Lula recuperou um instrumento mais valioso do que os direitos políticos, recuperou a voz. Após cinco anos de silêncio na imprensa, foi ouvido novamente. E seu discurso é música para os ouvidos do maior público que o Brasil pode oferecer, o dos “despossuídos”.
Nesse cenário que parece ter sido criado para ele, no palanque político, ninguém calibra o *¹diapasão social como faz o ex-sindicalista metalúrgico. Acerta nos altos ao atacar e nos baixos ao defender. Só ele transforma um ritmo popular em música erudita. Falando para a plateia, Lula é Mozart.
Depois de ouvi-lo nesta quarta-feira (10), no contexto atual e de eterna desigualdade brasileira, suas notas diatônicas, traduzidas em palavras, parecem as mais adequadas para acreditar e comover. Uma grande pena é que suas notas são tocadas pela sinfonia do PT, que desafina os tons e ignora certas melodias, não por causa da partitura, apenas porque seus músicos não são como ele, são desafinados. Moralmente, óbvio.
Separar Lula do PT é tão necessário quanto separar Fernando Henrique Cardoso de sua própria orquestra, aquela que flerta com o absurdo de transformar a audiência da TV Globo em votos – só isso pode justificar que alguém pense em transformar um apresentador de auditório sem carisma como Luciano Huck, em um candidato partidário.
Em vez de envelhecer, Lula parece ter crescido nessa época de prisão e ostracismo, não só porque não expõe seu ressentimento por quem o julgou sem a necessária imparcialidade e sem a competência jurídica do caso, mas principalmente porque explica melhor a sua harmonia e organiza mais amplamente o seu repertório: saúde, emprego, educação e tudo o que as pessoas lhe pedem em cada ‘bis’.
É um “animal político” inigualável, como não houve outro nesta geografia e, entre os vizinhos, apenas o peronista argentino recentemente falecido, Carlos Menem, se aproximou dele. O uruguaio Mujica é outra coisa, com mais caixa de som do que cordas para tocar.
Lula é compositor e intérprete; e também *²luthier. Dar a ele um palanque e um microfone é como ouvir Caruso se apresentando com um Stradivarius no La Scala de Milão. É único.
A sua candidatura está lançada e o seu rival será seguramente o melhor ouvido absoluto que já enfrentou e poderá opor-se a ele, o excelente solista João Doria. O único com credenciais compatíveis, com outro *³solfejo, é claro, mas capaz de corrigir os pentagramas que corromperam ou não completaram seus antecessores. Se são eles que chegam ao segundo turno em 2022, com certeza o país terá chance de melhora, recuperação e crescimento, algo que infelizmente não acontecerá com a terceira opção, Jair Bolsonaro, a quem a pandemia ajudou a desnudar sua insensibilidade epidérmica com o popular e a multiplicar seus desatinos verbais. Sérgio Moro, o quarto midiático, um lobo ambicioso que se disfarçou de cordeiro e cujos uivos logo foram descobertos, nunca foi e não será.
Bem-vindo, Lula. Prepare-se, Doria. Adeus, Bolsonaro. Se resigna, Moro. O anfiteatro retoma a musicalidade política que o Brasil, por sua grandeza e potencial, exige. Os desiguais, talvez, voltem a cantar e os donos das salas possam ampliá-los e melhorar sua acústica.
Os sonhos das noites de verão têm uma nova chance de se tornar realidade. Dois grandes regentes, com estilos opostos, começam a ensaiar. Lula-la e Doria-rá. E embora os ingressos ainda não estejam à venda, neste dia 10 de março de 2021, eles já foram enviados para a gráfica. Prepare-se para bater palmas!
*¹ instrumento metálico em forma de forquilha, que serve para afinar instrumentos e vozes através da vibração de um som musical de determinada altura
*² profissional especializado na construção e no reparo de instrumentos
*³ música escrita
Este texto é de responsabilidade do autor e não reflete necessariamente a opinião da PERFIL.