Pablo D’Ors, o padre que destaca a importância do silêncio

O ex-conselheiro do Vaticano, discípulo do jesuíta Franz Jalics, protagoniza um atraente acontecimento literário e cultural. Ele propõe a quietude para observar melhor e os pontos de contato entre a psicanálise, a meditação e o cristianismo

Pablo D’Ors, o padre que destaca a importância do silêncio
(Crédito: Divulgação)

Padre Pablo d’Ors, meditar neste momento de pandemia é um ato político?

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Hoje não pratico a meditação zen, mas sim a contemplação cristã. Tenho 57 anos. Aos 40 ou 42 anos tive a necessidade de me exilar espiritualmente, de procurar fora o que não encontrava dentro. Um caminho rigoroso de exploração interior que encontrei no zen; então o próprio zen me trouxe de volta ao cristianismo. Estou lá desde sempre, mas também desde a meditação há cerca de dez anos. Meditar é uma aventura interior. É uma peregrinação ao nosso próprio centro. Talvez não haja nada mais revolucionário ou mais político do que cada estar no seu próprio centro, que vivamos como somos chamados a viver. Seja a paz que você deseja para o mundo. Primeiro seja essa paz e então você poderá, de alguma forma, irradiá-la.

Meditar durante a pandemia pode ser terapêutico?

Com o confinamento em nossas casas é um convite para ficarmos lá dentro. Não apenas ficando, mas entrando na própria casa. Temos uma oportunidade de ouro de não vivermos voltados para o exterior. É o problema da nossa sociedade. É como alguém que tem um carro permanentemente ligado. Esse carro vai queimar, porque não tem sabido se recompor, descansar, desligar o motor. Meditação é saber como se recompor. Ainda mais numa pandemia.

Fala-se de um retorno ao Estado de bem-estar. A meditação vai no sentido do bem-estar?

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Em primeira instância, sim. Mas aqueles de nós que meditam de forma sistemática e rigorosa sabem que esta é apenas uma primeira etapa. “Meditação” tem a mesma raiz da palavra “medicina”. Contém uma dimensão terapêutica muito clara, de reconciliação com a própria corporeidade, de limpeza ou higiene mental. Mas não para por aí, é preciso uma dimensão transcendente, espiritual, para enfrentar essas feridas da alma, essas trevas, esse território sombrio. Os verdadeiros especialistas em meditação em todas as tradições religiosas costumam falar da meditação como combate. Na tradição cristã, os pais e as mães do deserto, tradição a que me refiro principalmente, falam da meditação como uma luta interior. Para chegar a esse núcleo de luz que somos, temos que passar por um território escuro. Eu não diria que é simplesmente bem-estar. Mais do que ao “estar bem”, aponta ao “ser bom”.

Você disse que “num mundo em que tudo se move, sentar-se para meditar é uma provocação”. Uma das características do vírus e da pandemia é a velocidade de sua mobilidade. Ficaríamos menos doentes se meditássemos?

Tenho certeza disso. Do ponto de vista da neurociência, fala-se muito sobre os benefícios da meditação para a saúde. Sempre se meditou. A novidade de hoje é que está se tornando moda, imbricada com o “mindfulness”. A meditação surgiu em um contexto religioso. Hoje têm sido dissociada de todas as referências religiosas. Essa mensagem ou linguagem foi secularizada. É praticado como higiene física e psíquica. Hoje é mais importante do que nunca precisamente porque tudo é muito fugaz, não é permanente. Gosto da metáfora do rio. Nós somos esse rio, somos água, devemos fluir. Mas o rio não é apenas água. São as rochas que estão no fundo e ficam por mais tempo. Então, meditar é encontrar uma rocha para ver precisamente a impermanência e a transitoriedade da vida.

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Você encontra alguma relação entre esta pandemia e a Peste Negra? Existe algo de punição no que está acontecendo?

