ideólogo do Plano Real

Pérsio Arida: “Planos de estabilização não costumam ser acompanhados de déficit zero”

*Por Jorge Fontevecchia – Cofundador da Editora Perfil – CEO da Perfil Network

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Pérsio Arida (Créditos: Reprodução/ Flickr)

O economista brasileiro, ideólogo do Plano Real, Pérsio Arida, analisa as eleições presidenciais do último domingo no Brasil, afirma que as pesquisas subestimaram o conservadorismo da sociedade brasileira e se pergunta se a força inesperada do bolsonarismo não se deve ao velho lema “É a economia, estúpida”. Sobre um Plano Real para a Argentina, ele afirma que primeiro é preciso gerar uma mudança de mentalidade.

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Pérsio, como você vivenciou as eleições de domingo passado?

As eleições surpreenderam. As pesquisas não captaram o fenômeno Bolsonaro, bolsonarismo como dizem. Bolsonaro teve uma votação maior do que o esperado em todo o país, e vários de seus candidatos, tanto para o Senado quanto para os governos estaduais, tiveram um desempenho muito melhor do que o esperado. Foi uma eleição com surpresas, mas a grande surpresa foi a força, por assim dizer, de Bolsonaro e do bolsonarismo. Então a pergunta que se coloca, por um lado, é por que as pesquisas estavam erradas, mas por outro, é uma questão metodológica das pesquisas, que não vou comentar agora. Mas a segunda pergunta nos diz que as diversas pesquisas subestimaram, por assim dizer, o conservadorismo da sociedade brasileira. Muitas das plataformas do governo de Bolsonaro não eram sobre economia, mas sobre costumes, como o lema Deus, família, propriedade, críticas ao aborto ou o direito de ter armas. O que fazia sentido para boa parte da população brasileira. Mas, talvez como economista, também lhe atribuo outro significado. Como você sabe, o presidente em exercício que está concorrendo à reeleição tem uma chance muito boa de ser reeleito por causa da exposição na mídia associada ao seu nome. E neste caso, há outro fato, por motivos fortuitos, não tem nada a ver exatamente com o governo Bolsonaro, a economia brasileira se recuperou fortemente este ano. Portanto, estamos em uma situação em que a taxa de emprego está caindo, os salários médios estão subindo e a atividade econômica está melhorando. A tudo isso se soma a dimensão dos ajustes feitos pelo governo Bolsonaro, por meio de uma mudança constitucional pouco antes das eleições. Que configurações são essas? A primeira é a redução de impostos sobre combustíveis e outros impostos e taxas estaduais. O segundo é o auxílio emergencial, que foi bastante generoso. Então, na prática, as pessoas mais pobres receberam dinheiro, dinheiro que é transferido imediatamente, e a inflação caiu. Chegou a um ponto de deflação, ajudado em parte pela queda do preço do petróleo no mercado internacional, mas também muito ajudado pela redução de impostos. Este corte de impostos irá, naturalmente, criar um problema. Ou seja, criará um problema futuro ao aumentar a dívida pública. Mas a preocupação do presidente Bolsonaro era, acima de tudo, ganhar as eleições, mais do que qualquer outra. O fato é que, do ponto de vista econômico, a combinação de atividade mais forte, aumento dos salários reais e queda do desemprego com ajuda emergencial para os mais pobres, é deflação. A queda da inflação no início do ano já traz deflação. É uma combinação muito poderosa, ainda mais associada à figura do presidente. Lembro-me do caso das eleições de Bush e Clinton e do slogan que se tornou mundialmente famoso: “É a economia, estúpida”. Então, nós realmente não sabemos o que aconteceu no Brasil. É o velho slogan ou é uma plataforma conservadora que teve mais apelo do que se imaginava? O resultado é que as pesquisas de opinião pública erraram sobre a dimensão do fenômeno.

Pode ser os dois também.

Claro, essas duas coisas obviamente.

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Mudaria alguma coisa na economia se o presidente de 1º de janeiro do ano seguinte fosse Lula ou Bolsonaro? O que mudaria se houvesse um ou outro na economia brasileira?

