50 anos de existência

Hip hop é a maior cultura urbana da história, afirma pesquisador

O toca-discos é o pilar fundamental da cultura hip hop, que é construída a partir de quatro elementos: o DJ, o MC, o grafite e o break – batida, canto, pintura e dança

Hip hop é a maior cultura urbana da história, afirma pesquisador
(Crédito: Arte/Agência Brasil)

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“A maior cultura urbana da história da humanidade”, é assim que o DJ Eugênio Lima define o hip hop, que em 2023 completa 50 anos de existência e 40 anos de presença no Brasil. Pesquisador e um dos fundadores do Núcleo Bartolomeu de Depoimentos, grupo que pensa o teatro a partir da estética do hip hop, Lima vê nessa cultura elementos tradicionais africanos que dialogam com as populações negras em diáspora por todo o mundo.

Aqui, ele pega emprestadas as palavras de Afrika Bambaataa, DJ e produtor pioneiro do gênero para explicar essa relação. “Uma coisa que o Bambaataa fala é que o hip hop nada mais é do que [a técnica] dos griôs [contadores tradicionais de histórias] da África [levada] para o sul do Bronx [bairro de Nova York, nos Estados Unidos]. E aqui, para mim, o sul do Bronx é só uma metáfora, porque é o sul do Bronx pode ser o Capão Redondo [zona sul paulistana], é o Alto José do Pinho [no Recife], é a periferia de São Luís, a periferia de Manaus”, relaciona.

A forma tradicional de transmissão de saberes e histórias se transforma, segundo Lima, para abarcar as construções que estão fora das formalidades acadêmicas.

“Essa tecnologia dos griôs do oeste africano colocada, fundamentada, a partir dos toca-discos, a partir da cultura de rua, a partir do conhecimento que não é o conhecimento da sabedoria formal, trancafiada com seus parâmetros, construída profundamente a partir da oralidade”, acrescenta.

O toca-discos, enfatiza o pesquisador, é o pilar fundamental da cultura hip hop, que é construída a partir de quatro elementos: o DJ, o MC, o grafite e o break – batida, canto, pintura e dança. “A partir daí, se cria todo um grande vocabulário que a gente chama de conhecimento de rua. A escola da rua. O conhecimento, a moda a própria lógica da rua”, enumera.

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O momento fundador dessa cultura é quando os quatro elementos foram reunidos em uma única festa no Bronx, em 1973, organizada pelo DJ Kool Herc junto com sua irmã, Cindy Campbell. Lima esteve, neste ano, no mesmo local onde essa primeira festa foi organizada, em uma celebração de 50 anos de existência do hip hop.

“Eu tive o prazer de conhecer esse lugar. Ele existe ainda  e está sendo preparado para ser o templo do hip hop. Agora, essa rua é chamada de Boulevard do Hip Hop. É uma rua sem saída, no sul do Bronx, dentro de um conjunto habitacional, em Nova York. Então, no dia 12 de agosto de 2023, teve a block party nesse lugar, que é o lugar fundante, comemorando 50 anos da cultura hip hop”, contou ao receber a reportagem da TV Brasil para gravação do programa Caminhos da Reportagem. O episódio vai ao ar neste domingo (12), às 22h, na emissora pública.

Nessa oportunidade, o DJ pôde mostrar parte da coleção de discos, que inclui diversas peças importantes para essa trajetória de cinco décadas do hip hop. “Esse aqui”, diz colocando o disco para rodar, “é o primeiro vinil, o primeiro fonograma da história do hip hop. É o Rapper’s Delight do The Sugarhill Gang. Ele é de setembro de 1978, lançado pela Sugarhill Records, apesar de a gente considerar que o hip hop nasce em 1973”, conta.