Claro que não. Não tenho uma ideia de um Deus punidor, longe disso. Acho que é uma imagem muito antropomórfica e infantil, em definitiva, da religião. É verdade que a religião continua a ter esquemas infantis que devem ser transcendidos. Eu não compartilho dessa ideia. A experiência espiritual que o silêncio acarreta supõe uma purificação de todas as ideias religiosas. Como disse o Mestre Eckhart, para ir a Deus você tem que ir sem Deus. Isso soa muito forte, Deus não é as suas ideias de Deus, Deus nem mesmo é a sua experiência de Deus, mas de alguma forma devemos acabar com isso para chegar à verdadeira experiência de Deus. Há um momento em que se atravessa um nada, um vazio profundo. O vazio e a plenitude são as duas faces da mesma moeda. Na linguagem cristã, seria como dizer cruz e luz, ou virgindade e maternidade.

Numa reportagem desta mesma série, o escritor Arturo Pérez Reverte destacou que talvez estejamos enfrentando o fim e o declínio do que chamamos de civilização ocidental. Existe uma relação entre a cultura oriental e a meditação que denote uma superioridade do Oriente?

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Não acredito que a cultura oriental seja superior à ocidental; nem o oposto. Precisamos uns dos outros. A meditação não vem apenas do Extremo Oriente. Também no cristianismo do Ocidente existiu aquela tradição de conhecimento silencioso que vem dos pais e mães do deserto, a corrente espiritual por excelência no cristianismo, e quiçá da humanidade. Diz-se que nos séculos II, III e IV da nossa era mais de 40 mil pessoas deixaram as cidades do Egito e da Síria para ir para os desertos. Logo, temos a corrente do hesicasmo. “Hesychia” é uma palavra grega que significa a busca pela paz através da quietude, que também pertence à Igreja Ortodoxa Cristã.

“Pensar no castigo divino na pandemia é ter uma imagem infantil da religião.”

No seu livro “Biografia da Luz”, escreveu: “Esta encomenda de Jesus de ir pelo mundo todo não é, evidentemente, uma justificação para viajarmos desenfreados, o que só prova a nossa incapacidade de nos suportarmos, mas sim o que nos faz compreender que para Cristo não há territórios proibidos, que como todo momento, é o momento”. Como uma sociedade cada vez mais agnóstica pode ser alcançada com esta mensagem?

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É verdade que a sociedade ocidental está cada vez mais agnóstica, como já foi assinalado. A religião no Ocidente está em declínio, mas não precisa ser uma má notícia. Talvez seja uma boa notícia porque nos obriga a repensar. Há uma espiritualidade emergente no Ocidente, na qual o cristianismo pode não ter hegemonia. Mas não significa que não possamos colaborar desde a nossa tradição, que é muito bela, para a construção de um paradigma espiritual que corresponda aos nossos tempos. Essa citação de meu último livro fala sobre a necessidade de nos referirmos ao presente. No cristianismo, talvez de forma um tanto míope, temos nos concentrado quase exclusivamente no futuro. A mensagem de Jesus de Nazaré de que o Reino de Deus está aqui entre nós é retumbante. Visa o presente. Quando falo do presente, não estou falando do “presentismo”. O verdadeiro presente é por definição feito de todos os passados que o tornaram possível e se abre para o futuro como possibilidade. A pandemia tem uma mensagem ética: devemos mudar as nossas vidas. Não podemos continuar dessa forma tão vertiginosa, viajando feito loucos. É necessária uma vida mais simples. É a mensagem ética. Logo, a mensagem mística é que todos somos um. Os místicos dizem que alcançaram o auge da experiência de descobrir que estamos todos interconectados. É o que o vírus nos faz descobrir.

Martin Heidegger comparou o ser a um fósforo. Uma iluminação instantânea que nos permitia intuir algo. A luminosidade é um sentido?