Há uma diferença, primeiro o Brasil tem um sistema presidencialista, parecido com o da Argentina. No primeiro ano de governo, com a legitimidade das eleições, o presidente pode fazer muito e costuma ser o melhor ano para o presidente, do ponto de vista das reformas, das mudanças econômicas. É o primeiro ano e costumo ver que faz uma grande diferença. Talvez nada aconteça, que o próximo presidente da república perca a oportunidade de reformar no primeiro ano. Mas, em teoria, essa oportunidade existe. No caso de Bolsonaro, o sucesso do bolsonarismo, mesmo na eleição de senadores e deputados, lhe permitiria uma base de apoio bastante sólida. Significa que ele pode pressionar por reformas, se quiser fazê-las. O impulso reformista de Bolsonaro não é claro. Vale lembrar que não avançou na aprovação de privatizações, não avançou na plataforma de abertura da economia brasileira em relação ao comércio internacional. Não fez progressos substantivos no aspecto fiscal. Tem muita coisa ali que, na verdade, foram promessas do primeiro governo que não se concretizaram. Bolsonaro não realizou uma reforma administrativa, embora tenha dito que gostaria de fazê-lo. A questão que fica para o segundo governo Bolsonaro é se terá o ímpeto reformista ou não? Em geral, os segundos governos são piores que os primeiros, nesse sentido essa regra de certa sabedoria não permite muito otimismo. E o governo Lula é difícil de saber porque o programa do PT continua sendo um programa com boas intenções, mas muito genérico. Nossa experiência aqui com o PT no Brasil é que depende intrinsecamente do ministro da Economia. Como não sabemos quem é o ministro, é difícil saber em que direção o governo petista vai.

“Foi uma eleição com surpresas, mas a grande surpresa foi a força, por assim dizer, de Bolsonaro e do bolsonarismo”

Você é um dos candidatos a Ministro da Economia.

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O que você disse? Ninguém me disse nada.

Você ainda imagina que o PT seria conservador em relação a uma política econômica mais progressista, ou o fato de a direita ter obtido tantos votos força uma política econômica mais centrista e mais ortodoxa?

Primeiro, é muito mais difícil fazer políticas econômicas pouco ortodoxas com um Congresso tão conservador. Então isso coloca um freio nas políticas heterodoxas. O que eu imagino que vai acontecer, ao contrário, é que no cenário internacional, que é muito delicado, provavelmente entraremos em recessão mundial um pouco mais tarde, com possíveis problemas de liquidez em várias partes do mundo, com altas taxas de juros e um cenário que tende a ser desfavorável para os países emergentes e que complica ainda mais a prática da heterodoxia. Tanto pela dificuldade interna de aprovação, quanto pelo cenário internacional. Acho que esperaria um governo relativamente conservador e mais centrista de um governo Lula. Talvez do lado dos bancos públicos, que estão fora do orçamento federal, haja, de fato, uma política mais desenvolvimentista na gestão do Banco de Desenvolvimento (Bndes), na gestão do Banco do Brasil e da Caixa Econômica, na grandes bancos públicos. Mas do ponto de vista do núcleo, da essência do funcionamento do governo, que é a parte orçamentária, não imagino que haja aventura de qualquer tipo.

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“É o velho slogan ‘É a economia, estúpida’ ou é uma plataforma conservadora que teve mais apelo do que se imaginava?”

Eu gostaria de entender qual é a situação da economia brasileira para o próximo ano, se a reprimarização da economia brasileira nos últimos anos criou algum tipo de problema de desenvolvimento, de falta de crescimento, como a economia brasileira chegará a 2023?

A economia brasileira tem um problema crônico, que é o baixo crescimento. Se olharmos para o dólar, para fazer comparações internacionais, o Brasil cresce em torno de 1,5 ou 2% ao ano e é uma taxa de crescimento que mantém a renda per capita constante. Claramente insuficiente para aumentar a renda per capita. Então, o problema número um da economia brasileira é que ela tem pouco dinamismo interno. Evidentemente, parte disso se deve à pequena economia no Brasil. Mas parte também agravada pelo fato de a economia ser uma economia fechada. A experiência internacional mostra que os países em desenvolvimento só têm altos níveis de crescimento quando começam a se abrir. Se você comparar Chile ou Colômbia, todos os países, só têm exportações e importações acima do PIB acima de 70%. No Brasil, esse número é trinta. Então você está falando claramente de uma economia que exporta pouco, importa pouco, uma economia fechada. Isso tira o dinamismo da economia, é um fator importante. O segundo fator importante é que o Brasil está perdendo uma oportunidade extraordinária de captar recursos externos. Tínhamos juros zero no exterior, uma abundância de capital enorme, muito pouco desse capital sobrou para o Brasil. E aí eu acho que o presidente Bolsonaro tem responsabilidade pela agenda ambiental. O presidente Bolsonaro se manifestou contra a China, supostamente o principal parceiro comercial do Brasil, e complicou a aprovação do Mercosul ao atacar o presidente francês e sua esposa. Possui uma agenda ambiental retrógrada, fazendo com que os investidores se preocupem não apenas com o perfil ambiental em si, mas também com a governança. Todos os grandes fundos internacionais hoje têm uma preocupação que se caracterizou como ESG (Ambiental, Social e Governança), o que os distanciou claramente do Brasil. Assim, o Brasil capturou muito pouco do investimento estrangeiro que poderia ter. E é importante que, com uma poupança relativamente baixa no Brasil, o capital estrangeiro seja ainda mais importante. Esse, aliás, é um aspecto que um governo Lula pode colher. Imagino que tendo o apoio de Marina Silva, tenha uma boa agenda ambiental, que ao mesmo tempo pode desfazer a má imagem que o Brasil criou no exterior em matéria ambiental, e facilitar a entrada de capital. Mas você precisa de ambos. Você precisa de abertura e mais capital. E ninguém sabe se o governo Lula vai realmente se comprometer com a abertura da economia. Ou se o governo Bolsonaro está de fato comprometido com a abertura econômica, porque nada aconteceu durante o governo Bolsonaro, nesse sentido, muito pouco. Portanto, há uma enorme incógnita para o futuro, associada ao crescimento econômico do Brasil.

