cultura de rua

África é mãe do hip hop, diz autor do 1º disco do movimento no Brasil

O processo de aproximação com o movimento trouxe, para MC Who, muitas reflexões sobre a identidade negra e a forma como a cultura, que atravessa periferias de todo o mundo, dialoga com essa formação

Quando recebeu o convite para gravar um disco, MC Who pensou que estava diante da realização de um sonho.
(Créditos; Rovena Rosa/Agência Brasil)

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Quando recebeu o convite para gravar um disco, MC Who pensou que estava diante da realização de um sonho. Mas a importância do projeto que viria se tornar o vinil Hip Hop Cultura de Rua ultrapassou as projeções daquele jovem periférico, que trabalhava de office boy. As oito faixas que vieram a público em 1988 são hoje lembradas como a primeira gravação da cultura hip hop no Brasil.

A coletânea, que reuniu membros dos diferentes grupos que, à época, dançavam e cantavam na Estação São Bento do Metrô, no centro paulistano, foi pensada inicialmente com um disco da banda de MC Who, O Credo. “A gente teve a sorte de ser protagonista de uma foto de capa na época do Jornal da Tarde”, conta Who sobre como surgiu o convite.

A banda, no entanto, não tinha ainda composições próprias suficientes para fechar sozinha um disco. Foi assim que surgiu a ideia de convidar músicos que estavam na cena que ganhava força com artistas de diversas partes da cidade. “Dialogando muito com o punk, que era um pouquinho mais velho que a gente, a gente disse: ‘Uma coletânea contempla todo mundo, e aí todas as gangues vão aparecer’”, lembra. Segundo ele, o disco deverá ser relançado em breve, com as faixas remasterizadas.

O processo de aproximação com a cultura hip hop trouxe, para o MC, muitas reflexões sobre a identidade negra e a forma como a cultura, que atravessa periferias de todo o mundo, dialoga com essa formação. “A grande origem do hip hop é uma mãe, que é a mãe África, que é o processo diaspórico”, enfatiza.

Mais tarde, Who participou de outro momento importante da história do hip hop em São Paulo, que foi a expansão das batalhas de MCs para a Praça Roosevelt, também no centro da cidade. Ali, ele esteve ao lado de figuras centrais da cultura no país, como Mano Brown, dos Racionais MC’s. “Aqui é um dos grandes berços do rap nacional, talvez o maior, mas a gente ainda tem muito a pesquisar”, destaca.

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Desde então, a cultura nunca mais saiu daquele espaço. Até hoje acontecem batalhas de rimas e de slam na praça, também conhecida pela cena do teatro independente. “O slam, na nossa percepção, é uma manifestação inspirada pela cultura hip hop também. E também tem a batalha de rima aqui, já foi, já voltou, mas ela está sempre aqui, dialogando com o skate, que também é algo que complementa a semiótica da nossa ocupação da rua”, diz.

Para o MC, recuperar essa história ajuda também a lembrar nomes que acabaram apagados nas narrativas construídas sobre o hip hop no Brasil ao longo dos anos. “Às vezes eu brinco que o Sabotage [rapper paulistano] está dando bronca em todo mundo, dizendo: ‘Eu não quero ficar sentado sozinho aqui nesse Abu Simbel [templo egípcio da antiguidade], nesse panteão. Cadê o J.R. Brown? Cadê o Uzi? Cadê todo mundo?’”, comentou em entrevista ao programa Caminhos da Reportagem, da TV Brasil.

Confira os principais trechos da entrevista com MC Who.

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Agência Brasil: Hip Hop Cultura de Rua, a primeira coletânea do gênero feita aqui no Brasil. MC Who, conta um pouco pra gente como é que foi essa história. Era pra ser antes um disco da sua banda, do Credo, era isso?
MC Who: É isso mesmo. A gente teve a sorte de ser protagonista de uma foto de capa na época do Jornal da Tarde. E, nas andanças nas gravadoras, o Wagner Garcia, diretor da [gravadora] Eldorado na época, recém-chegado, viu e perguntou: “Você é poeta da rua?”. Eu achei engraçado, né? Eu falei: “É, a gente faz poesia na rua”. E começou a conversar comigo, pediu dois dias, perguntou se tinha letra, o que a gente tinha pronto e disse: “Me dá uns dois dias que eu vou falar com o chefe”.

Foram os dois dias mais longos da minha vida, esperando essa resposta. Até que veio a resposta positiva. Imagine, um cara que era office boy, de periferia, pais migrantes, operários, e falar: “Vou gravar um disco”. Sendo que a gente não era cantor, não era nada disso. E assim começa a história. Ele [o disco] se transforma numa coletânea, numa perspectiva muito da cultura hip hop, já está se constituindo um movimento hip hop.