Eu realmente gosto da metáfora da luz. A palavra Deus significa luz. É uma metáfora. Precisamos necessariamente de metáforas na espiritualidade. Por isso a mística e a poética são gêmeas. Não saberíamos nada sobre o misticismo sem poetas que nos contassem sobre ele. Junto com o carisma da experiência dos místicos, é necessário o carisma de expressão que possuem os poetas, os escritores. A felicidade chegará a nós por meio da espiritualidade. Espiritualidade tem a ver com despertar. Nossos olhos estão cobertos, nossos ouvidos estão tapados, nossos corações estão blindados. O trabalho deve ser de purificação dos ouvidos, do olhar, do coração para poder ver.

Você disse que “a mentalidade do europeu médio, e é provável que a América Latina siga o mesmo rumo da Europa, embora de forma mais lenta e menos radical, é hoje mais budista do que cristã, sem que isso signifique que seja minimamente budista ou que nunca fosse realmente cristã”. O que seria ser realmente um budista e realmente um cristão?

Excelente pergunta. É mais difícil para mim responder o que é ser budista. Meu conhecimento do budismo é muito limitado. Posso falar com mais autoridade sobre o cristianismo, porque sou um padre católico. O que é decisivo no cristianismo é a pessoa de Jesus Cristo. Tem a ver com uma fascinação, gosto mais de falar de fascinação do que de paixão pela figura e pela mensagem de Jesus. Resumo o radical na palavra “redenção”. Ele não veio ao mundo para ser feliz, não para dar uma mensagem, mas para redimi-lo. Redimi-lo significa nos mostrar, desde a sua própria vida, que o escuro, o negativo, o mal, não é necessariamente algo ruim, mas que pode ser abraçado e pode mudar de sinal. O que é aparentemente ruim, vivido com amor, pode ser causa ou fonte de luz. O cristão é uma pessoa fascinada por esta práxis de não fugir do escuro, nem tentar resolvê-lo, mas abraçá-lo com amor para transformá-lo e mudar o seu signo. É um trabalho não só de práxis, de caridade ou de amor, para com os sofredores, mas é também um trabalho contemplativo. Contemplação e ação, ambas de mãos dadas, mas, se me forçam a escolher, primeiro a contemplação. Primeiro olhar. Este aspecto contemplativo une todas as tradições espirituais.

Houve uma época em que o progressismo era refratário à espiritualidade, especialmente àquela ligada ao budismo e a crítica essencial que se fazia era que carregava uma certa forma de egoísmo. É assim? Meditar é de direita?

Aqueles que pensam que meditar é uma atitude egoísta ou egocêntrica é porque não o fizeram, ou não o fizeram numa escola rigorosa onde foram acompanhados e orientados. A verdadeira meditação não gera uma atitude de aristocracia interior. Gera humanidade. Sabedoria e compaixão são as duas faces da mesma moeda. Para saber o nível da sua vida interior e da sua vida espiritual, observe o seu nível de atenção amorosa para com os outros. É ali que se verifica. Do contrário, é mentira e manipulação. Um critério de ouro é a humildade.

Existe algo geracional na busca que implica meditar no Ocidente? Há uma música de Fito Páez chamada “Del 63”, o ano em que você nasceu e ele também.

Evidentemente. Somos fruto da História e do nosso tempo. Na década de 40 na Espanha, onde estou, não existia esse interesse. Esse interesse veio do fascínio pelo Oriente. Há anos fundei uma associação chamada “Amigos del Desierto” (Amigos do Deserto) e aos poucos ela está chegando à Argentina. Em nossa própria tradição, existem recursos suficientes para fazer essa aventura interior. Mas é verdade que nos anos 60, 70, 80, muita gente emigrou espiritualmente e buscou em outros lugares. Concordo com Fito Páez, que, aliás, já ouvi em mais de uma ocasião, que sim, evidentemente, os que nascemos na década de 1960 somos uma geração intermediária muito menos politizada. Em meu livro “Entusiasmo”, um livro bastante autobiográfico, embora prefira chamá-lo de “autofictício”, digo que o seminário missionário claretiano não é que não fosse muito politizado. A sensibilidade política e social era muito acentuada. Lemos os teólogos da libertação. Tivemos um semestre de marxismo, nada menos. Também um semestre de psicanálise. Isso desapareceu completamente dos seminários de hoje. Bebi mais da geração dos meus irmãos mais velhos, aquela ideia política que me ajudou muito e não a desprezo de forma alguma.