Uma economia fechada é desenvolver a indústria, como foi na época do “milagre econômico brasileiro” nos anos 70, e o mesmo aconteceu na Argentina com a substituição de importações. Agora, com a economia fechada, ainda assim a indústria brasileira perde um percentual do PIB total e o campo ganha. O que acontece com a indústria brasileira que, mesmo fechada, não consegue manter sua capacidade?

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A indústria brasileira tem vários desafios. Primeiro, a tributação. O Brasil possui um sistema tributário que penaliza as etapas intermediárias do processo produtivo. Isso penaliza muito a indústria. Penaliza muito menos a agricultura. Em segundo lugar, a proteção, por um lado, é bem-vinda e defendida pela indústria brasileira. Mas a modernização da indústria não pode coexistir com a proteção, pois para modernizar a indústria é preciso importar máquinas e equipamentos. Portanto, os industriais têm uma visão muito míope dessa questão. Uma reforma tributária nos moldes de um imposto sobre valor agregado, como está mais ou menos amadurecido na Câmara e no Senado, seria excelente para o setor. E se tiver vaga, melhor ainda. Apesar de já convencer os industriais disso. O campo, por outro lado, é um exemplo extraordinário, pois para a terra os impostos são muito baixos em comparação com a indústria e as cidades. O Brasil tem água, tem terra fértil, tem sol e tem talento empreendedor para desenvolver o campo. Conseguiu fabricar por meio da Embrapa, que é um dos raros casos de sucesso de empresas estatais capazes de gerar, por meio da engenharia biológica, variedades de sementes que tornaram o Cerrado produtivo. Lembro que quando eu era pequeno, o Cerrado não valia nada. As pessoas pensam que pegam um pedaço de terra lá no Cerrado porque é muito fácil, não vale nada, é terra de ninguém. Hoje, o que era savana está virando soja. E aqui temos um exemplo interessante, porque é uma atividade sem regulação, com vantagens comparativas, é uma atividade capital-intensiva ao contrário do que se pensa, porque são produções em grande escala, com irrigação, controle por satélite para conhecer a produção mundial , previsão de temperatura, negociação na Bolsa de Valores de Chicago. Tudo isso faz parte do maquinário mais desenvolvido do chamado campo, que aponta para um crescimento mais moderno, por assim dizer brasileiro. A indústria está se afogando em seus problemas, que vêm, na verdade, da substituição de importações. Assim, para resolver o problema da indústria, não é necessário fazer política industrial como tal. O Brasil precisa de uma abertura da economia e uma mudança no sistema tributário. Os demais empresários brasileiros são capazes de fazê-lo.

“O presidente em exercício que está concorrendo à reeleição tem grandes chances de ser reeleito, devido à exposição na mídia que está associada ao seu nome”

Se Lula fosse o presidente, você acha que poderia avançar no acordo União Europeia-Mercosul, sem as limitações das questões ecológicas e da Amazônia, geradas por Bolsonaro?

Esse acordo nasceu velho, no sentido de que levou 20 anos para ser negociado e terminou com um grau excessivo de protecionismo para a situação atual. Mas dito isso, é melhor se for aprovado do que se não for. Então, é claro, se o Brasil conseguir aprovar esse acordo e avançar para chegar a um OSC, serão dois grandes passos na política externa, sem dúvida. Digamos que, nesses dois aspectos, Lula esteja melhor posicionado que Bolsonaro para alcançá-lo, se ele quiser ir nessa direção.

Mudaria alguma coisa em relação ao Mercosul, teria mais força se Lula fosse presidente e não Bolsonaro?

