Sergio Moro afirma “A maioria dos brasileiros não quer que Lula volte ao poder”

Ex-ministro da Justiça e ex-juiz explica por que em 2018 não cogitou concorrer à presidência de seu país e agora irá concorrer. Narra como foi sua chegada e saída do governo de Jair Bolsonaro, quando percebeu que o atual presidente tem pontos em comum em questões éticas com o anterior. Ele afirma não ter animosidade pessoal contra Lula: o que ele fez foi simplesmente aplicar a lei. Moro considera que o Supremo Tribunal Federal de seu país cometeu um “erro flagrante” ao permitir que o líder petista saísse da prisão

Sergio Moro afirma “A maioria dos brasileiros não quer que Lula volte ao poder”
Sergio Moro (Crédito: Marcelo Camargo/ Agência Brasil)

Sergio Moro, por que em 2018 você não era candidato a presidente e agora pode ser? O que mudou em você e na política brasileira?

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Muitas vezes, as coisas que acontecem aqui não são realmente compreendidas. E o Brasil ainda tem vários pontos em comum com a Argentina. Somos povos irmãos com muitas semelhanças. Fui juiz da Operação Lava Jato. Foi o maior da história do Brasil em corrupção grave, vinculado pelas mais altas autoridades. Tínhamos uma longa tradição de impunidade. A operação revelou um sistema de corrupção. Mostrou algo que se praticava diariamente no governo e nas empresas estatais brasileiras. Da minha posição de juiz, quebramos essa tradição de impunidade. Foi um triunfo institucional. Claro, os esforços individuais também contam.

Em 2018 tive a percepção de que todas as revelações sobre a corrupção fariam a democracia reagir. É a forma de evitar que esses comportamentos se repitam e que novos casos ocorram. Foi o que aconteceu nos Estados Unidos após o escândalo Watergate. Além dos grampos ligados a Nixon, também surgiram outras situações. Surgiram questões relacionadas a subornos pagos por empresas norte-americanas a autoridades estrangeiras. A reação foi a aprovação da chamada Lei de Práticas de Corrupção no Exterior, ou seja, uma legislação mais rígida contra a prática de corrupção. Houve um grande salto no ano de 2000 quando houve casos de corrupção ligados à empresa Enron nos Estados Unidos, que aprovou a chamada Lei Sarbanes-Oxley, que visa coibir fraudes corporativas. Muitos exemplos podem ser citados. Minha expectativa em 2018 era que o sistema político reagisse positivamente. Não houve necessidade de eu apresentar meu nome na disputa eleitoral.

O atual presidente, Jair Bolsonaro, chegou ao poder com um discurso anticorrupção. Ele me convidou para ser Ministro da Justiça. Pareceu-me que era uma oportunidade para consolidar os avanços. É claro que o Ministro da Justiça tem uma série de outras atribuições no Brasil relacionadas à segurança pública, ao combate à violência e também à proteção dos direitos humanos. Mas meu objetivo principal era consolidar o combate à corrupção. Eu entrei no governo. Depois de um ano e quatro meses de desentendimentos crescentes com o presidente e percebendo que ele não apoiava os esforços anticorrupção e, em vez disso, estava sabotando esses esforços anticorrupção, decidi renunciar. Não aceitei o cargo pelo cargo em si, nem por questão de prestígio, mas porque havia um projeto com o qual me comprometia. O cenário atual, 2021, é diferente. O cenário eleitoral para o próximo ano é preocupante. Temos o presidente de um governo que veio com uma série de declarações, mas não está funcionando. A isso se acrescenta que vivemos uma grave crise econômica.

O Brasil está em um momento de estagnação e, eventualmente, entrando em recessão. As promessas de combater a corrupção e fortalecer as instituições foram frustradas. O dilema atual é entre a extrema direita e a extrema esquerda. Temos um ex-presidente, Lula, em cujo governo foram criados esses esquemas de corrupção, um deles revelado pela Operação Lava Jato, além de Petrolão e Mensalão, caso julgado pelo Supremo Tribunal Federal do Brasil. O governo Lula também terminou em recessão. Foi ele quem elegeu sua sucessora, a presidente Dilma Rousseff, que deu continuidade à política presidencial e aprofundou erros. Essa gestão terminou em uma grande recessão em 2014-2016. A população brasileira está decepcionada com o presente e temerosa pelo futuro. Tão ruim é o atual governo quanto a perspectiva de retorno do ex-presidente. Não é o que a maioria dos brasileiros deseja. Ao longo desse tempo recebi muitas ofertas para assumir a responsabilidade de construir um projeto. Decidi aceitar agora.