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Confira abaixo os principais trechos da entrevista com Eugênio Lima:

Agência Brasil: Como funciona a mágica do DJ, essa relação entre a base e a voz?
Eugênio Lima: Eu vou explicar do princípio. Em inglês é two turntables and a microphone – quer dizer, dois toca-discos e um microfone. Isso é a base do hip hop: dois toca-discos em um microfone. Por que tem um MC? Segundo o Kool Herc, é porque o DJ não tem três braços. Cadê o terceiro braço para segurar o microfone? Então, ele convida um MC chamado Coke La Rock, ele está com quase 80 anos hoje, e um outro MC chamado Mark Walters, esse já é falecido. Aqui você tem os dois toca-discos e  você tem um mixer, onde você mixa volume. Isso aqui são os faders [controle de volume].

A partir desse vocabulário, são criados dois dos elementos mais importantes da cultura hip hop – o DJ e o MC. Mas a cultura hip hop é feita de vários outros conhecimentos. Os outros elementos fundantes seriam: o grafite, que eles chamam de graffiti writters, ou seja, escritores de grafite. Os dançarinos – b-boys e b-girls – porque eles dançam nos breaks [intervalos] da música. Seria breakboy,  porque se dançava nos intervalos instrumentais entre cada música.

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B-boys e b-girls, DJ, MC e grafite –  a partir daí se cria todo um grande vocabulário de conhecimentos, que a gente chama de conhecimento de rua. Por isso que é a escola da rua. Tem o conhecimento da moda da rua, da própria lógica da rua. Rua não só no sentido de que está fora é do campo, digamos assim, formal do conhecimento. Mas é rua porque também as outras formas de conhecimento acabam sendo permeadas por esse conhecimento fundante. E para um DJ tudo tem a ver com discos.

Agência Brasil: A gente pode dizer, então, que o hip hop começa na mesa do DJ?
Lima: A gente pode dizer, não, ele começa na mesa do DJ. O pilar fundante da cultura é a block party de 1973, onde o Kool Herc monta isso e convida as outras pessoas. Ele [o lugar] existe ainda e está sendo preparado para ser o templo do hip hop. Agora, essa rua é chamada de Boulevard do Hip Hop. É uma rua sem saída, no sul do Bronx, dentro de um conjunto habitacional, em Nova York. Então, no dia 12 de agosto de 2023, teve a block party nesse lugar, que é o lugar fundante, comemorando 50 anos da cultura hip hop.

Quem convidou tudo isso foi o [MC e produtor musical] KRS-One que é um cara da [produtora] Boogie Down Productions.  Essa é um das músicas mais famosas dele, Step Into the World [mostra um disco]. [Pega outro disco] Uma outra pessoa que também é muito fundamental é esse cara aqui, Afrika Bambaataa. Esse aqui é um encontro dele com James Brown. É creditado ao Bambaataa a ideia a nominação [hip hop]. É o Bambaataa que cria a ideia de que isso que se faz com esses quatro elementos é hip hop, e isso não é um movimento, é uma cultura.

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Em 2016, eles entregaram um documento na ONU [Organização das Nações Unidas], que é a declaração de paz da cultura hip hop. É uma série de mandamentos, como se fossem os dez mandamentos, mas tem mais que dez, tem uns 24 mandamentos, onde eles vão dizendo quais são os princípios fundamentais do que seria a cultura hip hop. É assinado pelo KRS-One, pelo Bambaataa e por mais de 300 ativistas do hip hop no mundo inteiro.

Agência Brasil: Onde o Grandmaster Flash entra na história?
Lima: O Grandmaster Flash é tipo o mago. Muita gente credita a invenção do crossfader a ele [técnica de reduzir o volume de uma música e fazer a entrada de outra gradualmente]. É o cara que faz aquela história de marcar os discos, de transformar o merry go-round [técnica que mantém a parte instrumental da música tocando por mais tempo], que era a técnica do Kool Herc, numa coisa mais pra frente, que é o back to back, que é ir e voltar com os toca-discos, ir e voltar com os toca-discos numa estrutura interminável sem tirar o pé da dança.

O back to back cria o vocabulário do que vai ser a ideia de que um MC e um DJ vão rimar juntos. E para completar tem aqui um clássico que é uma pérola do que seria o Grandmaster Flash and the Furious Five, que chama The Message. E o The Message é, vamos dizer assim, uma das pedras fundamentais da história. [Coloca o disco para rodar]. É o Melly Mel cantando. Isso aqui é Grandmaster Flash and the Furious Five. Cowboy, Kid Creole, Melle Mel, Scorpio. Esse aqui é 1982. A gente credita muito essa ideia de que o hip hop, o rap, é a crônica da periferia. Essa é a primeira crônica. Essa é a primeira crônica.