Em teoria sim, mas aí depende dos interesses das várias indústrias, dos vários grupos. Mas, em teoria, sim, você está certo. Teria uma vocação para o Mercosul mais forte do que a do governo Bolsonaro, sem a menor dúvida, o caso de um governo Lula.

Você acabou de mencionar que estamos entrando em um processo de estagflação global, como você acha que será a economia internacional em 2024?

A economia é sempre um desafio de prever, mas minha opinião é que estamos entrando em um processo de estagflação global, com os juros subindo em todos os bancos centrais e uma queda muito acentuada da atividade econômica. Você poderia argumentar o que poderíamos ter feito melhor, e que poderíamos ter feito muitas coisas no passado. O fato é que o mundo está hoje nesta situação da qual parece difícil sair. É uma situação perigosa, pois cada vez que há um aumento das taxas de juros em todo o mundo, empresas ou países que dependem fortemente de liquidez de outras fontes podem ser afetados. O que vimos no caso da Grã-Bretanha foi um mini-pânico associado à colocação de títulos do governo britânico. Mas dá alguma medida do grau de fragilidade que temos hoje, uma fraqueza tanto no nível soberano quanto no nível corporativo. Então eu acho que é um cenário difícil, um cenário que provavelmente terá retrocessos para grandes empresas ou países. É um cenário muito adverso não só para o Brasil, mas também para a Argentina.

“No caso de Bolsonaro, o sucesso do bolsonarismo, mesmo na eleição de senadores e deputados, lhe permitiria uma base de apoio muito sólida”

Como a crise na Argentina afeta o Brasil?

A crise é ruim. Uma crise no Brasil afeta a Argentina tanto quanto uma crise na Argentina afeta o Brasil. Como destino das exportações brasileiras, a Argentina tem muito peso do ponto de vista de oportunidades de negócios. Um ambiente mais estável na Argentina seria muito positivo. Muitas vezes vi gente do agronegócio daqui dizer que, se houvesse o clima do agronegócio brasileiro na Argentina, eles prefeririam produzir na Argentina, até por questões logísticas. A soja do Brasil chega do Centro-Oeste ao porto de caminhão. A soja pode ser transportada para a Argentina através do Rio da Prata. Eles claramente têm uma enorme vantagem logística hoje na Argentina. Mesmo que o Brasil tenha ferrovias, essa vantagem diminui. Mas hoje a vantagem existe. O que afasta os investidores brasileiros? De fato, a instabilidade, as regras, os impostos e tudo mais na Argentina criaram a percepção de que era melhor não investir no país. Mas certamente, se a Argentina tivesse uma configuração econômica mais estável, seria benéfico para o Brasil. Sem dúvidas.

O Brasil tinha os mesmos problemas de instabilidade que a Argentina tinha até vocês elaborarem o Plano Real, e esse plano é discutido aqui. Não temos o nível de inflação que o Brasil tinha naquela época. Hoje temos quase cem por cento de inflação, mais parecida com o que havia no final do governo militar, em meados da década de 1980, mas fala-se continuamente de um plano de estabilização e você foi o criador da Unidade de Valor Real. Você poderia compartilhar para o nosso público qual foi a magia da Unidade de Valor Real e como o Plano Real mudou a história do Brasil?