“A filosofia pensa, a mística contempla; ambas são necessárias.”

Você cita Simone Weil: “Mesmo que os esforços de atenção tenham sido, por anos, aparentemente estéreis, um dia uma luz exatamente proporcional a esses esforços inundará a alma”. Como você chegou a esse momento de iluminação? Como foi o seu próprio deserto?

Simone Weil é uma pensadora francesa de origem judaica. Todos os seus livros me emocionam, especialmente “À Espera de Deus”. Eu o recomendo fortemente. Ela fala, entre muitas coisas, de que nenhum esforço pela luz é desperdiçado. Desde muito jovem, desde os 14 ou 15 anos, tive uma inquietação espiritual muito grande, um anseio por Deus. Tive a sorte de ter uma experiência de graça muito jovem, aos 19 anos. Quando essas coisas são ditas, os descrentes olham para você com cara de pau. Mas realmente a qualidade e a autenticidade de uma experiência são verificadas pelos frutos que ela produz. O fruto foi que minha vida mudou. Comecei uma vocação sacerdotal e desde então, durante estes trinta ou quarenta anos, permaneci fiel a este chamado. Também nestes últimos vinte anos de prática rigorosa da meditação tive alguns momentos de certa clarividência. Não gosto de chamar de iluminação. Normalmente, quando nos sentamos para meditar, o que descobrimos é que a nossa mente é a louca da casa. Temos uma vozearia interna enorme. Meditar é silenciar. Significa que se você tem um cômodo que está muito cheio de coisas, você não consegue distinguir bem o que que há lá, mas se você começa a tirar as coisas, a esvaziá-lo, começa a ficar melhor. O mesmo ocorre com a mente. Essa é a primeira fase, a da purificação. A segunda fase é a da iluminação. A iluminação está em correspondência estrita com o vazio, com o esvaziamento. A consciência só é ouvida quando não está tão tomada por essa vozearia. O que se ouve, como diz o hinduísmo, como disse Ramana Maharshi, é “eu sou”. O que significa “eu sou”? Que você não é a as suas circunstâncias. Eu poderia não ser um escritor e ainda ser Pablo d’Ors. Poderia não ser um padre e ainda ser Pablo d’Ors. Poderia não ser espanhol e ainda ser Pablo d’Ors. Há mais uma etapa: não apenas descobrir o que sou. Eu também sou amado. O que significa isto? É a experiência de Jesus no Jordão, narrada metaforicamente nos Evangelhos. Ele entra na água de purificação, de limpeza, sai, ouve a voz, é representado por aquela pomba que desce, as portas do céu se abrem, a percepção dos sentidos se abre e ouve a voz que lhe diz: “Tu és o Filho amado”. Eu sou amado. Amado significa que o mundo, o universo, não me é adverso, mas me é propenso. É a experiência da confiança radical.

Existe uma relação entre teimosia e desejo?

