OPINIÃO

Feminismo e Islamismo: reflexões sobre os protestos no Irã

*Por Sergio Fuster – autor do livro ‘Pasión y muerte de la historia’.

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(Crédito: Reprodução/ Perfil/ CEDOC)

Uma crise social desta magnitude não ocorria no Irã desde 1979. A revolta começou devido ao assassinato de uma mulher pelas autoridades. Nestas culturas, elas tendem a tornar-se invisíveis. Seria esta a origem de uma mudança radical onde os protagonistas serão os coletivos feministas?

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Se pensarmos na revolução do século passado, ao contrário desta, vemos que naquela ocasião tinham um líder, o aiatolá Khomeini, e justamente pelo apoio organizado de vários setores religiosos importantes, conseguiram derrubar o último xá substituído pelo atual regime.

Michel Foucault, que não se intrometia em opiniões políticas, celebrou o acontecimento com simpatia. Ele escreveu vários artigos polêmicos em jornais da época conhecidos hoje como Dossiê Foucaultiano do Irã, referindo-se à embriaguez de multidões enfurecidas que “não temiam a morte” e que jogavam “suas vidas nuas diante do poder“. Hoje, mais de quarenta anos depois, pode-se dizer que o filósofo francês foi um pouco precipitado em tirar suas conclusões: mais uma vez foi apenas o típico “gatopardismo” de quem quer mudar tudo para que nada mude. E é estranho que um dos maiores analistas do poder não tenha levado em conta que sua metafísica tem por natureza inata o poder de permanecer estático sob diferentes máscaras. E assim foi. Inclusive foi isso que vimos em quase todas as sedições recentes.

Nestes dias, pode-se falar então de uma “nova revolução” no Irã, no sentido de um começo que dá uma verdadeira virada no presente? Ou é apenas uma ilusão, uma mudança de roupa? Primeiro teríamos que ver onde termina. No entanto, “mudar para que nada mude” parece ser uma norma que se repete nas chamadas “Fontes do Povo” e muito mais quando falamos do mundo islâmico.

Trago-o como resultado do entusiasmo e, talvez, das esperanças injustificadas que se percebem neste levante iraniano de grande repercussão internacional, que aparentemente tem conotações feministas, mas é preciso pensá-lo de uma perspectiva muito mais ampla. O que vemos é realmente uma mudança de paradigma de e para as mulheres muçulmanas, onde elas acreditam que vão derrubar o sistema, ou é simplesmente o gatilho para uma agitação social muito mais profunda? Se sabemos apenas um pouco sobre a concepção islâmica, não devemos tirar conclusões precipitadas. Ao contrário, os protestos das mulheres parecem ser apenas um gatilho de exaustão e um modo de vida arcaico que nesta era da máquina parece insustentável: e isso vale para todas as ordens.

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O verdadeiro problema parece ser, no fundo, a incapacidade de algumas estruturas sacramentais de aceitar que os tempos evoluíram e que a passagem do tempo está destruindo imparavelmente a realidade de teocracias cuja natureza pretende permanecer no momento original de seu estabelecimento. As religiões em geral são inimigas da passagem da história, do chamado progresso, pela simples razão de que assumem que Deus criou o universo e tudo o que nele existe perfeitamente e não requer nenhuma alteração. A queda no pecado resultou na humanidade sendo depositada no decorrer da história e isso é apenas um meio para que Deus se manifeste e coloque as coisas em seu devido lugar. A mentalidade mítica tende a ser fixa. E vemos isso, como apontou Eric Voegelin, nas construções sociopolíticas transcendentes, ou nas palavras do pensador, naquelas “religiões políticas” que têm líderes que se assumem como “divindades encarnadas“, ou, na falta disso, são definidas por eles”, o que pressupõe que tudo o que eles fazem e dizem deve ser inquestionável.

Por outro lado, não podemos esquecer que o Islamismo é mais que uma devoção, é também um enquadramento geográfico, é uma forma legal de ver o mundo e, claro, é um enquadramento político que, longe de ser democrático, afirma ser de essência “supostamente divina“, revelada, cuja palavra irrefutável é a de Deus, sendo sua constituição um texto sagrado, o Alcorão. E o que Deus recitou através do anjo emissário ao profeta é indiscutível. Mas para além das complexas questões de fé, que exigiriam outra análise mais exaustiva, evidentemente é a realpolitik que sustenta essas histórias míticas como desculpa desde que sejam funcionais aos seus interesses profanos.

Claramente, assistimos agora no Irã uma detonação desta mágoa, que foi canalizada, neste caso concreto, para as reivindicações das mulheres e dos seus direitos lógicos, mas que na sua raiz se deve ao atual descontentamento de não ter conforto, de não possuir as vantagens tecnológicas oferecidas pelo capitalismo ocidental e que o expõe por sua ‘vitrine’ digital como o “novo paraíso na terra”. Não acho que o que está acontecendo no Irã deva ser confundido com a busca do feminismo, que sem dúvida está tentando reverter uma tradição antiga, mas sim que é uma circunstância visível de uma inquietação que foi deslocada para as sombras da sociedade, que foi reprimido no mais profundo medo, que por sua propriedade muito antinatural era lógico que mais cedo ou mais tarde este sistema “medieval” iria explodir.

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Em suma: o desafio das religiões para o século XXI deve ser o de tentar se adaptar às novas perspectivas apresentadas por este mundo ainda em construção, às vezes incompreensível, criticável e, claro, devastador dos valores ancestrais; mas são os ventos de um período desconhecido, de um capitalismo que tudo devora dentro de sua insaciabilidade. Junto com ele, questiona os antigos deuses do mito que, embora continuem ali como relíquias de outros tempos, não parecem mais existir muito espaço para eles.

*Este texto não reflete, necessariamente, a opinião da Perfil Brasil.

*Texto publicado originalmente no site Perfil Argentina.

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