Em um provocante texto de apresentação d’O Capital (Ed. Boitempo), de Karl Marx, o saudoso José Arthur Giannotti destaca as incompletudes presentes no tomo III da obra do pensador alemão. O processo de acumulação do capital levaria ao controle de todas as inovações tecnológicas, por parte de todos os capitalistas, explodindo assim a contradição do capitalismo. Segundo Giannotti, o constante desenvolvimento das tecnologias, aliado aos “graus de demanda e satisfação moral do consumo”, abalaram as estruturas da economia política marxiana. De lá para cá, passando pelo desastre do projeto revolucionário soviético, seus herdeiros foram abandonando gradativamente a economia política.
Da Teoria Crítica à Revolução Cultural, a esquerda passou a estudar os aspectos culturais e políticos da sociedade, afastando-se, assim, do debate socioeconômico. Dominar a História não mais seria criar uma leitura para a dominação do modo de produção, mas inserir os marginalizados dentro dos conceitos de civilização e cidadania. Qualquer tentativa de problematizar esse processo gera polêmica, e passa a ser vista como uma ação violenta contra o sujeito revolucionário. Surge desse processo as chamadas políticas identitárias, voltadas, inicialmente, para grandes grupos de pessoas, que buscavam reparar grandes erros históricos. No entanto, conforme ilustra o professor Mark Lilla, a partir dos anos 1980, “essa política cedera lugar a uma pseudopolítica de autoestima e de autodefinição cada vez mais estreita e excludente, hoje cultivada nas faculdades e universidades”.
Sendo assim, não é de se estranhar as reações vindas da academia, contrárias às ideias defendidas pelo texto “Luxo e riqueza das ‘sinhás pretas’ precisam inspirar o movimento negro”, de Leandro Narloch, publicado na Folha de S. Paulo. Claramente realizando uma leitura reducionista da obra do antropólogo Antonio Risério, Narloch destaca as trajetórias das “sinhás pretas” sem contextualizá-las no passado e no presente, responsabilizando “a época e seus valores diferentes dos nossos”, como se o racismo não fosse um dos nossos principais problemas sociais, irritantemente presente em todo o nosso “circuito dos afetos”. Claramente polemista e sem qualquer compromisso com o pensar a História, Narloch ganhou relevância ao estabelecer pontes com uma historiografia voltada para a lacração em detrimento do pensamento dialético, para retomarmos, aqui, as lições deixadas por Aristóteles, Hegel e Marx.
É notório que, nos vários textos contrários a Narloch, a discussão em torno da obra de Antonio Risério não obteve nenhuma importante reflexão. Debater um texto rico em detalhes e fontes, que destaca a presença de mulheres negras no comando de diversas atividades políticas, econômicas e culturais no Brasil escravocrata, ficou em segundo plano. Narloch conseguiu aquilo que objetivava: gerar a reação em favor de sua demissão, comprovando, novamente, o caráter antidemocrático de alguns movimentos identitários, que, ao mesmo tempo, são responsáveis pelas diversas lutas contra o racismo nosso de cada dia.
Nesse cenário de polarização das ideias, os debates em torno da escravidão e da sociedade colonial e imperial brasileira não tiveram destaque. Ao omitir os dados sobre o sistema escravista, Narloch deixa de compor em sua narrativa milhões de corpos, que foram e são violentados todos os dias no Brasil, apenas por serem pretos. Trata-se, portanto, de um texto pobre de sentidos reflexivos. Por outro lado, ao acusar o jornal de racista e defender a demissão do autor, seus críticos corroboram com o cerceamento da liberdade de expressão, pois o texto, embora medíocre, não faz nenhuma defesa à prática racista.
Diante de tal cenário desalentador para o debate público brasileiro, não é de se espantar que nossos índices de produtividade e desenvolvimento tenham estacionado nas últimas décadas, impedindo a redução das nossas desigualdades.
*Por Victor Missiato – doutor em História, professor de História do Colégio Presbiteriano Mackenzie Brasília. Membro do Grupo de Estudos Intelectuais e Política nas Américas (Unesp/Franca).
*Este texto não reflete, necessariamente, a opinião da Perfil Brasil.