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Um artigo do jornal “El País”, assinado por Juan Arias, diz: “O ex-juiz Sérgio Moro pode ter, porém, que entender que fazer política é diferente de fazer justiça. O juiz condena ou absolve. A política, ao contrário, foi definida como a ‘arte do compromisso’ ”. A política é desconfortável para um advogado?

As habilidades de juízes e políticos são diferentes. O político deve dialogar. É preciso construir um projeto que atraia alianças. Obviamente, isso não inclui as transgressões éticas que vimos no Brasil. No governo do ex-presidente, que está concorrendo como candidato, havia um esquema de corrupção que já foi julgado pelo Supremo Tribunal Federal no Mensalão. Também no governo do ex-presidente. Isso foi reconhecido em julgamento público e que existia um esquema de pagamento de propinas mensais a parlamentares e deputados, a fim de arrecadar apoio a projetos do governo federal na época da Operação Lava Jato. Vários deles confessaram seus crimes. Um gerente da Petrobras devolveu US$ 100 milhões que recebeu em subornos. Parte desse suborno também foi direcionado a agentes políticos. Esse também foi o contexto da recessão de 2014 e 2016. Por outro lado, o atual governo também vem cometendo transgressões éticas. O principal deles é o enfraquecimento do combate à corrupção que motivou minha saída do ministério. A isso se acrescenta que está nos dando uma economia ruim. A corrupção atrapalha a economia, e não o contrário. Muitas vezes somos tolerantes com processos de corrupção em nome da economia. Mas os obstáculos ao desenvolvimento estão na corrupção e nas transgressões éticas. A história da América Latina mostra que é assim. E que é impossível concluir de outra forma. Por isso também é fundamental apresentar um projeto tecnicamente consistente que iremos propor aos brasileiros. E este projeto deve ser baseado em valores. Não há país economicamente bem-sucedido no mundo que tenha progredido em um modelo baseado na corrupção. Temos que abandonar esse equívoco que, infelizmente, costumamos ter aqui na América Latina.

Na Argentina fala-se em “engolir rãs”, como tolerar algumas coisas típicas da prática usual de gestão e negociação. Você pode chegar ao poder de evitar fazer isso? Quando você para de “engolir sapos” e passa a ser tolerante com o intolerável?

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Esta é uma boa pergunta. Aqui no Brasil também temos essa expressão. A política é a arte de compromissos e acordos. É natural. E eu não tenho nenhum problema com isso. Quem quiser estar na política deve entender que não é necessariamente o dono da razão, as concessões devem ser feitas em relação ao formato do projeto para agregar vontades e apoios. Trata-se de obter volume político. Mas sei perfeitamente que existe um limite que não pode ser ultrapassado. Não há nada que o justifique. O que você obtém é exatamente o oposto. É difícil para mim falar sobre a Argentina. Não estou muito familiarizado com a situação. Mas temos visto há anos que nossos países estão presos no que chamamos de armadilha de baixo crescimento e renda média. Muitas vezes há um crescimento econômico bem-sucedido com desacelerações significativas em nossa economia e essa falta de governança sempre vem. As transgressões éticas não nos levaram muito longe. Vemos que outros países que mantiveram esse compromisso ético e que seus políticos atuam de forma integrada, sem ultrapassar certos limites, conseguiram avançar melhor no desempenho de suas respectivas economias.

Hoje o Brasil está testemunhando um aumento da inflação. Para reagir a esse aumento da inflação, o Banco Central do Brasil aumentou as taxas de juros. É uma política natural, mas também é o resultado de uma perda de credibilidade fiscal devido a políticas governamentais equivocadas. Temos uma taxa de desemprego muito alta, em torno de 13% da população economicamente ativa. Os desafios são realmente grandes. Para sustentá-lo, é necessária uma estrutura de alianças em torno dele. Tivemos um bom exemplo no passado. Na época da estabilização política do Brasil, havia um claro projeto político para estabilizar a economia e superar as altas taxas de inflação das décadas de 1980 e 1990. Algumas pequenas políticas podem aparecer nesses acordos. Mas sempre dentro de certos limites e que sejam respeitadas as regras de uma negociação saudável.

