É quase banal afirmar que o terceiro governo do presidente Lula é forçado a refletir parte significativa da disfuncionalidade que o sistema político produziu ao longo da Nova República. Para ficarmos no campo da representação, só uns poucos analistas “nefelibatas”, como diria Fernando Henrique, ainda teimam candidamente em enxergar virtudes nos sintomas políticos patológicos da sociedade — partidos socialmente desenraizados, e o Congresso hipertrofiado na fragilidade dos presidentes gerando o “parlamentarismo orçamentário”. Fórmula que salta aos olhos quando se constata que este ano o valor agregado das emendas de todos os tipos destinadas a deputados e senadores — R$ 35 bilhões — é mais da metade do investimento discricionário reservado ao Executivo (Melo e Mendes, 2023).
A volta de Lula ao Planalto nesse contexto demanda um esforço contínuo de articulação e transações que inclui a imprescindível alocação do portfólio ministerial, traduzida em coalizões sucessivas. Já foram quatro, cumulativas. A inicial, antes do primeiro turno, com os partidos que subscreveram a candidatura; a seguir, a do segundo, turno com a hoje ministra Simone Tebet na “frente democrática”; outra, no interregno entre eleição e posse, com União Brasil e PSD viabilizando a “PEC da transição”; e essa de agosto com a chegada do Republicanos e do Progressistas. É provável que ocorram outras adiante.
Com a Câmara liderada pelo Centrão, a agenda legislativa do Presidente fica à mercê do seu comandante, Arthur Lira, ungido ineditamente por 90,5% dos seus pares. Daí que reverbere com frequência na mídia a tese que na prática o governo deveria ser no mínimo “dividido” entre os apoiadores originais de Lula — PT e aliados da esquerda e centro — e a direita pragmática, aquela não pilotada digitalmente pelo bolsonarismo. No fundo, essa ideia é alimentada pela noção de que o presidencialismo tradicional se esgotou, e que precisamos encarar como inevitável um caminho híbrido que mescle características dos dois regimes. Muitos atores sonham com algo que na verdade seria assemelhado a uma “coabitação” à francesa.
A engenharia institucional do presidencialismo multipartidário, exposto a situações de incongruência político-ideológica entre a maioria no Legislativo e o chefe do Estado, buscou remédios para evitar o apagão do sistema. No semipresidencialismo francês, a constituição de 1958 previu a “coabitação”, sem usar esse nome. O modelo foi utilizado três vezes. A primeira quando a direita ganhou as eleições legislativas em 1986, e o presidente socialista François Mitterrand nomeou Jacques Chirac, líder do RPR, principal partido da oposição, como chefe do governo. Os franceses tiveram durante três anos um presidente de um lado do espectro político — com poderes sobre a política externa, de defesa, além do poder de convocar eleições — e um primeiro-ministro, condutor dos assuntos internos do país, do bloco oposto.
Desconexão e mandatos individualizados
No conjunto, as experiências não foram positivas. Na última, o fracasso da gestão do socialista Lionel Jospin sob a presidência de Chirac simplesmente retirou a esquerda do segundo turno da eleição de 2002. O insucesso levou à adoção de várias medidas para restringir a chance de sua ocorrência. Por fim, alterou-se o calendário eleitoral, fixando-se a eleição legislativa algumas semanas após a presidencial. Nunca mais aconteceu a coabitação. Designação, aliás, que Mitterrand rejeitava porque sugeria uma espécie de “conivência” entre dois opostos (Favier et Martin Roland, 1999).
Cerca de 90% das coalizões nos países presidencialistas resultam de compromissos antes das eleições, não depois, como assistimos aqui (Albala, 2021; Albala e Couto, 2023). Por que experimentamos isso com tanta frequência? Pela desconexão predominante entre o sufrágio nos candidatos à Câmara e a escolha do presidente, separação que só diminuiu a partir de 2018 (Lavareda e Silva Alves, 2022). Na raiz, está o voto proporcional com lista desordenada, que produz mandatos individualizados. Representantes que já denominei de “empreendedores individuais”, filiados a “partidos hidropônicos” (Lavareda, 2023).
Metade dos eleitores não sabe citar a legenda do seu candidato a deputado 15 dias após o pleito. E somente um terço consegue — poucos meses depois da eleição — lembrar o nome em quem votou. Os partidos comandam o jogo político, mas o voto neles é “indireto”. Vota-se em personagens que trocam com frequência de siglas à revelia dos representados. O resultado é que somos, por exemplo, a única democracia do mundo com um presidente da Câmara filiado a uma organização (PP) que tem apenas 1% de preferência popular, segundo o último levantamento a respeito do Datafolha. Os partidos, com poucas exceções, não existem na sociedade. O Centrão, onipresente nas manchetes dos jornais, é uma entidade política metafísica. Sem registro no TSE. Uma Frente Parlamentar sem signatários. Uma espécie de Maçonaria sem loja.