É uma longa história, vou tentar resumir, mas deixe-me fazer uma primeira observação agora, quando André Lara Resende e eu escrevemos o plano defendendo uma unidade indexada a valor e tudo isso, foi em 1984. Ligamos naquela época não era a URV, mas era um índice de correção monetária Pro Rata Die, ou seja, por dia, mas o conceito era exatamente o mesmo. Havia uma moeda, digamos virtual, que era simultaneamente indexada ao dólar e ao Índice Geral de Preços, com uma vantagem, portanto, que estabiliza a trajetória do câmbio. Quando escrevemos nosso artigo original, a inflação estava em duzentos por cento ao ano. É impressionante aqui que você possa comparar a Argentina hoje, que está com cem por cento de inflação. Brasil pré-Plano Pré Real, que teve uma inflação de 25% ao mês. A diferença parece muito grande, mas quando formulamos a ideia original, a inflação era de duzentos por cento ao ano, não muito distante da Argentina. Digo isso porque acredito que uma solução semelhante pode funcionar no caso argentino. Há muitos detalhes de construção, detalhes tonais, etc; muito grande, por isso nunca recomendaria uma transposição automática, tem que ser por uma pessoa que se dedique à realidade argentina, que entenda as peculiaridades da Argentina para fazer as adaptações necessárias. O plano de estabilização é sempre desenhado com uma visão institucional. Você tem que levar em conta as questões de cada país, quais são as regras salariais, quais são os hábitos e costumes, etc; em todo o país. Mas o desenho básico é mais ou menos o seguinte: em um processo inflacionário, os preços sobem fora de sincronia. Por exemplo, há um mês o salário do setor X subiu. No mês seguinte, o salário do setor Y aumentou. No terceiro mês, o preço da gasolina mudou. No quarto mês, o preço de, digamos, televisores mudou. Portanto, a essência do processo que você deve tentar resolver é sincronizar esses aumentos. Se tudo aumenta ao mesmo tempo e idealmente na mesma proporção, fica muito mais fácil resolver o problema. Então a etapa de preparação para que tudo aconteça ao mesmo tempo e na mesma velocidade, isso depende muito dos detalhes adicionais de cada parte. Mas se um país entrar nessa situação, a solução é razoavelmente simples. Na Argentina, há sempre uma complicação adicional. O Brasil, por razões históricas, sempre foi o país da correção monetária. A Argentina foi o país da correção cambial. No Brasil, os ricos pensavam em dólares, mas a grande maioria da população pensava em reais ou em moeda indexada, naturalmente. Quando você vende algo a crédito, não foi uma correção cambial, sempre foi uma correção monetária, o que ameniza muito o problema. A Argentina tem esse complicador do ponto de vista teórico, para o qual não tenho solução, mas seria necessário pensar com mais clareza com alguém que se dedica à realidade argentina há algum tempo, para pensar em como resolver o problema da âncora cambial, como é que na Argentina é difícil parar um processo inflacionário sem correr o dólar. E quando o dólar está atrelado, as pessoas não acreditam e não apostam porque ganharam apostando contra ele. Então, como quebrar esse círculo vicioso? É um dos segredos de toda estabilização. No caso brasileiro, o problema foi bem menos intenso do que no caso argentino. Mesmo assim, é bom lembrar que o Brasil no início do processo do Plano Real adotou uma taxa de câmbio flutuante e a taxa de câmbio flutuou para baixo. Era como dizer pela regra da FGV (Fluxo Gradualmente Variado), a nova moeda tinha que valer um dólar. Mas como os juros eram altos no Brasil, entrou muito capital e o real passou a valer mais que o dólar. Esse processo de avaliação foi muito intenso. Chegou a 1,80 e só parou por conta da intervenção do Banco Central, que não queria que a moeda se valorizasse muito. Mas foi um processo muito importante para deflacionar, digamos, a economia e garantir o sucesso do Plano Real. Algo semelhante pode ser feito na Argentina? De longe acho que não, temos que pensar em outra solução no caso argentino.

E qual seria essa outra solução?

Não estou pronto para falar sobre isso.

Mas conceitualmente como seria?

O país que pensa em dólares. Você tem que ter uma âncora de moeda. O país tem poucas reservas, é fácil apostar contra a moeda âncora. O país está acostumado a apostar contra a âncora cambial e tirar o melhor de todas as crises argentinas, que quem tem dólares sai melhor do que quem não tem dólares. Essa lógica, essa mentalidade teria que mudar. Não adianta tentar mudar com um apelo patriótico, porque isso não resolve. As pessoas cuidam de seus próprios interesses, o que é normal. Teremos que fazer isso neste caso e, aos poucos, criar o conceito, que na Argentina ainda não está muito claro, de taxa de juros real positiva. O Banco Central tem que ter a política monetária de que, seja qual for a inflação, seja qual for a taxa de câmbio, você está sempre melhor na moeda nacional. Então esse é um ponto importante. Se a inflação for cem, será 120. Estou falando de números aproximados, se o câmbio está desvalorizando 110% ao ano, a taxa de juros tem que ser 120. A taxa de juros tem que ser algo que as pessoas digam que é melhor do que compra de mercadorias ou dólares. Se você conseguir gerar essa mentalidade, já tem condições de realizar o Plano Real na Argentina. Mas o primeiro passo é mudar a política do Banco Central e de forma rígida. Tem que ser uma política previsível. A regra que estou te dizendo é simples, não importa se a inflação é cinqüenta, oitenta ou 100%, a taxa de juros é sempre maior que a inflação. Não importa qual seja a desvalorização da moeda, ela é sempre maior que a desvalorização da moeda. Essa é a política monetária que garante o sucesso na elaboração do Plano Real. Acho que não temos essa política do Banco Central hoje na Argentina, mas poderíamos ter imagens. Sempre tenho medo de opinar sobre a Argentina, porque cada país tem suas peculiaridades. Cansei de ver americanos, pessoas com Prêmio Nobel, etc., falarem coisas erradas sobre o Brasil, porque não conhecem a realidade brasileira. Não quero cometer o mesmo erro aqui e comentar sobre a realidade argentina que pouco conheço. Mas sem garantir essa mudança de mentalidade, é demais e é praticamente impossível aplicar uma solução como o Plano Real.