“Tanto a extrema direita quanto a extrema esquerda levaram a economia à recessão.”

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Como avalia a gestão de Paulo Guedes à frente do Ministério da Fazenda?

Não gostaria de abordar o assunto em uma questão pessoal. Tenho um bom relacionamento com o Paulo Guedes. Ele é um grande economista. Mas ele também teve tantas dificuldades quanto eu. Eu vim para o governo com um projeto muito claro, que incluía o combate ao crime organizado, por exemplo. Não havia Ministério da Justiça mais rígido contra o crime organizado no Brasil e com respeito à lei, direitos e garantias. Por outro lado, no combate aos crimes violentos, conseguimos reduzir em 19% as taxas de homicídio no Brasil no primeiro ano do meu mandato. Porém, no meu projeto principal, que era a consolidação da prevenção e do combate à corrupção, não pude seguir em frente. Tive muita resistência no Congresso. Algo natural, aliás. Tanto no Brasil quanto na Argentina temos divisão de poderes. Portanto, é importante trabalhar com o Congresso diante dessa resistência. A única resposta é o diálogo e novas eleições, quando possível. A isso se soma a percepção de que a própria Presidência da República estava me sabotando, de que também não queria essas reformas. Soma-se a isso detalhes sobre os quais não seria conveniente pararmos por aqui. A verdade é que não consegui avançar uma agenda que era fundamental para mim. Tomei a decisão em abril de 2020 de renunciar ao meu cargo. Ele não estava lá pelo prestígio do trabalho ou pela posição de poder. Cheguei a essa posição porque entendi que tinha um projeto e queria fazer a coisa certa. A certa altura, percebi que o projeto estava comprometido. Além disso, devo dizer, tive diferenças em outras questões. A mesma luta contra a pandemia foi desastrosa aqui no Brasil. A recorrência de certa instabilidade também foi gerada pelas declarações autoritárias do presidente. Era algo com o qual também era muito difícil concordar. Mas o essencial foi o projeto com que cheguei. Paulo Guedes pode fazer o mesmo. Ele ainda é um grande economista, mas sofre dos mesmos problemas. A dificuldade de implementar a agenda econômica com a qual se comprometeu se deve às resistências no Congresso, sim. E principalmente à falta de apoio suficiente da Presidência da República. Se o ministro não tiver o apoio do presidente, é impossível seguir em frente. O infeliz resultado é o aumento da inflação, das taxas de juros e da estagnação econômica. O Brasil tenta encontrar um lugar nos mercados mundiais. Um exemplo atual é que o tratado do Mercosul com a União Europeia não está avançando. São muitas as dificuldades para que este contrato entre em vigor, porque hoje existe uma visão muito negativa da União Europeia. São questões que afetam toda a América Latina, inclusive o Brasil.

Você disse que Lula e Jair Bolsonaro são muito parecidos em alguns aspectos, inclusive na ética. Como você descreveria essas semelhanças?

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O compromisso fundamental de hoje é prevenir e combater a corrupção. Isso melhora as instituições. Estudos mostram claramente que hoje aqueles que almejam um forte crescimento econômico e aumento do bem-estar da população dependem principalmente de instituições fortes. Existe um livro chamado “Por que os países falham?”, de Daron Acemoglu e James A. Robinson. Tornou-se um clássico político moderno. Eles analisam por meio de dados e experiências empíricas. O problema é a origem cultural, no fundo a grande resposta, e o problema é a fragilidade ou solidez de nossas instituições. Quando se trata de prevenir e combater a corrupção, o que é realmente desejável é o Estado de Direito. É necessária certeza jurídica. E isso implica que quem comete crimes relacionados com a corrupção ou qualquer outro delito deve sofrer as consequências. Se este aspecto for tomado e analisado sob o aspecto da transparência e retidão para sustentá-lo como política, ambos são semelhantes. Um deles teve os maiores escândalos de corrupção da história. O outro, agora o desmontou. Ao que se soma uma série de denúncias em andamento nos tribunais do Brasil que apontam para situações de transgressões éticas por parte principalmente da família do presidente. São situações que envolvem uma prática bastante condenável. São investigações em andamento. Esperançosamente, as investigações estão concluídas para fazer declarações definitivas. Estão em curso investigações sobre os casos de apropriação de salários de seus subordinados por familiares do presidente que também ocupam cargos públicos.