O modelo para o qual seria factível evoluirmos necessariamente manteria a instituição presidencial. Além da “campanha das diretas”, marco da fase de superação do governo autoritário, tivemos dois plebiscitos nos quais a população mostrou a força simbólica dos presidentes. E, no mundo, vemos que na terceira onda de democratização iniciada nos anos 1970 na maioria dos casos criou-se ou preservou-se a figura do presidente eleito pelo voto popular (Chaisty, Cheeseman e Power, 2018).
Dito isso, poderia dar certo um semipresidencialismo sem partidos socialmente enraizados? O parlamentarismo do Império funcionava porque quando o partido do Gabinete se desentendia no Legislativo, Pedro II mudava o Gabinete, que organizava novas eleições, sempre manipuladas, que replicavam na Câmara a natureza do Conselho de Ministros (Lynch, 2019). Já o parlamentarismo na Presidência de João Goulart, embora com representantes de poucos partidos, não resistiu à conjuntura efervescente e às pressões contra o novo sistema que anteciparam o plebiscito que o derrotou (Almeida, 1999).
Hoje, com a fragmentação elevada a que chegamos, de um lado teríamos uma liderança forte chefiando o Estado, legitimada por dezenas de milhões de votos, e certamente guardando alguma capacidade de influenciar o curso do governo; e de outro um Gabinete tal como hoje com membros de inúmeros partidos, a maioria desconhecidos aos olhos da sociedade. Sempre que aparecia um conflito entre os dois entes, de antemão sabemos qual a sociedade respaldaria. Quando se diz que os partidos enfim seriam responsabilizados pela participação efetiva no governo, parecendo dessa forma que eles passariam a “existir” aos olhos da sociedade, esquece-se, contudo, que todos os parlamentares que passam pelos ministérios desfrutam apenas do bônus de fazê-lo. Caso desejem, continuarão a ser votados individualmente sem qualquer associação ao governo do qual participaram.
A questão de fundo é simples: a consolidação dos partidos na sociedade é condição antecedente para o bom funcionamento de quaisquer eventuais modelos híbridos. Assim como para a superação das disfunções no relacionamento entre os poderes Legislativo e Executivo no combalido modelo atual. Se quisermos ser práticos, deixando de lado idealismos estéreis, o caminho factível para consegui-lo, mantida a exigência da proporcionalidade nas eleições parlamentares disposta no artigo 45 da Constituição, seria a adoção por Projeto de Lei da lista preordenada, deixando-se para a autonomia e o pragmatismo eleitoral dos comandos partidários a definição dos respectivos procedimentos de sua elaboração.
Enquanto nossas legendas não deitam raízes na opinião pública, a maioria praticamente inexistindo nesse nível, incapazes de vertebrar politicamente a sociedade, sempre é legítimo indagar: democracias representativas podem funcionar totalmente sem partidos?
O microcosmo de Palau
Do ponto de vista empírico a resposta é afirmativa. Podem, sim. Em condições bem particulares, é verdade. A Freedom House, no seu report de 2023, reconhece que a República de Palau tem bom desempenho nessa categoria, com mídia e Judiciário independentes e liberdades civis asseguradas. Mas trata-se de um arquipélago com população diminuta, uma das seis “democracias sem partido” no Pacífico. Embora tenha copiado a arquitetura institucional dos seus antigos administradores americanos, e faça eleições regularmente, ela é marcada pelas relações personalistas de uma cultura de clãs. Lá, as alianças no governo são cambiáveis, e no parlamento teoricamente não há governo e oposição. Todos os membros são “independentes”. O que lembra aqueles nossos mais de 200 deputados e senadores que se autoclassificam da mesma forma, enquanto miram a chance de ocupar uma cadeira a cada eventual reforma ministerial.
Palau, como um microcosmo, parece o sonho de quem atribui aos partidos todas as mazelas do mundo. Mas os resultados do seu modelo de representação absolutamente individualizada não ficam nada a dever ao que a crônica identifica aqui (Shuster, 1994; Veenendaal, 2013). Segundo quem se debruçou sobre o país de forma mais aprofundada, a política naquelas ilhas é dominada por um combo que inclui patronagem, clientelismo, pouca transparência e nepotismo.
*Antonio Lavareda é cientista político, sociólogo e presidente do Conselho Científico do Ipespe.