Tem esse paradoxo, essa discussão desse binômio e sempre que eu tenho oportunidade eu esclareço. O hip hop é uma cultura. Uma cultura gigantesca, produtiva, criativa e dinâmica. E o movimento é organização política, quer dizer, isso já veio de lá, o mito de origem da cultura hip hop está em 11 de agosto de 1973, com a festa que a Cindy Campbell junto com o seu irmão Kool Herc desenvolveu. E, um ano depois, o Africa Bambaataa pega e inaugura a Zulu Nation, que é para organizar isso de uma maneira sistemática, ter uma proposta de acolhimento daquelas manifestações que aconteciam na rua, e também de se posicionar politicamente, na efervescência na década de 1970. Nós temos ali já naquele momento pós-ações afirmativas: Black Panthers, Black Exploitation, quer dizer, todas as manifestações culturais apontando para essa autonomia, esse protagonismo do corpo preto.

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A gente já tinha essa carga, essa provocação transgressora da cultura. Então, dialogando muito com o punk, que era um pouquinho mais velho que a gente, a gente disse: “Uma coletânea contempla todo mundo, e aí todas as gangues vão aparecer”. E veio outro desafio: como escolher? A gente parte das gangues de break, que é a Back Spin, com o Thaíde, o MC Jack e eu e Código 13, da Nação Zulu. Isso era uma coisa que transforma o Cultura de Rua na primeira coletânea, porque ele é o que contempla todos os elementos do hip hop, porque o hip hop não pode ser percebido por um elemento só, o elemento só tem o nome dele: breaking, na época break, sem ser anacrônico, mas revisitando esse momento, break, depois breaking, depois a pesquisa nos trouxe a riqueza de informações, a internet nos trouxe toda essa gama do que era praticado lá. A gente enfrentou muito também: “Ah, vocês estão imitando os americanos.”

Depois, com essa trajetória que eu tive de pesquisa, vi que aconteceu na cena black do Rio, onde tinha discussão da turma do Tony Tornado e Gérson King Combo com os sambistas, aquela matéria de 76, histórica, dizendo o que está acontecendo. A gente também passou por um processo parecido. E, depois, com essa possibilidade de se organizar, principalmente intelectualmente, eu, com toda essa possibilidade de troca de informações com outros praticantes do hip hop, chego à conclusão de que não existe essa questão, porque nós somos o mesmo povo diaspórico.

Nós passamos pelas mesmas trajetórias de opressão. Quer dizer, o hip hop, a gente não pode esquecer que ele tem uma mãe. A grande origem do hip hop é uma mãe, que é a mãe África, que é o processo diaspórico. Que eu não gosto, eu sou mais para o lado do Joel Rufino, eu falo que é o deslocamento do corpo preto escravizado. Porque a diáspora é uma questão heroica, da travessia de um deserto e tal, diásporos, espalhar semeando. Não, nós viemos pra cá trancados, nossos antepassados. Então, a gente tem que entender que isso marca essas questões todas, dos apagamentos históricos e tudo.

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O que o hip hop precisa e tem compromisso tanto de quando se originou há 50 anos, há quase 40 no Brasil, a gente caminha para 40 anos no ano que vem, na minha percepção, porque a questão histórica precisa de um mito, ela precisa de marcos para poder se fundamentar, ficar consolidado e você dizer para as novas gerações. Esse compromisso com a matriz africana precisa estar sempre sendo renovado e reafirmado dentro da construção da nossa cultura, que é dinâmica.

Agência Brasil: Muito se fala da Estação São Bento, aqui, no centro de São Paulo, da importância que aquele espaço tem para o hip hop, da Rua 24 de Maio, mas e a Praça Roosevelt também tem um papel nessa história, não é verdade? Queria que você contasse um pouco como é que essa praça se insere na história do hip hop e como é que o hip hop ainda está aqui.
MC Who: Essa pergunta é importante porque ela dá espaço para a gente lembrar grandes figuras que não estão mais com a gente, como o J.R. Brown. O J.R. Brown, o DJ Uzi, o Marcos Tadeu Telésforo, o grande letrista DJ Uzi, autodidata na língua inglesa, ele traduzia tudo para a gente entender o que estava acontecendo. E o J.R. Brown era um visionário, era um cara que estava à frente do tempo.

Nós éramos amigos, andávamos juntos, dividindo tudo da potência. A gente não ficava só nas equipes de baile, apesar de a gente gostar também, a gente andava nas outras casas, lidava com outras tribos. E a gente entendia que o hip hop estava num caminho que era crescente, que ia ficar muito grande. A gente entendia que estava crescendo demais, que a São Bento já não suportava mais. E ali tudo adolescente, tudo muito, os hormônios, aquela coisa, tinha as questões de protagonismo.