“A não validação da sentença de Lula foi um flagrante erro judicial”.

Como resultado dos encontros de Lula com Fernando Henrique Cardoso, fala-se de um Lula mais moderado, mais “social-democrata”. Existe uma virada centrista do ex-presidente?

É uma pergunta que você deve fazer a ele. Recentemente, em uma viagem pela Europa, ele fez declarações muito perturbadoras, uma delas elogiando as recentes eleições na Nicarágua. Claro, é necessário manter relações diplomáticas positivas com todos os países, mas há sérias dúvidas sobre a credibilidade das eleições que se realizaram naquele país. Os principais opositores do presidente reeleito teriam sido detidos durante o processo eleitoral. A posição sobre Cuba também é discutível, um país fechado com presos políticos também. Esses elogios, esses elogios persistentes a regimes que não são exatamente abertos e democráticos, são realmente preocupantes. Por outro lado, esses modelos de corrupção que foram descobertos durante o governo do Partido dos Trabalhadores não são exatamente o que queremos para uma democracia. Tenho dúvidas sobre essa promessa de um governo mais moderado do Partido dos Trabalhadores. Porque hoje o partido tem uma atitude de negação dos erros do passado, como o grande escândalo de corrupção, o Mensalão, e depois este chamado Petrolão, isso está comprovado. Como eu disse, até os criminosos devolveram o dinheiro que receberam em subornos. A própria Petrobras acabou reconhecendo 6 bilhões de reais, aproximadamente hoje quase 2 bilhões de dólares, em perdas decorrentes de propinas, além de outros esquemas criminais ocorridos. Apesar de tudo, não houve meia culpa, o que seria de esperar. Ninguém disse “Desculpe, não faremos isso de novo. Em qualquer empresa ou governo podem aparecer pessoas que se desviem. E eles devem ir embora”. Isso não aconteceu. Quando as consequências não são reconhecidas, ou mesmo o contrário, quando se quer negar a história ou reescrevê-la de outra forma, ela replica o que foi feito no passado sob regimes autoritários. O que é gerado são vários pontos de preocupação.

Levantamento de setembro de 2021 do Data Folha coloca Lula na liderança com 44%, 26% para Jair Bolsonaro, 9% para Ciro Gomes e 4% para João Doria? Você pode quebrar a polarização? Quais são os setores da sociedade brasileira mais abertos a uma nova ideia?

Ainda falta muito para outubro de 2022. De qualquer forma, quando alguém vai ao mercado comprar feijão e se depara com duas marcas, vai acabar escolhendo uma que não gosta muito. É escolhido um de qualidade inferior, devido à falta de alternativas. Mas se essas alternativas aparecem, é diferente. As opções podem ser diferentes. As pesquisas disponíveis são mais antigas. Eles revelam altas porcentagens de polarização. Esses números se devem ao fato de quem não quisesse votar no atual presidente, apenas tinha a opção de votar no anterior. E, inversamente, quem não quiser votar no ex-presidente só teve a opção de votar no atual. Com outras alternativas, esses números tendem a mudar. Claramente, a polarização política não é benéfica. Envolve discursos agressivos. Traz ofensa e a sensação de que tudo faz parte da lógica do amigo/ inimigo.

Em uma democracia, não há inimigo: existem oponentes eventuais. Um adversário não é um inimigo a ser destruído ou retirado da credibilidade. Em uma sociedade aberta coexistem diferentes visões de mundo que podem e devem coexistir. O consenso deve ser buscado. Por isso, quando coloquei meu nome à disposição do eleitorado brasileiro, deixei bem claro que não vamos agredir ninguém. Menos do que menos para a imprensa. Tanto no governo do PT quanto no do presidente Jair Bolsonaro, a imprensa foi atacada. Houve ofensas e insultos pessoais. Até a Rede Globo, principal empresa de mídia, foi agredida por ambas as partes. O governo também deve mudar para que desapareça a tentativa de controle da imprensa, algo realmente preocupante. Em um regime democrático, a liberdade de expressão e de imprensa deve ser ampla. O governo não deve restringi-lo. A mídia também não deve ser intimidada por apoiadores que supostamente agem espontaneamente, mas que são inflados por esses extremos políticos. O substrato da cultura democrática é a cultura da tolerância. É um princípio fundamental. O povo brasileiro, como também o povo argentino, é reconhecido pela simpatia e cordialidade. O fato de ser apaixonado não significa afirmar que seja agressivo ou que goste de animosidade ou agressão. Precisamos diminuir a temperatura política no hemisfério.