O Melle Mel vai descrever o que está acontecendo na quebrada. O primeiro verso é fantástico: [Toca um trecho da música] “Broken glass everywhere/People pissin’ on the stairs, you know they just don’t care/ I can’t take the smell, can’t take the noise” – “Vidro quebrado por toda parte. Pessoas mijando na escada, você sabe que eles simplesmente não ligam. Eu não consigo suportar o cheiro, não aguento o barulho.”

Além do vocabulário, o Grandmaster Flash tem outra parada que é muito treta: ele é a primeira pessoa a gravar um disco dentro de um disco. Quando ele cria o Adventures on the Wheels of Steel, ele vai gravando a música com várias técnicas de mixagem dos toca-discos. Vai criando um vocabulário. E é a primeira vez que vinis são usados para se criar um fonograma que também era em vinil. É metalinguagem da metalinguagem. A gente chama isso de mashup hoje, mas não existia nem o nome pra dizer o que ele estava fazendo. O Grandmaster Flash é o grande arquiteto mesmo da estrutura do que viriam a ser as técnicas de discotecagem e a relação disso com a música.

Agência Brasil: Como é que foi estar lá com o Kool Herc? Como é que foi essa festa que celebrou os 50 anos do hip hop no lugar de origem?
Lima: Foi muito emocionante porque são 50 anos, não são 50 dias. Eu vou pegar uma frase, vou samplear uma frase do Prince Paul, produtor do The Last Soul, no Harlem. Ele estava discotecando os seus maiores clássicos, produtor do The Last Soul, do Tribe Called Quest, ele falava assim: “A gente precisa comemorar esse dia como se não houvesse amanhã, porque muito provavelmente nenhum de nós vai estar vivo pra comemorar os 100 anos do hip hop“. Essa é a dimensão da cultura.

As comemorações foram o mês de agosto inteiro, no dia 11 teve uma block party no Might Point Park, onde vai se criar um museu dedicado à cultura hip hop. É o Universal Museum of Hip Hop. É um parque às margens do East River, que é o rio que separa o Bronx do Harlem [bairros de população negra de Nova York]. É uma ponte, mas parece um mundo. E depois teve um show no Yankee Stadium, o estádio do time de beisebol de Nova York, com todas as gerações. Era uma programação extensa, começou às 6h da tarde e terminou às 2h da manhã. E ia desde o Sugar Hill Gang, passando pelo Grandmaster Flash and the Furious Five, a homenagem ao Kool Herc e à irmã dele, a Clive Campbell, coroados pela própria mãe.

A mãe do Kool Herc está com 86 anos e ela coroou o filho e a filha. Até terminar com o show do Run-MC passando pelo Nas, pelo Kid Capri, pela Lauren Hill, pelo Snoop Dog, pelo Ice Cube, foi assim, pelo T.I. até o trap [subgênero do rap], o Lil Wayne, assim, até das novas gerações também conversando, Lil’Leo King, todo mundo fazendo isso no dia 11, que é o dia mesmo que se comemora, porque foi 11 de agosto de 1973.

No dia 12, teve a block party no sul do Bronx e no, dia 13, a block party no Harlem. Eu não vi a block party do dia 5, que foi no Brooklyn, que é onde foi comandado pelo Grandmaster Flash. Essa eu perdi. Foi incrível.

Depois a gente voltou pra São Paulo e eu tive a honra de poder dirigir esse espetáculo que é o Hip Hop aos 50 anos e a gente tentou fazer uma homenagem às diversas gerações do hip hop: teve a Sharylaine, Thaíde, o Dexter, a MC Sofia, a Backspin, o Coletivo Amen, teve a Brisa Flow, teve a Linn Quebrada, teve o Rincon Sapiência, o Nelson Triunfo. A ideia é de a gente homenagear a partir dessa história, a dança, a música, a produção iconográfica através dos grafites, foi uma pesquisa bem intensa e eu tive o prazer de dirigir isso. Foi um documento bacana. A gente fez isso no dia 24 de agosto de 2023 no Sesc Pinheiros lotado, mais de 1,1 mil pessoas.

