mercadoria fictícia

A ficção do trabalho-mercadoria

*Por Alain Supiot – Autor da Obra “Não é mais o que costumava ser”. SXXI Editora (fragmento).

A ficção do trabalho-mercadoria
(Crédito: Canva Fotos)

Uma das diretrizes características do capitalismo tem sido tratar o trabalho, a terra e o dinheiro como mercadorias. Mas é sobre o que Karl Polanyi chamou de “mercadoria fictícia”. É feito como se fossem produtos intercambiáveis ​​em um mercado, quando na realidade são as próprias condições de produção e comercialização. No entanto, para serem sustentáveis, essas ficções precisam estar amparadas por montagens jurídicas que as compatibilizem com o princípio da realidade. Porque, como afirma veementemente a Declaração de Filadélfia, “o trabalho não é uma mercadoria”.

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O trabalho, de fato, não é separável da pessoa do trabalhador, e sua realização implica ativar um empenho físico, uma inteligência e habilidades que se inscrevem na singularidade histórica de cada vida humana. Para que a ficção do trabalho-mercadoria se sustentasse no tempo, foi necessário que a lei incluísse em cada contrato de trabalho um estatuto que levasse em consideração o longo tempo de vida humana, para além do curto tempo de mercado. Assim, a noção de mercado de trabalho repousa sobre uma ficção jurídica. No entanto, as ficções jurídicas não são ficções novelísticas, que nos permitiriam libertar-nos das realidades biológicas e sociais, mas, pelo contrário, técnicas imateriais que nos permitem ajustar as nossas representações mentais a essas realidades.

Quase me envergonho de ter de recordar estes fatos elementares, mas sou obrigado a fazê-lo porque vivemos tempos em que as ficções jurídicas subjacentes aos conceitos de “contrato de trabalho” e “direito de propriedade” são tidas como realidades.

Assim, a noção de “capital humano”, juntamente com a de emprego, tornou-se o paradigma a partir do qual se contempla hoje a questão do trabalho. O suposto caráter científico desse conceito foi consagrado pelo detentor do chamado Prêmio Nobel de Economia, Gary Becker; mas esquece-se que seu primeiro inventor foi Joseph Stalin e que o único significado rigoroso que se pode atribuir ao capital humano se encontra nos bens contabilísticos dos senhores de escravos. Ao mesmo tempo, o ecúmeno, que o homem molda –e, se não for favorável, saqueia– através de seu trabalho é percebido como um “capital natural” para o qual seria conveniente fixar um preço de mercado.

Para ter uma chance de escapar dessa hegemonia cultural do mercado total, é preciso começar por se conscientizar da normatividade predominante na economia e na sociologia contemporâneas, quando estendem a todos os aspectos da vida os conceitos de “capital” e “mercado”. De fato, raciocinar nesses termos nos encerra na representação do trabalho que era típico do século XX, enquanto a revolução da informática e a crise ecológica deveriam nos obrigar a nos livrar dela.

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O núcleo normativo dessa representação ainda dominante é o contrato de trabalho, cuja economia se constituiu durante a segunda revolução industrial. Por força desse contrato, a causa do trabalho – ou, para ser mais preciso, na mais recente terminologia jurídica, sua contrapartida – é o salário; Em outras palavras: uma quantia monetária, objeto de uma dívida do empregado. O trabalho é, para o assalariado, um meio a serviço desse fim. Pelo contrário, não tem direito ao produto do seu trabalho, ou seja, ao trabalho concluído, que não tem lugar neste regime jurídico por ser propriedade exclusiva do empregador. Porém, para este mesmo empregador, o trabalho nada mais é do que um meio a serviço de um fim financeiro. Com efeito, de acordo com o Código Civil, o objetivo das sociedades civis ou comerciais, que na maioria das vezes ocupam o cargo de empregador, é “dividir o benefício ou benefício da economia que […] possa resultar” de uma empresa comum para sócios (art. 1832). Aqui, mais uma vez, nos vemos diante de uma instrumentalização do trabalho específico realizado pela sociedade, que não tem outro objetivo senão a obtenção de lucros. Tal instrumentalização foi agravada no final do século XX pela virada neoliberal da governança corporativa, que teve como objeto e efeito submeter a gestão das empresas ao único objetivo de criar valor para os acionistas.

Esse despejo do significado e conteúdo do trabalho também é encontrado no nível do país. Os objetivos atribuídos ao Estado social também foram definidos quantitativamente em termos do produto interno bruto, que deve aumentar, ou da taxa de desemprego, que deve ser reduzida. A aspiração à democracia econômica, que na época anterior havia marcado a história social, foi abandonada, ou tomou a forma de nacionalizações, sem impacto no regime de trabalho do setor privado. A virada neoliberal iniciada há trinta anos não levou à reabertura de um debate democrático sobre a questão de saber o que produzir e como produzir, mas, ao contrário, atribuiu aos Estados novos objetivos quantificados de disciplina orçamentária ou monetária e reduções de impostos e benefícios sociais.

*Este texto não reflete, necessariamente, a opinião da Perfil Brasil.

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*Texto publicado originalmente no site Perfil Argentina.

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