Você traz palavras muito bonitas para a conversa. “Obstinação”, por exemplo, uma palavra muito Hermann Hesse. Costumo dizer que tudo o que é espiritual é simples e que apenas o simples é espiritual. Todos nós buscamos a Deus, mesmo que não o chamemos assim. Todos nós temos um anseio, uma sede de plenitude, que nada tem a ver com os instintos ou com os desejos. O anseio é o desejo essencial. As respostas que nos foram dadas pela Igreja Católica e todas as instituições não satisfazem a alma humana. Ainda estamos procurando. Ou elas se ritualizaram muito ou se intelectualizaram muito. Somente algo profundamente elementar, profundamente simples, pode satisfazer a alma humana. Nós sucumbimos à tentação de intelectualizar. Os seminaristas dedicam muito mais tempo ao estudo da teologia do que à vida de oração. O intelecto recebe muito mais importância do que a alma em termos de investimento de tempo. A busca espiritual, goste ou não, te faz um cara meio marginal. Que uma pessoa seja convocada por um meio de comunicação para falar sobre espiritualidade é algo muito insólito. É a primeira vez que isso acontece em muitas décadas. Isso significa que as coisas estão mudando. Hoje o espiritual é de interesse, porque há ansiedade em relação ao materialismo ou ao consumismo reinante. Uma proposta espiritual é necessariamente contra cultural. É necessário dialogar com o mundo, mas também muitas vezes há muitas propostas do mundo às quais você tem que dizer “não”. E sim, é necessário ser um pouco obstinado. É necessária muita sede, não se deixar enganar por análogos.

“Deus não é as suas ideias de Deus. Intelectualizar é um risco espiritual.”

Sobre o seu processo interno, você escreveu: “Porque todo egocentrismo, inclusive o meu, levado ao extremo mais radical, mostra o seu ridículo e inviabilidade”.

O ego nada mais é do que aquele desejo que temos todos os seres humanos de apropriação e de autoafirmação. O ego é necessário e nos ajuda neste mundo. Mas é claro, não podemos viver apenas do ego, porque não vemos as coisas. O trabalho espiritual consiste em que aquele foco que te ilumina permanentemente você pode virá-lo para iluminar o mundo. Você começa a ver a verdadeira cor das coisas. Um certo egocentrismo é importante para iniciar o caminho espiritual, essa obstinação nasce precisamente desse egocentrismo saudável. Não se trata de matar o ego, mas de dar-lhe um jogo e colocar limites a ele.

Como fazer para silenciar o barulho em uma época em que existem as redes sociais e a quantidade de informação se multiplica?

Porque hoje isso é mais necessário. Nos retiros de iniciação na meditação que ministro em “Amigos del Desierto”, sempre digo que uma condição básica é ter os telefones celulares desligados. Se vamos a um retiro mas permanecemos conectados, é uma ficção de retiro, uma pequena mentira com a qual queremos nos enganar. Nos enganamos, de fato. Em um mundo onde a conexão com o exterior tornou-se um dogma, cortar essa conexão torna-se um ato praticamente heroico. As verdadeiras férias, o verdadeiro descanso, seria desligar os celulares e ver o que temos dentro. Levaríamos uma surpresa.

Uma das obras-chave de René Descartes são as “Meditações filosóficas”. Que relação você encontra entre o cogito cartesiano, “penso, logo existo” e o estar como forma de ser?

É a partir de Descartes que nasce o racionalismo. A atitude do intelectual, isto é, aquele que exalta a razão, é diametralmente oposta à atitude do sábio. O intelectual não é sapiencial. O intelectual é aquele que tenta penetrar na realidade para desvendá-la, entendê-la. O sábio é aquele que permite que a realidade entre nele. A atitude intelectual, cartesiana, fundamentalmente penetrante, busca analisar. Quem recebe pode sintetizar. O conhecimento racional, e o contato com a palavra em geral, são necessariamente analíticos: sujeito, verbo e predicado. A atitude do sábio, ou a atitude de quem trabalha não mais com as palavras, mas com o silêncio, que também é uma forma de conhecimento, embora muito inexplorada, é uma atitude sintética. Não multiplicar, unificar. Unir, reunir ou reunificar. Não pretendo desconstruir a tradição reflexiva, intelectual, faltava mais. Mas também há uma tradição não reflexiva, meditativa, não intelectual, mas sapiencial. Ou seja, mística. A filosofia pensa: a mística contempla. Ambas são necessárias. Na tradição católica, ou cristã, tivemos grandes filósofos. Também grandes místicos. Em alguns casos, místicos e filósofos coincidiram na mesma pessoa, e isso é algo muito bonito. Nessa fusão entre mística e filosofia, entre razão e fé, existe um território fértil.

