O Quilombo dos Arturos, em Contagem (MG), organizou no início do mês passado uma cerimônia fúnebre de congado com poucas pessoas para sepultar Maria Auxiliadora da Luz, de 84 anos.
Matriarca da comunidade, ela sucumbiu à covid-19 seis dias após o patriarca Mário Brás da Luz, seu marido, de 86 anos, ter o mesmo destino. Tudo ocorreu antes que os dois pudessem celebrar mais um 13 de maio, data que marca a abolição da escravatura e também o Dia de Nossa Senhora do Rosário, padroeira da comunidade.
O casal não havia sido vacinado. Dias depois, uma de suas filhas também não conseguiu se recuperar da doença. “Em menos de 15 dias, perdemos três pessoas”, lamenta o motorista e percursionista Antônio Santos, sobrinho de Mário.
O número de óbitos nas comunidades quilombolas vem sendo acompanhado pela plataforma do Observatório da Covid-19 nos Quilombos, iniciativa da Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq) e do Instituto Socioambiental (ISA).
Eles mapearam, até o momento, 5.399 casos confirmados e 279 óbitos, o que corresponde a uma taxa de mortalidade de 5,16%. O percentual supera a média nacional de 2,8%.
O fisioterapeuta Hiago Daniel Heredia Luz, neto de Maria Auxiliadora e de Mário, conta que uma fatalidade impediu que o casal fosse vacinado pelo critério de idade.
“Quando chegou a vez deles, os dois estavam com sintomas gripais e, pelas orientações do Ministério da Saúde, não se deve vacinar nessas condições. Tem que esperar a melhora dos sintomas. Quando eles poderiam finalmente ser vacinados, eles pegaram a covid-19”, conta.
Cerca de duas semanas após a contaminação do casal, quilombolas de todas as idades começaram finalmente a ser atendidos como grupo prioritário em todo o país.
“Não apenas a vida dos meus avós como a de muitas outras pessoas teria sido poupada se a vacinação tivesse sido garantida de forma mais hábil. Para que as doses chegassem aos quilombolas, foi preciso uma articulação nacional”, diz Hiago.
Fora do plano
O Plano Nacional de Imunização (PNI) previu quatro fases para atendimento a grupos prioritários na vacinação contra a covid-19. Embora as comunidades indígenas tenham sido incluídas logo de início, os quilombolas ficaram de fora.
Em fevereiro, o Supremo Tribunal Federal (STF) julgou uma ação movida pela Conaq – Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamento (ADPF) 742 – e determinou o prazo de 30 dias para que o Ministério da Saúde elaborasse um plano de combate à pandemia nas comunidades quilombolas. Elas foram incluídas na segunda fase de vacinação, que teve início no final de março. Mas a maioria dos planos estaduais só conseguiu contemplar os quilombolas em abril.
Uma vez dentro na segunda fase da vacinação, o Quilombo dos Arturos foi rapidamente atendido pelo município de Contagem, mas essa não foi a realidade em todo o país. Houve situações complexas em outros pontos do Brasil e algumas comunidades ainda lutam pelo acesso à vacina.
No Ceará, entidades de representação dos quilombolas elaboraram uma relação com 82 comunidades e entregaram à Secretaria de Estado de Saúde.
“Apenas duas comunidades não foram atendidas. A prefeitura de Aracati se recusou a vacinar os moradores do Quilombo do Cumbe e do Quilombo de Córrego de Ubarana”, conta o educador popular João Luís Joventino do Nascimento.
Como o município não deu início à vacinação, os quilombolas acionaram a Defensoria Pública do Estado e a Defensoria Pública da União.
Uma ação foi movida na Justiça Federal. Na primeira instância, o juiz ordenou apenas o atendimento à comunidade de Córrego de Ubarana, pois considerou como pré-requisito um documento do processo de demarcação de terra emitido pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra). O Quilombo do Cumbe, como a maioria das comunidades quilombolas do país, ainda não obteve a demarcação, embora esteja certificada pela Fundação Palmares, órgão vinculado ao Ministério da Cidadania.
Um recurso foi apresentado e, em segunda instância, a vacinação foi enfim determinada.
“Mesmo com a decisão, tivemos problemas. A prefeitura queria que nós fôssemos para a sede do município, descumprindo a orientação do PNI que estabelece a vacinação dos quilombolas em seus territórios. Nós não aceitamos. Até que a Defensoria Pública conseguiu fechar um acordo com o município”, disse Nascimento.
Na última semana (quarta, 9, e quinta-feira, 10), a prefeitura de Aracati finalmente atendeu a população em cumprimento a uma determinação de Justiça. Foram vacinadas 129 pessoas. Procurado, o município não se manifestou sobre a situação.