O break, que era a grande atração, começa a dividir essa atenção, e por uma característica muito simples, porque o break precisa do corpo para se expressar, e o rapper, ele fala. Você vê, aqui, nessa entrevista, como a gente fala. Acabou que esse protagonismo das lentes também levou muito a essas discussões. E, principalmente, enquanto tinha a roda de break, os rappers ficavam batendo na lata do lixo, que era a nossa bateria eletrônica, e cantando as suas novas letras, às vezes, até improvisando ali, e isso teoricamente atrapalhava.

Muita gente fala que é uma briga, não é. Foi uma tensão de espaço. Aí o J.R. falou assim: “Who, pega os meninos, vamos subir para a Roosevelt, que lá a praça é só nossa, só do rap, e a gente vai tocar isso lá”. E aqui é um dos grandes berços do rap nacional, talvez o maior, mas a gente ainda tem muito a pesquisar, os outros territórios, 26 estados mais o DF. Mas aqui, na Roosevelt já passou [de tudo] aqui: começando com Racionais, que eram esses mais novos que estavam com a gente. O [Mano] Brown, inclusive, fala isso no livro do TR, que é o antigo DJ do MV Bill, ele escreveu um livro, chama Acorda Hip Hop, onde numa entrevista o Brown fala isso: “Subimos eu, o MC Who, o J.R. Brown e a gente foi pra Roosevelt e ocupou a Roosevelt com o rap.”

Agência Brasil: E continua essa cultura viva aqui?

MC Who: Continua, e é muito legal. Na época, a Roosevelt tinha dois andares. Depois, ela sofreu uma reforma forte, e hoje ela é essa praça mais plana aqui. Lá na outra ponta da Roosevelt, que dá pra ver o caminho pra Radial Leste, ali acontece o Slam Resistência. O slam, na nossa percepção, é uma manifestação inspirada pela cultura hip hop também. E também tem a batalha de rima aqui, já foi, já voltou, mas ela está sempre aqui, dialogando com o skate, que também é algo que complementa a semiótica da nossa ocupação da rua. É importante que a gente não esqueça a Roosevelt dentro das nossas narrativas, porque trazendo a Roosevelt, trazendo o território, trazendo o cenário, a gente traz os personagens.

Às vezes eu brinco que o Sabotage está dando bronca em todo mundo, dizendo: “Eu não quero ficar sentado sozinho aqui nesse Abu Simbel [templo egípcio da antiguidade], nesse panteão. Cadê o J.R. Brown? Cadê o Uzi? Cadê todo mundo?” Porque passa por essa coisa da validação, do establishment. Quando a mídia, ou alguém famoso, no caso do [sambista] Cartola, no caso do Djonga, eles precisaram ser validados pelo jornalista branco, ou burguês, ou culturalmente mais avançado. Esses precisam estar sendo trazidos, porque eles foram muito importantes. O J.R. dizia: “Toda praça e toda rua é hip hop”. E a gente perdeu ele, um cara que faz muita falta. O DJ Uzi faz muita falta. E o Marcos Tadeu, que também trocou muita letra, que é um dos grandes, talvez o maior letrista da nossa geração e é esquecido. É importante a gente relembrar isso.

Agência Brasil: MC Who, conta pra gente um pouco como foi sua chegada ao hip hop. De que parte aqui de São Paulo você é?
MC Who: Eu nasci e fui criado no Real Parque, perto da Ponte do Morumbi, na época era um bairro operário. Eu passei por outros bairros, Aeroporto, depois eu fui pra Parque Araribá, Vila das Belezas e fomos criados ali na periferia de São Paulo, zona sul e extremo sul sempre. Eu tenho vários irmãos mais velhos e tenho meus tios, que tinham muito disco, até hoje eu tenho esse hábito de manipular os discos. Desde pequeno eu tive disco em casa, tive disco desde Luiz Gonzaga, ou Saraiva, esses instrumentais que o meu pai ouvia, até as coisas mais contemporâneas pra época dos meus irmãos, como Caetano Veloso, Gal Costa, todos esses e vários outros que foram chegando, mais alternativos.

Aí eu entendi que a música era muito além do que aparecia na televisão ou nos jornais ou nas revistas. Tinha coisas alternativas ali. Assim que eu tomei contato. Depois chega a black music tanto no colégio quanto dentro de casa também. Eu fui entender que o Tim Maia era black music e tal. Entender tudo aquilo era também da nossa identidade. Apesar de a gente ser mestiço, a gente queria se identificar com a questão cultural e a música me fez entender que eu era um homem preto. Muita gente desestimulava isso.