“A economia brasileira tem um problema crônico, que é o baixo crescimento”

Uma questão mais conceitual que transcende a Argentina e qualquer país: na Argentina a taxa de juros é negativa porque o Estado é o primeiro devedor, e a forma que tem de liquefazer sua dívida é que a taxa de juros que paga é negativa, e ao mesmo tempo, o Estado imprime dinheiro porque tem déficit fiscal. Se todos os preços subissem simultaneamente, seria necessário ter déficit fiscal zero ou superávit fiscal, porque se não fosse, um plano de estabilização não poderia ser implementado?

Essa é uma pergunta interessante, mas os planos de estabilização não costumam ser acompanhados de déficit zero. Ao contrário, o plano de estabilização é aquele que gera o apoio político para estabilizar o déficit. A ideia de que a taxa de juros tem que ser negativa por causa da dívida pública é um equívoco. Se você quiser resolver o problema, a taxa de juros deve ser sempre positiva. A ideia de que o Banco Central emite moeda é uma velha ideia monetarista. Parece plausível porque sempre pensamos na inflação como excesso de moeda. mas isso não é verdade. A inflação é basicamente fiscal. Então, eu diria que a regra básica seria uma taxa de juros real positiva primeiro. Segundo, ter um programa de estabilização que tenha apoio suficiente da população para gerar uma política de déficit zero ao longo do tempo. Eles não precisam ser zero, mas déficits sob controle. É importante lembrar que a relação dívida/PIB permanece constante, se o PIB cresce a dívida também pode crescer. Por isso não precisa de déficit zero, mas tem que ser um déficit limitado, não pode ser um déficit muito grande. Então eu acho que é por isso que você chamou a atenção para este fato, mas não há nenhum programa de estabilização que eu saiba que tenha sido precedido por um déficit zero, porque a estabilização sem pressão ocorre quando as condições ainda não são perfeitas, mas cria as condições para ser perfeito. É o caso do Plano Real. É interessante. A estabilidade fiscal no sentido de superávit fiscal ocorreu cinco anos após o Plano Real. O Brasil teve déficits de 1994 a 1999, mas eu poderia citar vários outros, como a estabilização de Israel, onde dificilmente você verá um déficit público antes de conseguir baixar a inflação. Geralmente funciona ao contrário. E quando você baixa a inflação, você cria as condições políticas para eliminar o déficit público. Não há dúvida de que, no longo prazo, o problema é fiscal. Mas o que não pode acontecer é errar na taxa de juros, isso é sempre positivo e também não pode exigir estabilidade, o déficit zero primeiro. Porque um fenômeno acontece muitas vezes, no Brasil foi muito relevante, que as estatísticas enganam. Como os impostos aumentam com a inflação, os gastos do governo nem sempre aumentam com a inflação. Quando a inflação acelera, o déficit público diminui, que é o erro de perspectiva, pois quando a inflação acaba, essa fonte de redução do déficit desaparece. Este é um bônus de múltiplas ações. O déficit, digamos, do dia seguinte à estabilização é maior que o déficit do dia anterior, o que é um tanto paradoxal. Mas é por causa desse efeito dos impostos sobre os gastos que eles respondem de forma diferente à inflação.

Segundo a mídia brasileira, o Partido dos Trabalhadores, especialmente Aloizio Mercadante, o convocou para pedir que você propusesse um plano econômico para o Brasil, correto?

Como sempre, muitas vezes a imprensa acredita e exagera. Aloizio Mercadante me convidou para conversar com um grupo de economistas petistas sobre minhas ideias. Em março deste ano, bem antes das eleições. Fui, conversei com todas as forças democráticas do Brasil. Não falo com o regime Bolsonaro porque não acho que Bolsonaro esteja comprometido com a democracia, e o governo Bolsonaro também não quer falar comigo, honestamente. Então, eu acho que é uma resolução bilateral, mas do ponto de vista da conversa, eu falo com todas as outras correntes políticas. Falei com o PT e voltaria a falar com prazer, mas só tive uma conversa, e foi em março. Escrevi um ‘paper’ recentemente, junto com alguns amigos meus, com algumas ideias para o Brasil. Mas foi iniciativa minha, então não é que o PT me pediu para fazer o plano econômico. Eles conversaram comigo, foi uma conversa oral, não havia nada escrito, eu lhes contei minhas ideias, e pronto. Não participei do programa do PT nem da formulação de nenhum programa do Partido dos Trabalhadores.