“O Lava Jato foi muito mais do que um julgamento envolvendo um ex-presidente”.

Afirma-se que há preocupação na campanha junto a Lula com a perda de popularidade de Jair Bolsonaro e o suposto benefício para a terceira via. Quanto deve se deteriorar a imagem pública do atual presidente para que ele tenha uma chance eleitoral real da terceira via? Você consegue ganhar uma eleição no Brasil sem obter alguns votos do PT? Como pode a terceira forma fazer isso?

Trabalhamos com a mesma dose de humildade com que confiamos. Começamos essa jornada há pouco mais de um mês. Em tão pouco tempo já aparece com pontuação relativamente significativa nas pesquisas, embora ainda claramente distante desses dois extremos polarizados. Mas fazemos isso a sério. Não estou preocupado com o que os adversários fazem com sua própria popularidade. A principal preocupação é construir um projeto consistente, principalmente do ponto de vista econômico. Precisamos voltar a uma trajetória de crescimento econômico, que acarreta aumento da renda e do emprego e produz efeitos claros no combate à pobreza, que infelizmente cresceu no Brasil. Ao mesmo tempo, há desafios históricos em questões como educação, saúde, segurança pública e hoje essa nova agenda, que é a agenda da economia digital. É necessária uma agenda de inovação e desenvolvimento sustentável. O Brasil possui a maior floresta do mundo, a Amazônia. Nós, brasileiros, temos um tesouro verde. Podemos ser líderes na preservação do meio ambiente e na prevenção das mudanças climáticas. Mas fizemos tudo errado nos últimos anos. Alguns nos pintam por fora como vilões ambientais. É um erro, porque o povo brasileiro é responsável na questão ambiental. É necessária uma mudança, não apenas discursiva. Devemos mudar o rumo do que queremos fazer e apresentar projetos que mostrem que temos a credibilidade necessária para realizá-lo, sem descuidar, é claro, das demais áreas.

João Doria venceu as primárias do PSDB com 54% dos votos. Em reportagem à CNN, ele declarou que seu partido “saiu das eleições fortalecido”. Ele acrescentou que “há uma grande oportunidade de um projeto para o Brasil, além de uma partida”. Existe uma oportunidade para vocês irem ao processo eleitoral juntos?

Eu conheço o governador João Doria. Ele fez um bom governo em São Paulo. Trata-se de buscar os melhores nomes e transcender o que seria uma alternativa entre os extremos. Os verdadeiros adversários são os extremos. É bem possível que haja uma convergência para o futuro. Não necessariamente com ele, mas com todas aquelas pessoas que entendem que é preciso sair das opções extremas e buscar um caminho vigoroso. Não se trata de ficarmos juntos de forma inconsistente. Trata-se de buscar a unidade de princípios e valores que fogem desses extremos e que podem reunir apoio político suficiente não só para as eleições, mas também para o que vem a seguir. É lógico que o governador tenha aspirações. Deixe-o expor seu projeto. E que no futuro continuemos conversando, além de manter um diálogo constante. Temos a percepção de que nosso projeto é capaz de quebrar a polarização. Para isso, falamos com diferentes organizações da sociedade civil e outros partidos políticos. Por enquanto, temos a sensação de que nosso caminho é o de mais chances. A ideia é manter um diálogo saudável e deixar cada um dos candidatos apresentar seus próprios projetos.

Sobre o Bolsonaro, Doria disse: “Compramos um sonho e fizemos um pesadelo”. Por que este projeto não terminou de consolidar?

