A explosão milionária de memes e bitcoins

O mundo para muitos enigmático do blockchain e das criptomoedas produziu obras de arte digitais exclusivas que são leiloadas por centenas de milhares de dólares

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É preciso ser corajoso para tentar explicar do que se trata o Bitcoin. Alguns economistas consultados para este artigo desculparam-se e reconheceram que é difícil colocar em palavras simples como funcionam as criptomoedas. E algo semelhante acontece com os “Non Fungible Tokens” (NFT ou token não fungível), as unidades de dados que estão por trás da mania milionária por obras digitais no mundo da arte.

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Fantoches

Felizmente, este repórter conversou com Alfredo Roisenzvit, professor de Crypto e Blockchain do programa de mestrado em Finanças da Universidade de San Andrés, que concordou em descrevê-lo praticamente com fantoches.

É possível que as criptomoedas estejam passando por um momento de desvalorização nos dias de hoje, mas também é verdade que elas já estão instaladas na economia global e não parece que vão desaparecer: muito pelo contrário.

Bitcoin, ou qualquer outro similar, “é ouro digital que você pode ter armazenado no seu celular e que ninguém pode tocar”, sintetiza Roisenzvit. É uma invenção eletrônica baseada em uns e zeros que, de fato, está se tornando uma “moeda” de pagamento aceita, a despeito das palhaçadas de Elon Musk nos últimos dias.

Roisenzvit sugere que, “para entender o Bitcoin, é preciso entender como funciona o dinheiro”. Nesse sentido, acrescenta, “o dinheiro não é invenção do Estado, mas da humanidade”, desde os tempos em que os nossos antepassados necessitavam de trocar o excedente de cenouras pelos coelhos ou porcos que o vizinho já não queria.

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Obviamente, uma cenoura não valia o mesmo que uma vaca, então algumas pessoas astutas perceberam que a troca tinha que ser sofisticada e aplicar um elemento intermediário, divisível, que serviria para negócios mais justos e possíveis.

Assim, passou por grãos, prata ou ouro. Até que outros ancestrais astutos decidissem que era hora de criar um símbolo universal que pudesse ir além, ser mais confortável e flexível.

Enquanto isso, a humanidade, explicou o professor da Universidade de San Andrés a PERFIL, “começou a evoluir para atividades econômicas mais complexas, como empréstimos, garantias ou aluguéis, o que gerou a necessidade de estabelecer confiança entre as partes”.

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A forma de gerar essa confiança, de dificultar a trapaça nas operações econômicas, “era produzir um árbitro, que inicialmente foram os príncipes e acabaram sendo os Estados”, disse.

Como parte desse processo, continua, “os governos se atribuíram o poder de emitir o símbolo, na qualidade de árbitros, e em vez de usar o próprio ouro, passaram a imprimir papéis que ‘valiam’ o ouro”.

“E então eles perceberam que era mais fácil fazer isso sem o respaldo do ouro”, reclama Roisenzvit antes de revisar tantos problemas modernos, como a inflação e a corrupção, que acabaram derivando dessa decisão.

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Papel e símbolo

A questão é que, desde o surgimento do dinheiro como papel-símbolo, tornou-se necessário criar registros de operações, para evitar fraudes e outras situações desagradáveis, dando origem à arte da contabilidade, os famosos “haveres e deveres”.

“Hoje você tem um livro onde você anota quem tem quanto, um símbolo que serve para as trocas que estão anotadas naquele livro, e um árbitro, que é o governo”, resume o professor.

E, finalmente, chegando ao ponto das criptomoedas, Roisnezvit afirma que o Bitcoin representa “a primeira vez na história da humanidade que a computação permite prescindir do ‘árbitro’”, ou seja, do Estado.

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“Eu posso confiar perfeitamente que se eu enviar dez símbolos para o Pedro, o sistema vai ‘anotar’ isso para o Pedro, e que isso é inviolável, inalterável, que não haverá como ‘subornar’ o ‘árbitro’ para prejudicar alguma das partes, ou como “o ‘árbitro’ roubar a bola”, conclui.

O fato das criptomoedas se basearem em um sistema do qual participam centenas de milhares de pessoas em todo o mundo, armazenando, organizando, conferindo e verificando, eletronicamente, as operações de compra e venda, também permitiu uma revolução no mundo da arte. Um fenômeno que, como o Bitcoin, é democratizante, revigorante… e um pouco assustador.

Arte

Foi na esteira dessa explosão que chegaram ao estrelato os NFTs, unidades de dados (uma espécie de elos nesta cadeia infinita, ou blockchain) que são “registrados” em “livros de contabilidade” eletrônicos. Graças às qualidades do sistema, eles têm a capacidade de certificar que um elemento digital é único.