Agência Brasil: Nessa pesquisa, qual você sentiu que é a trajetória do hip hop no Brasil?
Lima: No ano que vem, faz 40 anos do hip hop no Brasil, que é o marco zero lá da cultura hip hop a que o Nelson [Triunfo, pioneiro do break] se refere. Nestes 40 anos, eu acho que poucas vezes na história do Brasil uma construção cultural afro-diaspórica, preta, indígena, periférica, transnacional, transcultural fez o que o hip hop fez no Brasil nos últimos 40 anos.

Tem uma coisa também que eu sempre gosto de colocar, que é o Chico Science e Nação Zumbi, quando ele fala: “É hip hop na minha embolada”. É um panorama de um processo que é muito maior do que a arte, mas, sim, um processo de sobrevivência. “Acharam que a gente estava morto”, como diz o Dexter no Oitavo Anjo, “achavam que a gente estava derrotado, quem achou isso estava errado”. Que a gente vivia sob ruínas e, portanto, seríamos arruinados, mas a gente transformou as ruínas na produção poética mais potente, na cultura urbana, a maior cultura urbana da história da humanidade. O hip hop brasileiro está dentro desse panorama e é muito legal porque, como todo o hip hop no mundo, é diaspórico, é transnacional, se conecta com outras diásporas no mundo todo.

O território que a gente fala, seja a língua, seja o próprio território brasileiro, ele tem influências de outras tantas culturas, outros tantos beats, outras tantas sabedorias. Porque uma coisa que o Bambaataa fala é que o hip hop nada mais é do que dos griôs da África para o sul do Bronx. E pra mim o sul do Bronx é só uma metáfora, porque o sul do Bronx pode ser o Capão Redondo, o sul do Bronx é o Alto José do Pinho, o sul do Bronx é a periferia de São Luís, o sul do Bronx é a periferia de Manaus, é a periferia de qualquer outra grande cidade do mundo.

Essa tecnologia dos griôs do oeste africano colocada, fundamentada, a partir dos toca-discos, a partir da cultura de rua, a partir do conhecimento que não é o conhecimento da sabedoria formal trancafiada com seus parâmetros tudo, além do que é um conhecimento construído profundamente a partir da oralidade. Nesse momento também em Nova York está tendo uma exposição na biblioteca do Brooklin sobre a trajetória do Jay-Z. E tem uma parte da exposição que é “Everything without a pen”, quer dizer, tudo isso sem uma caneta, porque o Jay-Z nunca escreveu nenhuma letra, todas as letras dele são na cabeça e ele grava. Isso é o testemunho da oralidade. Ele nunca escreveu uma letra na vida. Eu acho que esse é o testemunho que também a cultura hip hop traz. Como as sabedorias ancestrais se conectam com as tecnologias, com a possibilidade de sobrevivência.

Aqui a gente conseguiu construir a partir dos toca-discos e tudo, mas, por exemplo, Cuba não teve toca-disco, mas teve hip hop. Eu estava assistindo ontem uma menina de 16 anos de idade que chama J Noah, da República Dominicana, rimando, e eu falei, meu Deus do céu, o que que é isso? Uma menina tem 16 anos de idade e o flow dela é monstro, e a letra é monstra. Como ela consegue acumular tanta sabedoria com 16 anos de idade? E ela falou: “É a minha experiência, o meu bairro, as pessoas que eu vi, as coisas que eu vi e nem sempre os testemunhos são agradáveis”. Ou seja, é a possibilidade de conseguir transformar a dor em poesia, e não só isso, mas de transformação.

