Do Iraque 2003 à Ucrânia 2022: o fim de um ciclo

*Por Juan Battaleme – Professor de Relações Internacionais da UBA e UADE. Adolfo Rossi – Professor de Relações Internacionais da UBA e UnLA

Do Iraque 2003 à Ucrânia 2022 o fim de um ciclo
Guerra do Iraque, 2003 (Crédito: Wathiq Khuzaie /Getty Images)

A invasão da Ucrânia pela Rússia pode ser considerada um momento crucial em termos das regras do jogo da política internacional, considerando o impacto que têm na medida em que: a) estabelecem referências para todos os atores e b) definem as condições de estabilidade no relações entre os estados.

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A guerra atual é –a médio prazo– sobre as regras que vão referenciar as interações dos Estados nos próximos anos. Os postulados liberais universalistas continuarão sendo aqueles que orientam as ações ou iremos para postulados nacionalistas de competição agressiva?

Desde o fim da Guerra Fria, ocorreram duas tensões veniais que proporcionam uma certa sensação de equilíbrio instável nas relações internacionais. Por um lado, há o que poderíamos chamar de “legado de Versalhes”, esta é a busca incessante e incansável por uma sociedade internacional baseada em um sistema de segurança coletiva baseado no direito internacional público, os tratados e acordos que refletem toda a arquitetura de segurança para alcançar uma paz duradoura.

Essa visão colide com o conceito tradicional de segurança vinculado à soberania do Estado e baseado na lógica de preservação do Estado-nação juntamente com os elementos considerados parte da “realpolitik” – equilíbrio de poder, zonas de influência das grandes potências, destruição mutuamente assegurada, soberania limitada, etc. A paz não é fruto de uma arquitetura de ideias e valores, mas dos equilíbrios alcançados e da gestão das tensões no sistema internacional. Como costuma ser apontado para esse olhar, o poder dá direitos.

A ordem pós-Segunda Guerra havia deixado clara uma regra – tácita – pelo menos para a esfera europeia: uma guerra convencional de ocupação e conquista não seria permitida. O choque após o primeiro dia da invasão da Ucrânia e a descrença geral das advertências dos EUA sobre sua realização iminente são prova disso. Essa referência de interação terminou em 24 de fevereiro de 2022. Embora em 2014, quando essa situação começou, foi escolhido o apaziguamento e foi aceito com relutância um novo status quo que alterou ligeiramente o anterior.

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Isso pode ter tido alguma influência na decisão final da Rússia de se engajar na atual campanha militar. Mas a resposta ocidental também mudou, passando de forma mais decisiva para o exercício de uma ação de equilíbrio que se traduziu num compromisso de aumentar os custos dessa ação para a Rússia, para Putin, para o núcleo económico do país e para os cidadãos da Rússia. Insuficiente ou não, o Ocidente esteve ativamente envolvido na guerra e terá uma grande responsabilidade pelo resultado do conflito.

Tensões históricas

Em termos práticos, a tragédia atual tem um componente – agora distante – que foi concebido com o que Putin chamou de “a pior tragédia geopolítica da história”: a queda da URSS e a consequente vitória do Ocidente com sua agenda de transformação: a democracia, mercado livre e direitos humanos que endossaram a expansão econômica com a UE (CEE) e a expansão política militar através da OTAN. Tudo no quadro da arquitetura liberal, enquanto a Rússia entrava em um longo período de violência e instabilidade política e, portanto, de ressentimento e rivalidade.

A inevitável expansão do liberalismo como elemento de ordem no centro da política internacional deixou o Ocidente se sentindo, parafraseando o Pink Floyd, “confortavelmente entorpecido”. Enquanto isso, a periferia estava explodindo em pedaços, daí as recorrentes chamadas de alerta que começaram após o 11 de setembro, assim como a OTAN agora está sendo solicitada a acordar. Se uma coisa ficou clara para o futuro, é que a “siesta” estratégica acabou para todos.

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Expansões

Vale notar que foram os próprios EUA que demonstraram que a ordem liberal era contingente. O governo de George Bush decidiu enfraquecê-lo através das ações dos neoconservadores sintetizados na Guerra do Iraque de 2003 e, posteriormente, da OTAN na Líbia em 2011, apoiando os rebeldes em sua terceira operação de mudança de regime bem-sucedida em menos de oito anos. Apesar dos apelos da administração Obama por “retorno da América ao mundo” e “liderança responsável” -entre outras frases-, o que John Ikemberry chamou de “multilateralismo à la carte” tornou-se uma nova regra e uma janela de oportunidade para as autocracias que começavam a emergem fortemente no contexto internacional.

Donald Trump decidiu terminar de romper a ordem liberal e aceitar que a regra que seria imposta seria a dos fortes, princípio rejeitado pelos liberais europeus, mas aceito pelos rivais estratégicos daquele país, e afirmou isso em sua Estratégia de Segurança Nacional, onde reconheceu o retorno da competição entre as grandes potências, palavras dirigidas à Rússia e à China. O ciclo de expansão norte-americana iniciado na década de 1990 terminaria com a saída do Afeganistão.

A Rússia, por sua vez, também era muito ativa em sua vizinhança geográfica. Geórgia em 2008, Crimeia em 2014, Síria em 2015, suas ações na guerra entre Armênia e Azerbaijão em 2020 e recentemente a intervenção da Rússia no Cazaquistão em 2021. Em alguns casos para apoiar regimes, em outros para depô-los. Suas ferramentas foram a agressão militar e a subversão política, como apontam Jill Kastner e William Wohlforth em seu artigo “A Measure Short of War: the Return of Great Power Subversion” (2021). Daí a pergunta recorrente sobre onde Putin vai parar ou se continuará avançando sobre outros estados menores no ambiente europeu.

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A realidade que o atual conflito nos impõe nos coloca diante de uma ordem mais realista, em um contexto de interdependência complexa onde os agentes transnacionais importam e afetam quase tanto quanto as bombas. Isso explica por que se decidiu desencadear o uso da interdependência como arma, usando a capacidade coercitiva de certas economias sobre suas contrapartes menores. Nesta ocasião, ao olhar para o resultado da equação bombas contra sanções, a vitória do primeiro sobre o segundo não será tão clara.

Se uma nova “crise dos vinte anos” se iniciou em 2001 – parafraseando o tradicional livro de Edward Carr – esta etapa se encerra com a atual guerra, dando origem a uma nova que será construída com regras que surgirão sob a égide da competição entre os EUA e a China, intervenientes intermédios relevantes como o Japão, a Alemanha ou o Reino Unido, e que abarcará a dinâmica entre democracias liberais e autocracias, num contexto de densidade informacional e de transformação tecnológica que abrangerá em muitos aspetos o próprio ethos humanidade.

*Este texto não reflete, necessariamente, a opinião da Perfil Brasil.

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*Texto publicado originalmente no site Perfil Argentina.

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