É o noivo perfeito para as obras de arte, elementos sempre ameaçados pela falsificação. É assim que, no altar da computação, os NFTs são os que abençoam a autenticidade de elementos como fotos, vídeos, games, memes, tweets, registros de áudio ou qualquer outro tipo de arquivo digital.

Antes que o mundo pudesse digerir a novidade, uma nova onda de criadores eletrônicos foi ao ataque, oferecendo e “vendendo” suas obras – também difíceis de digerir para as gerações que veem a arte como algo que pode ser pendurado ou exibido numa sala – em um mercado virtual ansioso por investir seus milhões de dólares.

O “vendendo” anterior ficou entre aspas porque, na realidade, o que o artista vende é o NFT e não a “obra” em si. Uma obra que, de qualquer forma, pode ficar – e normalmente fica – online, onde todos a podem ver e, se quiserem, até baixar uma cópia para o computador ou imprimi-la (e pendurá-la numa parede, claro).

O que o comprador está adquirindo é uma pilha de código informático que define, de forma praticamente inviolável, quem é o “dono” da obra produzida pelo artista eletrônico, e essa propriedade fica registrada nos “livros” de blockchain de forma semelhante às operações das criptomoedas.

É como se o leitor pudesse comprar, investindo um ou vários caminhões blindados cheios de euros, um pedaço de papel que lhe garante irrefutavelmente que ele é o feliz dono de La Gioconda, mesmo quando a Mona Lisa continua a sorrir no Louvre.

Novidade

Em meados de maio, o New York Times publicou uma longa reportagem sobre a nova arte digital, um testemunho da ressonância dessa revolução. Nela é possível conhecer a história de Victor Langlois, um “criptoartista” de apenas 18 anos que, diante do olhar do repórter do jornal estadunidense, Clive Thompson, vendeu seu quadro digital “The Sailor”, em um leilão no site especializado SuperRare, em nada menos que 80.000 dólares em Ethereum, uma das criptomoedas mais populares.

A família de Victor veio de El Salvador para os Estados Unidos e até recentemente o artista dormia no porão da casa de sua avó, que de vez em quando descia as escadas para repreendê-lo por suas obras de arte “horríveis”.

Com o que ele começou a arrecadar online com essas “obras horríveis”, Langlois deixou de ser pobre, mudou-se de Las Vegas para Seattle e saiu do armário como trans. Em sua “carteira” no SuperRare, ele tinha – enquanto era entrevistado – pouco mais de 109.000 dólares, produto de “The Sailor” e a venda de outra das suas produções digitais.

Fama

Entre as inúmeras obras cujos NFTs mudam de dono todos os dias, algumas se tornam famosas entre o público leigo, principalmente aquelas que já tinham vida própria como meme ou tinham viralizado.

Você se lembra da “Disaster Girl” (a Menina Desastre)? É uma fotografia que Dave Roth tirou da filha Zoe em 2005, e na qual a menina, então com quatro anos, aparecia frente a um prédio em chamas na cidade de Mebane, no estado norte-americano da Carolina do Norte.

A foto ficou no computador de Dave até 2008, quando ele a enviou para um concurso online sobre “capturas de emoções”. O sorriso entre malandro e perverso de Zoe ganhou menção no concurso e na publicação no site de uma revista especializada em fotografia digital. A partir daí, alcançou fama infinita na Internet por meio de memes que aproveitaram o gesto ambíguo da menina para comentar sobre qualquer assunto, de Justin Bieber ao coronavírus.

No final de abril, foi relatado que Zoe – que nada teve a ver com o incêndio – decidiu colocar a foto à venda na forma de NFT e conseguiu vendê-la por gritantes 180 Ethereum, cerca de 455.000 dólares no momento da preparação deste Artigo.

A jovem Roth, agora com 21 anos, disse que usará esse dinheiro para pagar seu empréstimo estudantil e doar o restante para instituições de caridade. Em declarações ao New York Times, que obviamente está totalmente imerso no assunto, Zoe afirmou que “a maneira como a internet se prendeu à minha foto, e a manteve viral e relevante, é uma loucura para mim”.

Outros grandes sucessos da nova arte digital são Nyan Cat do criador Chris Torres, um gatinho de corpo xadrez e combinado com um arco-íris, na estética de videogame vintage e na música de anime japonesa. A animação foi vendida por cerca de 600.000 dólares.

Sorrindo, Torres disse a um repórter da rede estadunidense CNBC em março que, na sua opinião, “os memes são a próxima grande novidade” no mundo da arte e dos investimentos.