Você acha que Geraldo Alckmin terá alguma influência em questões econômicas ou que o PT vai finalmente decidir a linha econômica sobre as alianças com outros partidos que formaram a frente que levaria Lula à presidência?

Ele certamente tem peso, embora seja uma figura discreta. Se você influenciar as decisões, pode ter certeza de que ninguém saberá disso. Ele nunca fala, mas minha leitura é que ele tem muito peso e uma importante força moderadora centrista no PT, sem dúvida. Mantém a confiança dos mercados financeiros e a confiança do mercado empresarial, do mercado e a confiança do agronegócio. Então, hoje tem um potencial de diálogo muito importante. Agora, sabendo da importância efetiva que terá, fica difícil saber. Ele é um homem que trabalha nos bastidores. Era assim quando era vice-presidente de Mário Covas. Tinha muito peso, mas não se apresentava como tal.

Como a economia brasileira é diferente hoje de quando Lula assumiu o poder pela primeira vez em 2002?

Primeiro, havia um cenário internacional favorável, era o início do boom das commodities, o fim do dólar forte. Hoje estamos no fim do boom das commodities e claramente um dólar forte para o mundo inteiro. O cenário internacional já é um grande diferencial. A cena doméstica também é muito diferente. A economia estava bem ordenada em 2002. O que aconteceu em 2002 foi que Lula foi demonizado, essa é a palavra. Todos pensavam que ele expropriou propriedades, que era um comunista perigoso. Era como se um meteoro fosse cair sobre o Brasil. Dei essa imagem outro dia em uma entrevista para o The Economist, gerou um meteoro de pânico. Você pode imaginar se eu disser que um tsunami vai atingir Buenos Aires? O pânico que cria. Mas o tsunami não atingiu Buenos Aires, nem um meteoro caiu sobre o Brasil, e a economia voltou normalmente à sua trajetória anterior. Então era uma economia muito ordenada. Hoje temos uma economia desordenada, temos um superávit fiscal zero em termos gerais, sustentado pelo congelamento dos salários dos funcionários públicos, coisa que o Brasil já fez várias vezes que dura muito tempo, mas depois volta. Há enormes pressões sobre o orçamento público para o próximo ano, já contratado. Tanto do ponto de vista fiscal interno, quanto do ponto de vista externo, a situação é muito mais difícil agora do que antes. Também do ponto de vista do Congresso, Lula em 2002, o PSDB, foi a principal oposição, fez uma oposição muito construtiva. No sentido de apoiar todas as medidas de Lula que foram boas para a economia, independentemente de terem sido enviadas pelo PT ou não. Você não terá essa vantagem. Hoje a oposição não é o PSDB, mas o bolsonarismo e o próprio Bolsonaro. A trajetória inteira indica intransigência e não rende nenhum milímetro. Então ele terá uma oposição muito mais dura no Congresso. E vai ficar um legado do orçamento secreto, das emendas do relator, que é um legado muito ruim, de perda de capacidade orçamentária, de controle orçamentário do Executivo e o legado que mencionei antes. Lula já anunciou que quer acabar com o orçamento secreto, o que implica em confronto direto com boa parte do Congresso eleito. Um cenário doméstico e internacional muito mais desfavorável, que recomendaria muito mais prudência do que o que enfrentou em 2002.

Ao mesmo tempo, esse PT e esse Lula, comparados a 2002, são menos revolucionários do que há vinte anos, mais domesticados? Ou o que vemos no resto da América Latina, Petro no Peru, Boric no Chile, são os que ficam mais rosados ​​do que verdes. O PT seguiu o mesmo processo de deslocamento para o centro?

O Lula do primeiro governo foi um Lula centrista, que criticou o legado maldito de Fernando Henrique. Mas era apenas uma figura de linguagem, não baseada no que agradava à herança abençoada de Fernando Henrique, e aproveitava o ciclo de matérias-primas que lhe era favorável. Como as coisas vieram a ser dois trilhos no segundo mandato de Lula, e com Dilma, onde o Brasil embarcou numa política desenvolvimentista muito marcada. Foi isso que causou um desastre, uma recessão enorme, na esquerda criou uma recessão enorme. Agora que Lula vai estar muito mais perto de 2002, ele vai ser muito mais centrista. Nem Lula, da mesma forma, estará em um segundo mandato, ele estará no primeiro mandato. Ele começou com seu reflexo, ou maturidade do PT, porque eles já estão vendo que políticas erradas são erradas, e houve uma grande recessão na economia brasileira. E parte também pelo medo ou compreensão de que as circunstâncias são diferentes, agora são muito mais difíceis. Minha sensação é que o governo Lula terá uma posição mais central.