Não quero entrar em assuntos pessoais. Respeito o presidente atual e o anterior. Como juiz, o que fiz foi o meu trabalho. Nunca tive um sentimento pessoal de vingança ao passar uma frase. Acabei de aplicar a lei. Havia uma promessa de fortalecer o combate à corrupção e o que se viu é um desmantelamento dessa luta. Foi prometido que ninguém envolvido em casos de corrupção seria protegido, e há sérias dúvidas de que possamos fazer esse tipo de reclamação. São esses os motivos que me tiraram do governo federal. No entanto, vemos os problemas se multiplicando, principalmente na economia e o desemprego crescente. O desemprego está cada vez mais alto. Caiu um pouco no último mês, mas as projeções de estagnação ou recessão para o próximo ano não desapareceram. E isso porque o atual presidente não se preocupou em fazer as reformas de que o país precisa. Há consenso de que é necessária uma reforma tributária, no que chamamos de administração pública do governo do regime de serviço público, e outras medidas sensatas para cortar os privilégios da classe política. E em tudo isso há uma grande responsabilidade do presidente. Quem define o curso, quem lidera, o líder é o responsável. Não se trata de levar o assunto para o lado pessoal. Nem para montar o pesadelo como argumento. O importante é apresentar um sonho, um projeto que conquiste o coração e a mente de brasileiros e brasileiros.

“Nenhum país fez progresso econômico baseado na corrupção”.

Consistiria em considerar algumas reformas que Paulo Guedes propôs e não conseguiu por falta de apoio presidencial?

Existe a divisão de poderes. Congresso resiste às propostas do Executivo. É algo natural na política. O que não é muito natural é que o ministro não tenha o apoio do presidente porque não há diálogo. Pode ter muito prestígio, mas sem o apoio do presidente é impossível atingir seus objetivos. A reforma da Previdência surgiu muito mais por conta dos esforços do Ministro Paulo Guedes e do Congresso da época do que do Presidente da República. Com essa modalidade, reformas importantes foram adiadas. No início do governo, em 2018, falava-se em reforma tributária ou administrativa e nada disso aconteceu efetivamente. São poucos os resultados que o governo pode realmente apresentar.

Em 2017, o senhor disse em entrevista nesta mesma série que “o Brasil tem motivos para se orgulhar dos casos que já foram julgados por crimes de corrupção”. Qual é a mensagem que pode vir da libertação de Lula?

O Brasil deve se orgulhar do trabalho realizado durante a Operação Lava Jato. Foi uma tarefa institucional. Eu fiz parte do processo, mas foi obra das instituições da Justiça brasileira. Juízes, promotores e advogados trabalharam. Além disso, houve grande apoio da opinião pública e da população brasileira. Milhões de pessoas foram às ruas protestar contra a corrupção. É o que deu o maior ímpeto a esses esforços anticorrupção. Sofremos um revés nos últimos anos. Alguns desses contratempos vieram surpreendentemente do Supremo Tribunal Federal, instituição que devemos respeitar. Uma instituição muito importante que tem excelentes ministros, mas recentemente cometeu erros, tanto na revisão da jurisprudência que favorecia o combate à corrupção, como na revisão de alguns casos individuais. Como jurista profissional, tenho a mesma dificuldade de muitas pessoas em compreender algumas dessas decisões. O efeito real foi que enfraqueceu a luta contra a corrupção. Também existe uma responsabilidade quando se trata de liderança. Um presidente verdadeiramente comprometido fará tudo ao seu alcance para que os avanços da Justiça não sejam revertidos. E mesmo quando as sentenças o contradigam, apresentará ao Congresso as reformas necessárias para reverter esses reveses. Enquanto eu era Ministro da Justiça, trabalhei com o Supremo Tribunal Federal para evitar contratempos para buscar o progresso, e quando houve alguns contratempos fui ao Congresso e apresentei projetos de lei e discuti parlamentares para que pudéssemos avançar e superar esses possíveis contratempos. Mas a liderança do país, o Palácio do Planalto, silenciou sobre o assunto, talvez revelando realmente onde ele se encontra.

Lava Jato continua sendo um orgulho na história do Brasil e de todos os brasileiros. Se você faz uma pesquisa de opinião, apesar de todas as tentativas de deslegitimar o que fez, você se orgulha da operação. É necessário voltar ao caminho correto, que é facilmente recuperável. Houve um exército de corrupção e impunidade. Lava Jato provou que as coisas podem ser diferentes. Contribuímos com evidências para outros países com efeitos notáveis. Havia personalidades poderosas envolvidas em crimes de corrupção. A lição é que podemos enfrentar grande corrupção e recorrentes impunidades, que este não é um destino inevitável para o Brasil ou qualquer outro país. Temos que ser consistentes e saber que é um esforço duradouro. Deve-se ter em mente que uma ação se torna uma reação. Você tem que combater essas reações. E o público reage a esses contratempos.