“Você não é tão preto”. Hoje a gente sabe que é o tal do colorismo, mas na época… Não, tudo que eu faço é coisa de preto. Quando no começo dos anos 80 começam a chegar as primeiras referências da cultura hip hop, cultura de rua, que estava acontecendo nos Estados Unidos. Tem, por exemplo, desde um vídeo da banda [norte-americana] Chic, Hangin’ Out, que mostra o garoto quebrando no breaking, no break, no pop e o boombox ali. Tinha um cenário de falar: “Quero fazer isso”.

Como todo adolescente quer ter isso, quer ter essas identidades. Depois tem um monte de artistas pop que foram usando elementos da cultura de rua como break, como Lionel Richie. Mas eu penso e proponho que o Beat Street, que foi lançado no Brasil como Loucuras do Ritmo, ele seja o grande, apesar de ser uma alegoria bobinha, num caso de romance e tal, mas ele já mostra ali como que funcionava a cultura pra nós. A gente discutindo hoje sabe que, para os Estados Unidos, o Beat Street não é tão importante ou quase nenhum importante, a não ser uma coisa alegórica mesmo, do cinema, da indústria. Eles valorizam o Myron Wad Style, de 1983, que só foi chegar aqui ao Brasil pra gente entender e assistir a ele na década de 1990. Mas ele foi lançado no Brasil também, mas passou num circuito acadêmico, a gente foi descobrir isso depois. O contato com a cultura foi isso: uma identidade imediata.

Existia um desafio muito grande de dizer: “Ó, eles conseguem cantar falado assim porque é inglês. Inglês tem uma série de contrações e tal”. Foi o primeiro desafio para um garoto de 12 anos. Aos poucos, a gente foi conhecendo poesia. E a gente começou a cantar poesia. Seja ela Fernando Pessoa ou Manuel Bandeira. Isso é uma coisa singular minha, cada um teve o seu processo.

Mas eu e o Cássio, o DJ Uzi, do Credo, a gente pegou esse caminho. Nós pegamos as métricas das poesias e entendemos que a gente tinha que escrever daquela forma para que a gente tivesse a levada, que hoje chama flow. E é lógico que isso vai se sofisticando, vai ficando cada vez mais sofisticado. Mas era essa necessidade de se expressar, que a gente lia e queria dizer o que estava entendendo daquilo. A história conta o resto, mas eu comecei assim.

Agência Brasil: Queria falar um pouco também sobre O Credo, que era sua banda no início. Queria saber um pouco sobre o que vocês trouxeram para o disco Hip Hop Cultura de Rua.
MC Who: O Credo na época tinha uma preocupação de provocar isso, que as pessoas pensassem nelas, que trouxesse uma reflexão da sua existência. A gente ficava provocando porque tinha a questão da religião, tinha a questão da sua origem, então nós fizemos essas provocações, tanto teóricas dentro das letras, que nós, pela formação familiar, minha mãe influenciou, meu pai influenciou muito a mim ler. O Cassius Franco, o DJ Uzi, também lia muito e pesquisava muito sobre música, quanto à origem dele com o pai, que era DJ também de jazz. As letras tinham essa pegada pra provocar mesmo. E aí também a questão estética de que a gente era influenciado muito, tanto pelo jazz, quanto à música instrumental brasileira, e por essa questão da transgressão, do Malcolm X [líder e pensador negro norte-americano]. A gente ouvia muito Public Enemy na época.

O [grupo de rap norte-americano] Public Enemy provocou a gente também a dialogar com essas influências. A gente foi buscar os guitarristas de metal, que nem eles gravaram com Slayer, Tantrax [bandas de heavy metal] e tal. E a gente foi atrás do Hélcio Aguirra, finado Hélcio, saudoso, que era do Golpe de Estado, a maior banda metal na época, muito amigo do nosso produtor e músico Akira S, que também já vinha de outro setor, dos Garotas que Erraram, que era uma música eletrônica alternativa da época.

Teve uma ideia do Gilson Fernandes, que era o produtor do disco, e falou que o Boccato, o instrumentista Boccato, tinha feito as demos com a gente, mas que o disco tinha que ter o Raul de Souza, que era internacionalmente conhecido. O grande Raul de Souza vem de maneira muito generosa e participa das faixas do Credo, o que muita pouca gente sabe. O maior trombonista do mundo na época, pela Down Beat, que era uma revista especializada, o Raul de Souza gravou com o Credo, que eram os garotos da periferia.

Aproveitando isso, as nossas faixas vão ser remasterizadas porque vai ser lançada uma reprensagem do Cultura de Rua através da Vinil Brasil, onde o Michel fez um trabalho muito especial de recuperação dessa mixagem, dessa qualidade técnica que vai valorizar esses instrumentistas que O Credo teve a honra de receber em suas faixas.

Assista na TV Brasil ao Caminhos da Reportagem sobre hip hop:

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