, três da tarde, em que para os cristãos, Jesus diz: “Meu Deus, por que você me abandonou?”
A instalação, em sua época, percorreu um longo caminho. É uma escultura hiper-realista de João Paulo II, vestido com uma batina branca, segurando a tala na mão e caído derrotado, esmagado, por um meteorito que atingiu seu corpo. Ao seu redor, o chão está repleto de fragmentos de vidro que dramatizam o impacto da quebra de um suposto teto de vidro.
A obra suscitou muitas opiniões, a começar, é claro, pelas religiosas, mas as vindas da crítica diminuíram seu mérito de ruptura pelo fato de ter sido exposta nos salões da academia. Foi justamente lá que foram exibidos os novos filmes Young British Artists, promovidos pelo publicitário Charles Saatchi. Talvez o artista desse movimento que tenha a ligação mais próxima com Cattelan seja Damien Hirst, famoso por seu tubarão embalsamado pelo qual um colecionador pagou 12 milhões de dólares. O crítico Robert Hughes, que chamou Hirst de pirata, comparou seu trabalho ao pior Warhol e deu-lhe grande habilidade como manipulador, considerando os compradores de suas obras como meros aspirantes a colecionadores que se sentem ignorados se não tiverem um Hirst em Sua coleção. Hughes disse que poderia ter razão se Hirst tivesse pelo menos capturado o tubarão, mas foi capturado por um pescador australiano pago por Saatchi. A obra comprada pelo corretor americano Steve Cohen acabou quebrando. Diante disso, Hirst não hesitou: limitou-se a trocá-lo por outro tubarão.
No ano passado, a primeira obra de arte totalmente digital foi leiloada na Christie’s. É uma colagem de milhões de bytes reunidos em um arquivo JPG criado pelo artista Mike Winkelmann, conhecido como Beeple. O preço de venda foi próximo a 70 milhões de dólares, consolidando a chamada arte exclusivamente binária e conhecida como NFT (Non-Fungible Token), entendendo por “token” uma unidade de valor baseada em criptografia, como a criptomoeda Ether, uma das as formas de pagamento para adquirir essas obras.
Em um breve ensaio sobre arte, César Aira argumenta que a arte contemporânea é um voo para a frente tentando evitar a reprodução. É impossível que revistas ou catálogos exibam em suas páginas fotografias de muitas obras, pois são instalações cuja limitação está em registrar um aspecto delas.
As figurinhas NFT, longe de evitar a reprodução, deleitam-se com isso e a diferença entre o dono da obra e a versão JPG que pode ser recebida pelo Whatsapp ou Telegram, visto no Twitter ou Instagram, é que o dono tem um contrato de posse que é emitido no momento da compra, mas qualquer pessoa pode observá-lo com a mesma textura, técnica e luz sem ter que visitar, por exemplo, o Palácio Doria-Pamphili em Roma para ver o original do retrato do Papa Inocêncio X de Velázquez. Um cromo NFT aparece na tela de qualquer celular ou tablet: o suporte é digital sem diferenças entre original e cópia.
Há quem fale em levar essas obras para os museus. A crítica Estrella de Diego acredita que a intenção de levar a arte de rua para os museus é um disparate, pois o lugar dessas obras é o muro do bairro em que seu autor as pintou. A remoção de NFTs de telefones celulares é uma operação semelhante
Nos anos 80, quando Juan Pablo II visitou a Argentina, o grupo de grafiteiros Los Vergara assinou uma intervenção perto da praça Houssay. O grafite dizia: “O Papa está chegando, Cristo está chegando. O papa está saindo, está saindo Cristo?” O tempo o apagou sem que ninguém pensasse em levá-lo a um museu como o Papa de Velázquez ou a versão daquele quadro de Bacon, que está na Tate.
*Este texto não reflete, necessariamente, a opinião da Perfil Brasil.
*Texto publicado originalmente no site Perfil Argentina.