Conta-se que quando começou, em 2002, Lula nomeou como ministro da Economia não um economista, mas um político, um prefeito de Ribeirão Preto como Palocci, porque na realidade continuou com a boa economia do ministro Pedro Malan. Qual a sua visão de como o ministro Paulo Guedes deixa a economia?

Primeiro eu diria o seguinte, Paulo Guedes sai da economia com enorme frustração por parte de todos aqueles que acreditavam que haveria uma revolução liberal no Brasil. Se fizermos as seguintes perguntas, houve progresso na privatização? Apenas uma privatização de fato do sistema elétrico foi realizada, o que foi feito muito mal. Houve avanços na reforma administrativa para tornar o Estado mais eficiente? Algum. Você avançou na abertura comercial? Não. Foi feita uma reforma tributária para eliminar distorções na tributação? A resposta é não. Hoje, de fato, os avanços que ocorreram foram, por um lado, a aprovação da reforma da Previdência, que estava madura desde o governo Temer, foi aprovada no início do mandato graças aos esforços do presidente da Câmara dos Deputados, que era Rodrigo Maia. E o segundo aspecto positivo foi a independência do Banco Central. Duas coisas que já estavam mais ou menos em andamento. Aparentemente, o próprio Bolsonaro entendeu mal o que significava a independência do Banco Central e depois tentou acabar com isso, essas são histórias que eu vi. Mas era tarde demais, tornou-se lei. Mas nenhuma dessas duas medidas permite dizer que foi um bom legado, foi um legado muito frustrante para quem acreditou nele. Nunca acreditei nessa promessa liberal porque Bolsonaro não é liberal. Em nossos países, quando o presidente da república não quer, isso não acontece. Não há ministro das Finanças onde tudo pode acontecer. Então eu acho que a primeira coisa para o Brasil ter sucesso é ter um presidente que queira fazer as reformas ele mesmo, se ele não quiser fazer as reformas, as reformas não são feitas. O mercado ficou muito entusiasmado, acreditando que agora com Bolsonaro e este Congresso, as reformas serão realizadas. Bem, eu diria que não. As reformas não vão ser feitas porque ainda não foram feitas, porque Bolsonaro não quer fazer as reformas. É tão simples como isso. Se Lula quer ou não fazer reformas, resta saber. Mas lembro que no caso da nomeação de Antonio Palocci, foi recebida com muito ceticismo pelo mercado. Mas o que virou a maré das expectativas foi o segundo nível, ele tinha excelentes secretárias sob seu comando. Marcos Lisboa estava lá, Bernard Appy estava lá, co-autor de um artigo recente comigo. Joaquim Levy estava no Tesouro e tinha excelentes secretários, por assim dizer. Então, quando as pessoas falam que o ministro vai ser alguém do PT, eu acho que provavelmente vai ser alguém do PT, se ele tiver uma boa secretaria debaixo dele, isso funciona também. Agora, estamos falando de um “se fosse”, não sabemos quem seria o ministro ou os secretários neste momento.

Última pergunta, não só para o economista, mas para o cientista social, o que aconteceu no Brasil para a polarização ser dessa magnitude, para o presidente chamar o candidato que o desafia de ex-prisioneiro e ladrão na cara? O que aconteceu que o PSDB desapareceu?

Olha, eu conheço muito bem a história. Acho que há uma sequência de grandes erros do PSDB e das lideranças que saíram. Saiu Fernando Henrique, saiu Serra, saiu Alckmin para o PT, Tasso Jereissati se aposentou da política. As lideranças tradicionais, que eram do núcleo do PSDB, desapareceram ou pela idade ou porque mudaram seus objetivos de vida, por questões de saúde. A segunda geração não entendeu, Aécio Neves, João Doria, Eduardo Leite, não chegaram a um acordo na briga interna, que acabou nessa situação maluca por parte do partido que tinha mais credenciais para ter candidato a vice-presidente. O partido tomou a decisão de não ter Doria, que tinha 5% das intenções de voto antes de iniciar a campanha, e  optou pelo nome menos conhecido, foi Simone Tebet, que fez boa campanha. Mas é difícil criar um nome, acabou com menos votos do que o próprio João Dória tinha antes de começar a campanha. Acho que houve um problema de sucessão de lideranças, erros estratégicos, você sabe que as pesquisas não perdoam o resultado, foi catastrófico para o PSDB e abriu caminho para a única oposição efetiva, Bolsonaro.

*Produção – Sol Bacigalupo.

*Texto publicado originalmente no site Perfil Argentina.

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