Agência Brasil: Agora, uma coisa que eu acho que você provavelmente é a melhor pessoa para me explicar: Como é que foi isso de unir o hip hop com o teatro, que foi o Núcleo Bartolomeu de Depoimentos?
Lima: Isso foi uma das bênçãos na minha vida, na nossa vida. Essa aqui é a palavra como território, a nossa antologia poética, que é transformar a nossa palavra em livro, são os 23 anos de existência do Núcleo Bartolomeu de Depoimentos, e a gente chamou isso de casamento estético: do teatro épico com a cultura hip hop e a partir de um princípio muito básico, a autorrepresentação. A ideia de que eu preciso ter a possibilidade de narrar a minha própria história.

Eu, como ator narrador, como atriz narradora ou como uma persona que não está colocada nem no gênero masculino ou feminino, de narrar a própria história. Por quê? Porque eu consigo organizar a cena, não é mais só sobre protagonismo ou antagonismo, não. É sobre como eu posso organizar todos os materiais. O Núcleo Bartolomeu cria essa linguagem em 2000, ou seja, 23 anos atrás. Isso, há 23 anos atrás, era tipo como se eu xingasse a mãe de alguém. Ninguém acreditava que isso fosse possível, achavam que isso era uma grande besteira, e a gente conseguiu, pela nossa insistência no teatro e no hip hop, construir linguagem.

A ideia do ator e da atriz MC, a ideia do DJ narrador a ideia de que todos os elementos cênicos são necessários para se contar uma história, então a gente chamou isso de dramaturgia cênica. A ideia de que não tem subserviência de linguagens, isso quer dizer o quê? O texto não serve à música, a música não serve ao texto, a atuação não está a serviço [de outra linguagem]. Todos estão em condições horizontais e são elementos necessários para contar a narrativa. E ao longo desse tempo a gente foi criando vários desdobramentos.

Por exemplo, o slam no Brasil chega a partir do Núcleo Bartolomeu de Depoimentos em 2008. Hoje, neste ano, nos 50 anos do hip hop, são 15 anos do slam no Brasil, 2023. Quem trouxe foi a Roberta Estrela D’Alva, o primeiro slam aconteceu na sede do Clube Bartolomeu de Depoimentos. Em 2008, você tinha uma comunidade de slam, hoje você tem quase 300 no Brasil inteiro. Esse é o poder da linguagem.

Agência Brasil: Você falou também do slam, o que você acha que o slam representa para a poesia brasileira?
Lima: Não vou nem falar palavras minhas. Segundo o [escritor e produtor cultural] Marcelino Freire, o slam é, talvez seja, dos últimos 20 anos, o movimento mais importante da poesia brasileira. Mas, para além disso, ele cria comunidades. E comunidades são o quê? Possibilidade de pessoas em espaços livres falarem o que pensam sobre o mundo através de linguagens poéticas.

Não existe uma poesia de slam. Slam, a competição é só um pretexto para se construir vocabulário. E a gente colocou o slam brasileiro na rota, nos seus grandes encontros mundiais, tanto é que este ano, em 2023, o Campeonato Mundial de Slam acontece no Rio de Janeiro e quem vai apresentar é o Núcleo Bartolomeu de Depoimentos. Você teve durante muito tempo, quase dez anos, o Rio Poetry Slam, que foi o primeiro festival internacional de poesia falada. Você tem o campeonato brasileiro, o Slam BR, que foi o Núcleo Bartolomeu que montou. O campeonato estadual, que é o Slam SP, que foi o Núcleo Bartolomeu que montou. Isso criou uma possibilidade de inúmeras, múltiplas reconexões de diversos caminhos com diversas comunidades, desde o Amazonas até o Rio Grande do Sul.

E, como dado concreto, não que eu acho que isso seja uma prova, mas é um dado concreto, há o livro escolhido no Jabuti de 2022, que é Também Guardamos Pedras Aqui, da Luiza Romão. A Luiza Romão é uma poeta que se formou no slam. Depois de um processo, cria um grande livro, que é um livro belíssimo, onde ela recria a partir da visão das mulheres a Ilíada [poema épico grego], e o livro ganha o Prêmio Jabuti de Poesia. Há dois anos atrás, o Slam da Guilhermina ganhou o Prêmio Jabuti, como a melhor proposição de incentivo à leitura. Ou seja, até as estruturas formais já reconheceram o slam. Não é uma questão mais do que eu acho, é um dado concreto. O slam veio e veio pra ficar e mudou a cara da poesia, e não só da poesia, da relação da poesia com o mundo no Brasil.