“Acho que o espaço do NFT já estava pronto há muito tempo” para explodir, disse o animador, que chegou até a cunhar um neologismo para esse fenômeno: “memeconomia”.

Perigos

Outros personagens envolvidos neste ambiente sorriem menos e alertam que o fenômeno também pode ser uma armadilha. Por exemplo, um relatório da Technology Review, a revista online do Massachusetts Institute of Technology (MIT), observou que muitos artistas “estão se lançando em um mercado que pagará milhares de dólares pelo seu trabalho”, mas também estão encontrando “golpes, preocupações ambientais e o frenesi das criptomoedas”.

“Os NFTs se tornaram um tópico inescapável para qualquer um que ganha a vida como um criativo online, o que faz urgente entender um conceito profundamente impregnado no jargão das criptomoedas e da tecnologia blockchain”, observa Abby Ohlheiser, autora do artigo do órgão do MIT.

“Alguns prometem que os NFTs são parte de uma revolução digital que democratizará a fama e dará aos criadores o controle de seus destinos”, mas outros “apontam para o impacto ambiental das criptomoedas e se preocupam com as expectativas pouco realistas estabelecidas pela notícia de que o artista digital Beeple vendeu uma compilação de suas obras”, em formato JPG, “por 69 milhões em um leilão da Christie”.

Nesse sentido, o artigo de Thompson no Times também destacou que, “desde que a mania estourou há seis meses, os beneficiários dessa proliferação ilimitada de NFTs são, cada vez mais, pessoas que já são vencedoras na economia” midiática moderna, “de celebridades e marcas tradicionais até pessoas comuns que vendem um meme que gerou bilhões de cliques”.

Paris Hilton, lembrou o jornal de Nova York, “vendeu uma série NFTs de imagens digitais por mais de um milhão, os Golden State Warriors leiloaram os NFTs de uma coleção de memorabilia digital e o cara que tirou a famosa foto de um sanduíche de queijo do Fyre Festival está vendendo o NFT de seu tweet com a imagem para pagar um transplante de rim”.

Futuro

Quem marcará o caminho neste mercado de arte digital e NFTs? Paris Hilton ou as centenas de artistas como Victor Langlois? Colecionadores, criadores e galeristas mundo afora aguardam ansiosamente as novas tendências para decidir de onde extrair os milhões de dólares investidos em objetos únicos – reais ou digitais – que figuram entre as apostas favoritas nestes tempos de malemolência econômica.

Em todo caso, algumas coisas não mudam há séculos, por exemplo, que “o valor da arte é algo muito subjetivo”, lembra Maximiliano Hinz, diretor de operações para a América Latina da Binance, uma importante plataforma de negociação de criptomoedas.

Questionado sobre a possibilidade de que o mercado digital permita aos artistas evitar a necessidade de serem “canonizados” pela imprensa especializada e pelos galeristas para se consagrarem, Hinz admite que, “no caso dos NFTs, isso não vai mudar”. Porém, esclarece, será “mais fácil para eles se exporem ao mundo sem medo de que alguém lhes roube a autoria de uma imagem”.

Quanto aos preços exorbitantes, Hinz disse a PERFIL que “são valores que o mercado aceita”. Mas, ao mesmo tempo, acrescenta, nesse processo “os compradores estão fazendo algo muito maior, que é validar o modelo NFT”.

Com uma lógica que não é alheia ao mundo da arte “tradicional”, o executivo destacou que “se ninguém pagasse por um tweet ou meme centenas de milhares de dólares, então não haveria lugar para que outras obras fossem transacionadas, não porque a tecnologia não sirva, mas porque não haveria qualquer tipo de repercussão prévia que pudesse provocar o interesse dos artistas ou proprietários das obras”.

Afinal, o ímpeto por trás da compra de uma pintura de moda numa galeria sofisticada no ‘mundo real’, ou da compra online de um meme em forma de NFT, repousa em ambos os casos no mesmo conceito: ser o dono de algo “único” que, por muitas razões – algumas delas inescrutáveis – é desejado por muitas pessoas, pessoas que querem ter os “bragging rights” ou “o direito de se gabar” dessa propriedade, descreve Roisenzvit.

E embora “a materialidade seja superestimada”, afirma o professor de Crypto e Blockchain, também é verdade que, se todos fôssemos Andy Warhol, ficaríamos ricos pendurando uma banana na parede. Ou na Internet.

*Por Marcelo raimon – Jornalista, ex-correspondente da ANSA em Washington em Buenos Aires e Washington. Ele é especialista em questões da realidade israelense.

*Texto publicado originalmente no site Perfil Argentina.

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