Qual é a diferença entre a quietude, que pareceria uma virtude desnecessária para o pensamento, para a meditação e para a reflexão, e a paralisia?

A quietude é voluntária e a paralisia é involuntária; é o resultado de um acidente ou desordem. A quietude é o silêncio do corpo. Assim como a mente deve ser silenciada, o corpo também precisa disso. Isso é quietude. Quando estamos quietos, ficamos mais atentos do que quando nos movemos. A meditação fomenta a atenção. A quietude redobra a atenção. Há quem pergunte: mas é possível meditar caminhando? É possível, mas você logra menos atenção, há mais dispersão.

Sua organização se chama Amigos do Deserto. Para os medievais, o deserto era mais uma ideia do que uma geografia. Existem desertos não geográficos?

O deserto é a paisagem espiritual por excelência na cosmovisão judaico-cristã e muçulmana. Está junto com a montanha. Se você tivesse que escolher duas paisagens espirituais, elas são o deserto e a montanha. O deserto é o lugar de purificação e a montanha é o lugar da iluminação. Limpar, purificar, é isso que o deserto significa, um período ou caminho longo e difícil. Mas logo, também não para ficarmos parados, mas para subir, ascender, outro símbolo muito bonito, outra imagem preciosa. E em todas as tradições as revelações, as iluminações, ocorrem precisamente no topo da montanha. O deserto é a necessidade primordial da alma contemporânea. O barulho é o principal terrorismo e, portanto, precisamos calar e limpar tudo isso. A Bíblia nos conta a história do povo judeu, que teve que cruzar o deserto para adquirir a consciência étnica de que eram um povo. Quando saem da escravidão no Egito, são apenas indivíduos alienados. Quando chegam na terra prometida, eles constituem um povo. A Europa tem que voltar ao deserto, voltar a peregrinar, para descobrir a nossa identidade. O deserto é tudo o que existe entre a escravidão e a plenitude.

“A psicanálise chama de ‘inconsciente’ um território sombrio.”

Existe uma relação entre a meditação e a associação livre?

Meu mestre Franz Jalics aponta como o que ele diz tem seus correlatos no mundo da psicanálise. Existe uma correlação. Com Jalic e também com Carl Jung, eu chamo de território sombrio o que na psicanálise é chamado de inconsciente. Com todo esse território sombrio construímos uma blindagem para não sofrer. E essa blindagem é o que se deve romper quando se medita para atravessá-lo: é o núcleo central, já que essa blindagem é o que chamam de mecanismos de defesa na psicanálise. Existe uma correspondência, porque em última análise, quando falamos sobre a identidade humana, da alma humana, precisamos de uma linguagem. As linguagens no final podem ser mais ou menos análogas, mais ou menos correspondentes.

“Vejo mais pluralidade na Igreja do que nos partidos políticos.”

Como é a sua ligação com o Papa Francisco e com o Vaticano? Foi assessor da Santa Sé durante cinco anos.