Agência Brasil: Sobrevivendo no Inferno, dos Racionais é leitura obrigatória para o vestibular da Universidade Estadual de Campinas. Como é que você vê isso? Qual é a importância disso?
Lima: Eu acho que isso é só uma prova do que já estava construído há muito tempo. A academia demora muito para reconhecer aquilo que é óbvio, às vezes, acha que descobriu a pedra quando descobre aquilo que era óbvio e cria outras normativas. Porque, assim, o Sobrevivendo no Inferno foi um clássico instantâneo. Diário de um Detento, Estou Ouvindo Alguém me Chamar, Fórmula Mágica da Paz foram clássicos instantâneos. Não só pela documentação do processo histórico, porque ali o Racionais se firmava como talvez a maior representação da música brasileira naquele momento histórico, em um lugar onde não se pensava que poderia se constituir sabedoria.

Eu gosto muito de um trecho do Fórmula Mágica da Paz, do Racionais, que o Brown fala assim: “Essa porra é um campo minado. Quantas vezes eu pensei em me tacar daqui, mas aí, minha área é tudo o que eu tenho. A minha vida é aqui, eu não consigo sair. Eu podia fugir, mas eu não vou. Não vou trair quem eu fui e quem eu sou. Eu sei pra onde vou e de onde vim. O ensinamento da favela foi muito bom pra mim. Cada lugar um lugar, cada lugar uma lei, cada lei uma razão. E eu sempre respeitei qualquer jurisdição, qualquer área”. Pensa nisso, na trajetória da música, mas pensa nisso se ele não está falando sobre a linguagem? É isso: a linguagem é um campo minado, entendeu? Mas e aí?! Minha área é tudo eu tenho, a minha vida é aqui, entendeu? Eu não consigo sair. É sobre cultura, sobre linguagem, sobre pertencimento, sobre a dona Maria de luto, narrativas que o Brasil nunca teve capacidade de entender como elas eram produzidas.

O livro Sobrevivendo no Inferno não é nada mais do que a academia entendendo, os processos das editoras entendendo a grande sabedoria. Porque ele é tudo: ele é literatura, é conhecimento, é hino, é sobrevivência, é estilo de vida, é um monte de coisa. Sobrevivendo no Inferno é um grande documento e é também um documento da dor. O Brown fala sobre isso: é um grande documento da dor. Nos shows de Sobrevivendo no Inferno tiveram aqueles grandes acontecimentos, pessoas que faleceram e tal. Também é um documento da dor. Não está dissociada uma coisa da outra. E os livros, eles são um dos instrumentos. Não é o instrumento, mas é um dos. É uma literatura que eu acho que sai da oralidade para se transformar em literatura.

E como isso é uma dicotomia só para a cultura ocidental, porque, na verdade, isso em outras culturas não é dicotômico, muito pelo contrário. A Odisseia e a Ilíada foram faladas durante séculos antes de serem escritas. Todo mundo sabe disso.

Aqueles poemas árabes – cássida [tipo de verso] – passaram quatro séculos na oralidade antes de alguém escrever. Isso é um processo natural. O hip hop se conecta com outras estruturas de conhecimento da oralidade, da presença e da presença diaspórica. Eu acho que é importante falar disso. São muitas diásporas.

A gente perdeu este ano um grande poeta, um grande MC, que é o Azagaia, de Moçambique. Tem uma música dele chamada Maçonaria, que ele faz uma espécie de digressão desde a escravidão até os dias atuais. Ele fala assim: “Quando os europeus ganharam gosto pelo açúcar, escravos no Brasil plantaram cana-de-açúcar e algodão no sul da América e no Novo México, enquanto o chicote ensinava o novo léxico.” Isso é de uma poesia absurda. O chicote criou um novo léxico. É sobre dor, é sobre resistência, é sobre estar na linha de frente, ao mesmo tempo sobre como criar estratégias para além da sobrevivência, para a própria existência.

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