Ucrânia e a complexa transição global

*Por Andrés Serbin – Analista internacional e presidente da Cries

Ucrânia e a complexa transição global
Outros atores estão ganhando cada vez mais destaque, como a OTAN, a UE e o governo ucraniano (Crédito: Andrew Burton/ Getty Images)

A confusão de reuniões, conversas e declarações – para não mencionar a cobertura da mídia – em torno da crise na Ucrânia ao longo da última semana vem se acentuando a níveis insuspeitos e criando uma complexa transição global. A crise constitui, sem dúvida, um capítulo crucial na reconfiguração das relações de poder e na transição que a ordem mundial está experimentando. Apesar de o jogo decisivo ser aquele que ocorre entre Rússia e Estados Unidos em torno da estabilidade estratégica global, uma miríade de atores se juntou a essa queda de braço com interesses diferenciados e possivelmente contraditórios.

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A troca de propostas e respostas por escrito entre os dois principais protagonistas, eixo principal da escalada de tensões, com sua ressonância midiática e silêncios não menos estridentes, no entanto, mantém abertos os canais de comunicação entre Rússia e Estados Unidos e a possibilidade que a diplomacia pode resolver o impasse.

Moscou expressou claramente suas demandas, mas está pessimista sobre a evolução das negociações que podem levar a um acordo, enquanto prepara uma resposta às propostas que Blinken enviou a Lavrov em Genebra. Washington, por sua vez, anuncia sanções e envio de tropas e promete assistência no caso de uma possível invasão russa da Ucrânia, explicando, no entanto, que não se envolverá em um novo conflito.

Outros atores estão ganhando cada vez mais destaque, como a OTAN, a UE e o governo ucraniano. Em causa está, por um lado, o destino da NATO, que apesar da sua expansão não conseguiu reformular a sua missão após o fim da Guerra Fria; as diferenças entre Washington e seus aliados europeus no âmbito da Aliança Atlântica afetadas pelas tensões e fissuras que se arrastam desde a presidência de Trump e a retirada dos EUA do Afeganistão; as diferenças entre os membros da União Europeia quanto à forma de lidar com a Rússia no quadro europeu, e suas posições em relação à situação na Ucrânia afetada não apenas por potenciais ameaças de guerra, mas também pelos poderosos interesses geoeconômicos em jogo – que marca as diferenças entre a França e a Alemanha e os ex-membros do bloco oriental, como a Polônia ou as ex-repúblicas soviéticas do Báltico; as reverberações da crise na OCDE e a fragilidade intrínseca do governo ucraniano não só diante de um problema que lhe diz respeito diretamente, mas também na demora em avançar com os acordos de Minsk, o que implicaria concessões e reformas políticas e que envolver os setores pró-russos do Donbass. E isso apenas sintetizando muito de perto a complexidade da situação nas esferas europeia e atlântica diante das incógnitas e incertezas que as abordagens e desdobramentos militares de Putin em território russo suscitam.

Mas também pesam as repercussões da crise em outros espaços: as questões que se colocam sobre o papel que a Organização do Tratado de Segurança Coletiva, cujos membros – liderados pela Rússia – intervieram na recente crise no Cazaquistão – pacto militar sobre o qual é pouco falado no Ocidente; o desempenho futuro da Organização de Cooperação de Xangai, composta por quatro países com capacidades nucleares (China, Rússia, Índia e Paquistão), à qual o Irã aderiu recentemente; as implicações para a Europa do acordo de “harmonização” entre a Rota da Seda promovido por Pequim e a União Económica da Eurásia criado por iniciativa de Moscovo e, principalmente, as reações futuras da China, que já manifestou o seu apoio às “legítimas preocupações” antes da visita de Putin a Pequim para se encontrar com Xi Jinping  durante as próximas Olimpíadas.

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Enquanto o foco da atenção ocidental está concentrado – não necessariamente de forma unânime – na ameaça de um potencial conflito na Europa Oriental e no impacto sobre a estrutura de segurança europeia que pode emergir da crise, o verdadeiro núcleo de tensão no processo de transição para uma nova ordem mundial, continua a ser implantado no Indo-Pacífico e, especialmente, no Mar da China Meridional e no Estreito de Taiwan, onde Pequim reforça sistematicamente sua projeção e sua capacidade militar.

Como diz um antigo provérbio russo “enquanto isso, a gata Vaska ouve e continua a comer”.

*Este texto não reflete, necessariamente, a opinião da Perfil Brasil.

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*Texto publicado originalmente no site Perfil Argentina.

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