O nível de independência da Justiça brasileira era elogiado. Qual a ligação entre a Justiça brasileira e as tendências políticas dominantes no país? Qual a ligação entre o Judiciário e o poder político no Brasil? Como você explica a mudança de visão do Supremo Tribunal Federal após quatro anos?

É uma pergunta difícil. Os Tribunais possuem uma série de garantias que acabam preservando a independência do Ministério Público e também da Justiça. Mas nenhum sistema ou modelo é perfeito. Isso às vezes cria burocracia excessiva em nosso sistema. E uma relativa falta de meritocracia dentro do próprio judiciário. E também o tira de uma certa imunidade a qualquer influência política. O Supremo Tribunal Federal deu grande respaldo à operação Lava Jato, principalmente entre os anos de 2014 a 2017. A partir daí, passou a tomar algumas decisões que fragilizaram a chamada revisão da sentença em segunda instância. Os tribunais eleitorais brasileiros não estão muito bem preparados para julgar esse tipo de processo e alguns casos de corrupção foram encaminhados para lá. Alguns casos individuais começaram a ficar presos ao formalismo excessivo. E assim algumas convicções importantes foram invalidadas. Nem todos ou em todos os casos. A grande maioria das condenações de Lava Jato permanecem válidas. Entre os casos que infelizmente não foram validados está a sentença de Lula. Foi uma decisão recente. Sinceramente, tenho muito respeito pelo Supremo Tribunal Federal, mas foi um erro judicial flagrante. Não há evidências da existência de fraude para condenar um inocente. Não há evidências de que foram retidas à defesa provas que possam absolver o ex-presidente. Por outro lado, existem fatos inegáveis. Petrobras foi saqueada. Eles viviam em um sistema de corrupção em que o pagamento de subornos era rotineiro. Era uma empresa estatal controlada pelo governo federal durante a gestão do PT. Lamento essa decisão, embora seja claro que devemos sempre respeitar o Supremo Tribunal como instituição. O próprio Tribunal homologou a prisão do ex-presidente Lula em 2018. E agora, três anos depois, atuou em outra direção, com decisão diferente. Também é importante observar que não se trata de uma decisão que absolve, mas invalidou a condenação com base em um formalismo

“A segurança jurídica implica também na punição dos crimes de corrupção”.

Houve erro de procedimento nos julgamentos de Lula? Existe algo que você acha que deveria ter sido feito de forma diferente?

De maneira nenhuma. O Lava Jato foi muito mais do que um julgamento envolvendo um ex-presidente. Não tenho aqui os números exatos, mas quase 180 condenações criminais de figuras poderosas da política, figuras públicas e empresários de renome. As decisões, embora tenham impacto nas penas nas prisões, são de enorme importância em termos de recuperação de valores. Há uma perspectiva de recuperação de valores apenas nos processos em que trabalhei de mais de 14 bilhões de reais, sendo mais de 4 bilhões de reais efetivamente já recuperados. Adicionado a isso, há um efeito colateral extremamente positivo. Houve uma mudança na cultura corporativa do Brasil. Anteriormente, as empresas brasileiras não davam grande importância às políticas de compliance e anticorrupção. Hoje o cenário é diferente. E isso leva a uma maior qualidade no mundo dos negócios, o que equivale a uma maior eficiência econômica. Não me arrependo do trabalho realizado na Operação Lava Jato.

Em relação ao Lava Jato, não há dúvidas. Minha pergunta fazia alusão à situação do Lula.

A resposta é a mesma: de jeito nenhum. Tudo foi feito corretamente, de acordo e com o devido respeito ao Supremo. Um erro judicial levou à revisão da condenação criminal. Tipo, como eu disse, eu nunca tive nenhuma animosidade pessoal por ele. O que fiz foi o trabalho de um juiz fazendo seu trabalho aplicando a lei e considerando as evidências e os fatos listados.

Você viveu nos últimos anos nos Estados Unidos. Como você descreveria essa experiência?