Tenho uma admiração enorme pelo Papa Francisco. Eu sou um padre do Papa Francisco. Parece-me que ele não está aqui por acaso. O que ele diz e propõe responde à necessidade deste momento. Com todas as dificuldades, ele segura o timão da Igreja. Meu vínculo com ele é de admiração. Há alguns anos, recebi um telefonema de um de seus colaboradores. Eles me disseram que estavam contando comigo. Fiquei tremendamente honrado. Eu não esperava isso em absoluto, porque sempre estive longe de qualquer tipo de responsabilidade eclesiástica de governo. O Vaticano deve tomar nota do que está acontecendo culturalmente nos países. Os assessores fomos os porta-vozes desse processo. Os trinta assessores mais os 14 membros do Conselho de Cultura nos reuníamos em plenário para debater diversos assuntos. Descobri que a pluralidade que existe na Igreja é infinitamente maior do que parece. Costumo dizer que se estamos procurando uma instituição democrática, devemos olhar para a Igreja. Ouviam-se todos os tipos de vozes. Há pessoas muito diferentes com comportamentos muito distintos. Vejo muito mais pluralidade na Igreja do que em quase todos os partidos políticos.

Você disse textualmente: “A tradição cristã parece que hoje não responde à sensibilidade contemporânea e mais ou menos a descartamos. Esse é precisamente o drama”. Pode-se dizer que o Papa Francisco rompe com a tradição pelo caminho da sensibilidade?

Não, eu não acho que ele rompe com a tradição. A arte deste Papa é precisamente manter os dois polos: o da renovação e o da tradição. Temos raízes muito profundas e isso nos dá força para enfrentar as dificuldades da vida contemporânea. Mas se essa tradição não for renovada, é puro conservadorismo. A fidelidade exige criatividade. Não se trata apenas de preservar o patrimônio, mas de atualizá-lo. Uma das razões para esse declínio do cristão no mundo contemporâneo é que a proposta cristã não é formulada ou apresentada na linguagem e na sensibilidade dos homens e mulheres contemporâneos. Esse é o trabalho fundamental do pastor e, à sua maneira, Francisco o está fazendo.

“Há alguns anos recebi um telefonema de um colaborador do Francisco. Eles me disseram que estavam contando comigo. Fiquei tremendamente honrado.”

Seu iniciador na meditação foi o padre jesuíta Franz Jalic. Jalic teve um relacionamento com Jorge Bergoglio quando ele estava na Argentina e foi sequestrado. O que ele disse sobre o atual Papa?

Tive o privilégio de conhecer Jalic pessoalmente em 2013. Ele morreu naquele ano. Conhecê-lo foi a descoberta de um mestre. Eu o visitei depois de ler seu livro, que recomendo vivamente a todos os que nos estejam ouvindo. É intitulado “Exercícios de Contemplação”. É o livro de meditação mais importante deste século na tradição cristã, pelo menos até onde eu sei. Ele me deu uma entrevista diária durante os dez ou doze dias que estive lá. Eu tinha um interesse triplo. Primeiro por ele, pela sua pessoa, depois pelo seu método, porque me pareceu muito luminoso e esclarecedor. Também queria consultar com ele sobre coisas da minha própria vida pessoal. Quando lhe perguntei sobre a vida dele, e eu coletei isso em notas e demais e também publiquei alguma coisa, ele respondeu tudo. Menos precisamente esta pergunta que você acaba de me fazer sobre o Papa Francisco. Quando lhe perguntei sobre este assunto do seu sequestro, da reconciliação e demais, ele me disse: “Tudo o que tenho a declarar eu já disse à imprensa”. Foi a única vez que ele não me quis dizer nada de especial, talvez por estar cansado de ser questionado sobre o assunto.

O Papa medita de alguma forma?

Tenho a convicção de que o Papa medita. Ele faz oração contemplativa, ele fica em silêncio. Meditar significa que você não está permanentemente com recursos imaginativos ou discursivos, mas que são criados espaços para o silêncio. Toda pessoa que ora profundamente tem momentos contemplativos, de meditação. Tenho certeza de que o Papa os tem. Ele escreveu sobre a importância da prática meditativa. A meditação que defendo é o que no cristianismo é chamado de oração contemplativa.

Por Jorge Fontevecchia – Co-fundador da Editorial Perfil – CEO do Perfil Network.

Produção: Pablo Helman e Debora Waizbrot.

*Texto publicado originalmente no site Perfil Argentina.

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