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“Severance”, série mostra o lado negro da conformidade corporativa

*Por María Marta Preziosa – Doutora em Filosofia pela Universidade de Navarra e Pesquisadora da Faculdade de Ciências Econômicas da Universidade Católica da Argentina (UCA).

“Severance”, série mostra o lado negro da conformidade corporativa
Ben Stiller, diretor e produtor executivo da série (Crédito: David Livingston/Getty Images)

Severance (Apple TV, 2022), a perturbadora série dirigida por Ben Stiller, satiriza o mundo corporativo causando risos cúmplices, suspense e desespero. Aqueles que ingressam na Lumon Corporation aceitam voluntariamente a implantação de um dispositivo que os divide internamente. A intervenção no cérebro, chamada de “separação”, provoca uma separação total entre o eu-dentro e o eu-fora, o trabalho e o pessoal. Mais onírica em tom do que ficção científica, a série tem muitas reminiscências filosóficas do século 20. É uma “ficção especulativa”, diz seu roteirista Dan Erikson. Nessa linha, a ética do reconhecimento de Axel Honneth junta-se à especulação aqui.

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Na Lumon, o Manual de observância tem vários volumes e suas milhares de páginas são como as Bíblias de outro tempo, feitas de papel de arroz e borda dourada. Funcionários leais recitam com frequência e em voz alta os princípios corporativos e os desleais são forçados a realizar atos de contrição por suas faltas. Lumon é um subsolo labiríntico compartilhado a portas fechadas, sem laços pessoais e sob uma eterna luz artificial que não se apaga, como o inferno de Jean P. Sartre. Lumon é uma burocracia infinita em que os demônios mais poderosos engolem os inferiores, como o inferno de Clive S. Lewis.

Na empresa, nenhuma área sabe o que a outra está fazendo, ou como chegar até ela. Mitos e lendas sobre a destruição selvagem entre diferentes setores circulam secretamente, reforçando o isolamento. Mas o conflito entre as áreas emerge o mesmo. Algum relacionamento entre colegas de trabalho – proibido por políticas de “anti-confraternização” – promove curiosidade, desejo e descumprimento.

Na primeira temporada ainda não sabemos por que cada protagonista concordou em ser implantado; mas eles não são inocentes. Quiseram evitar a dor, silenciar a angústia; eles desistiram da construção de sua identidade, na tentativa de se diferenciar dos demais. Eles preferiram não sofrer, tornando uma parte de si invisível para si mesmos, dando a Lumon o governo de suas vidas.

Na Lumon, a tarefa a cumprir é abundante e incompreensível; Os objetivos são mensuráveis ​​e o cumprimento gera recompensas: uma festa de waffles, uma experiência de música e dança, um retrato de mesa luminoso. Apesar de sua banalidade, as recompensas concedem momentos de pequena felicidade ou algo parecido com significado.

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Na Lumon há recompensas, mas nada como reconhecimento. Os estilhaços não reconhecem uma parte de sua própria identidade. Também não reconhecem o local onde trabalham, não há mapas do labirinto. Com base em rumores, os de outras áreas não são reconhecidos como interlocutores válidos. Na Lumon não há valor social. A reputação da Lumon é controversa e, por dentro, os funcionários não têm propósito. Como eles são chamados de crianças, dispositivos malignos de poder pairam sobre eles. A autoconfiança não é encorajada; ninguém pode decidir fora do Manual de observância e a área de Segurança está sempre pronta para sanar vulnerabilidades, como suicídio. Mas um livro circula clandestinamente em Lumon e se chama “The you you are”.

Para Axel Honneth, a integridade consiste em uma identidade intacta e depende do reconhecimento recíproco. Quando esse reconhecimento não existe, quando a auto-realização não é possível, surge um processo conflituoso consequente. Vamos ver o que a segunda temporada reserva para nós. Até agora, a série parece não tanto uma crítica à grande empresa, mas uma contundente questão existencial: você está evitando sua responsabilidade na conquista de ser quem você é? O lado escuro da realização é um eu desintegrado. Identidade ou inferno, isso é “Severance “.

*Este texto não reflete, necessariamente, a opinião da Perfil Brasil.

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