Há uma prática muito ruim no Brasil, que é produzir notícias falsas criando fatos alternativos. Nunca trabalhei para as empresas investigadas na Operação Lava Jato depois que deixei a magistratura e o ministério. Poderia, visto que não há impedimento legal. Mas eu não fiz. Meu contrato é muito claro no sentido de que me recusaria a trabalhar para atender qualquer uma dessas empresas. Eu trabalho em uma empresa de consultoria, não em um escritório de advocacia. Nessa empresa, meu trabalho era desenvolver políticas corporativas anticorrupção. Impedir que as empresas se envolvam em práticas de suborno. Elabore programas de compliance, realize auditorias corporativas. Por fim, continuei na linha que sempre defendi no combate à corrupção. Mas agora, do mundo corporativo. Não fui advogado defendendo empresas. E entre as empresas com as quais trabalhei, nenhuma estava envolvida na Operação Lava Jato.

Outro ponto polêmico que se discute na Argentina é a noção de que os Estados Unidos promoveram a ideia do Lava Jato e que você teria recebido cursos. Fala-se do uso da Justiça em termos políticos. Qual é a sua relação com os Estados Unidos?

Lá também estamos na saga de eventos alternativos. Roubos na Petrobras e nos cofres públicos foram a base de minhas decisões. A Lava Jato não foi feita apenas por um juiz. Meu trabalho era fazer sentenças como juiz de primeira instância. Mas minhas decisões foram posteriormente confirmadas por outros juízes e outros magistrados. Primeiro foram três, depois em Brasília mais cinco magistrados. A grande maioria das minhas decisões foi ratificada, exceto em pequenos detalhes. Minha suposta ligação com os Estados Unidos é uma fantasia completa. Como não podem justificar o roubo da Petrobras, eles começam a criar teorias da conspiração. Por isso o PT diz que sou agente da CIA. Paralelamente, o presidente Bolsonaro ou seus seguidores dizem que sou comunista. Brincadeira digo que sou comunista a serviço da maior rede de mídia do Brasil. São coisas absurdas. Tão absurdo que é difícil se opor a uma explicação mais concreta porque as teorias são tão malucas. Infelizmente, é comum na América Latina. Os principais responsáveis ​​pelas nossas dificuldades são a nossa classe política dominante, que em certa medida também representa as sociedades que somos. Em Júlio César, William Shakespeare usa um diálogo entre Brutus e Cassius. Lá vemos como, em vez de culpar as estrelas por nosso destino, devemos pensar em nós mesmos. É hora de assumir nossas próprias responsabilidades na América Latina pelos erros que cometemos. É também a hora de parar de procurar culpados no exterior. Precisamos construir um governo forte. Forte não implica um vínculo com autoritarismo. Um governo forte deve ter um forte compromisso com a democracia e não deve ser arbitrário. Devemos ter instituições fortes que possibilitem gerar prosperidade para nossos cidadãos. E não procure desculpas em teorias da conspiração. Teorias desse estilo nos remetem a cinquenta anos. E eles servem à classe política para assumir a responsabilidade de seu próprio fracasso econômico pelas políticas adotadas.

“A luta contra a pandemia no Brasil foi desastrosa”.

Em algum momento, os juízes da Suprema Corte argentina terão que tomar decisões semelhantes do ponto de vista técnico. Qual seria a sua mensagem para os magistrados argentinos?

Acredito que não devo fazer recomendações ao Poder Judiciário argentino. A única coisa que posso dizer é que às vezes é difícil. Às vezes, temos figuras políticas poderosas que infelizmente cometem seus erros. Eles cometem crimes e é difícil para nós ver que a Justiça prevalece. Uma Justiça baseada na lei, que prevalece o jurídico. O custo de não aplicar ou ignorar as leis nesses casos é alto. Você tem que aplicar a lei a governos ou pessoas, não importa o quão poderosos eles sejam. Caso contrário, um custo muito alto é gerado para o país e seus habitantes. Se a justiça for desconfiada, o risco é que as pessoas comecem a desconfiar do próprio regime democrático e de seus representantes. Isso muitas vezes acaba favorecendo a chegada de populismos e diversos autoritarismos ou caudilhos. Não conheço os detalhes dos casos específicos. O que digo é baseado na minha experiência e no que vejo no Brasil. Não estou me referindo a tópicos específicos. Mas sim para algumas lições universais. A principal função de um governo ajustado à lei é a aplicação da lei. É um princípio universal.

*Produção – Pablo Helman e Natalia Gelfman.

*Por Jorge Fontevecchia – Co-fundador da Editorial Perfil – CEO da Perfil Network.

*Este texto não reflete, necessariamente, a opinião da Perfil Brasil.

*Texto publicado originalmente no site Perfil Argentina.

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