Evolução das vacinas
Até a última sexta-feira (11), 495.938 quilombolas haviam tomado uma dose da vacina de covid-19 e 40.791 tinham recebido as duas doses, segundo informações da plataforma LocalizaSUS, do Ministério da Saúde.
Isso significa que 43,7% já foram atendidos, segundo estimativas da pasta. No entanto, apenas 3,6% receberam as duas doses.
De acordo com o Plano de Operacionalização de Vacinação, existem ao todo no país 1.133.106 quilombolas, distribuídos em 1.278 municípios. O Ministério da Saúde informa que esses números estão baseados no último Censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), realizado em 2010, e nas áreas mapeadas em 2020.
“Vale ressaltar que a pasta trabalha em conjunto com estados e municípios para atualização constante desses dados”, acrescenta o texto.
A Conaq considera, por sua vez, que essas estimativas subestimam o número de quilombolas, o que pode afetar a disponibilidade de doses. O próprio IBGE possui dados mais atualizados que os do Censo de 2010. Uma nota técnica do órgão, publicada no ano passado, estima 5.972 comunidades em 1.674 municípios. Com base nesses dados, o número de cidades que abrigam comunidades quilombolas é 31% superior ao previsto no Plano de Operacionalização de Vacinação. Por sua vez, a Fundação Palmares tem 3.471 quilombos certificados no país, mas não possui estimativa populacional.
Impasses
Em alguns locais, a vacinação ainda gera impasses decorrentes de divergências entre quilombolas e autoridades. Um deles ocorre em Caiapônia (GO). Sem uma estimativa oficial da população residente na comunidade Cristininha, a associação dos moradores diz ter encaminhado uma lista que foi recusada pela Secretaria Municipal de Saúde. “A prefeitura não quis aceitar nossa comunidade como quilombola”, diz a presidente da entidade, Edissonia Benedita Costa.
Ela conta que, com o apoio da Conaq e do Ministério Público de Goiás, foi possível viabilizar a aplicação das primeiras doses. “Por enquanto, foram vacinadas 85 pessoas. Ainda estamos brigando para vacinar o restante. Priorizamos aqueles que moram com mais pessoas dentro de casa. Tem famílias que são mais de dez pessoas em uma mesma casa. Há idosos e filhos que saem pra trabalhar. A comunidade deu prioridade a essas pessoas, que teriam mais risco. Praticamente fizeram a gente escolher quem é que pode morrer e quem é que vai ser vacinado”, critica. Segundo ela, cerca de 200 pessoas ainda precisam ser vacinadas.
O secretário de Saúde da Caiapônia, João Bosco, afirma que a comunidade foi atendida. Segundo ele, o município demandou a entrega de uma relação de nomes que tivesse a anuência do Ministério Público. “É para resguardar o secretário da saúde de qualquer responsabilidade pelos nomes apresentados”, justifica.
Insegurança alimentar
No âmbito da ADPF 742, além de cobrar o plano de vacinação voltado para os quilombolas, o STF também suspendeu demandas judiciais envolvendo direitos territoriais dessas comunidades. A decisão foi comemorada pela Conaq e por outras entidades como um atendimento parcial das demandas.
Elas cobram um plano mais amplo que permita às comunidades acesso às medidas de proteção recomendadas pela Organização Mundial da Saúde (OMS) tais como itens de higiene e equipamentos de segurança individual como máscara. Defendem ainda medidas que assegurem a proteção territorial durante a pandemia, além do acesso à água potável e da segurança alimentar, de forma a viabilizar o isolamento social para a população quilombola.
De acordo com a organização não governamental Terra de Direitos, diversas comunidades estão enfrentando dificuldades de produção e acesso a alimentos, o que também interfere na saúde dessas populações e na capacidade de lidar com uma eventual infecção. Um exemplo, citado pela entidade, é o do Quilombo Pitanga dos Palmares, em Simões Filho (BA), onde a renda vem da pesca, da agricultura e do artesanato. A suspensão das feiras estaria deixando os moradores em situação econômica debilitada.
A organização considera que há o agravamento de uma realidade já conhecida. Nas últimas décadas, o Brasil experimentou avanços na segurança alimentar da população negra e parda.
Apesar disso, em 2011, um levantamento do extinto Ministério do Desenvolvimento Social com 169 territórios quilombolas titulados constatou que a situação dos seus moradores era pior do que a da população negra e parda como um todo. Do total de domicílios visitados, 47,8% apresentavam situação de insegurança alimentar, taxa que atingia 62% na Região Norte.
(Agência Brasil)