* POR ALEXANDRE GOSSN

Análise do filme ‘Napoleão’, de Ridley Scott

Estrelado por Joaquin Phoenix (Coringa), o longa já está em cartaz nos cinemas brasileiros

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(Crédito: Divulgação)

Tinha muitos motivos para assistir a obra: minha avó sempre foi admiradora do gênio militar francês e cresci ouvindo detalhes da sua jornada, da Córsega a Toulon, de Toulon a Paris, de Paris ao Egito, do Egito à Boemia, da Boemia à Moscou, de Moscou à Waterloo e desta à llha de Santa Helena.

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Não vou julgar Napoleão, mas sim o filme.

Bem, impossível não reconhecer os méritos da película, afinal é uma obra do mestre Ridley Scott (e ancião como Clint Eastwood), que a caminho dos 90 anos, segue na ativa em alto nível. Temos ainda um elenco soberbo e como cereja do bolo a absurdamente sensual e insinuante Vanessa Kirby e Joaquin Phoenix, que é um ator que se estiver médio, já é um nível muito acima da maioria.

A excelência técnica e na direção de atores de Scott é famosa: Allien, Blade Runner e Gladiador só para ficar nos óbvios, não me deixam mentir. Com ‘Napoleão’ essa qualidade tem as digitais de Scott especialmente na retratação da batalha de Austerlitz na Moravia (hoje República Tcheca), quando o gênio militar francês deixa os exércitos de Áustria e Rússia de joelhos, usando a armadilha de uma batalha sobre gelo fino para afogar canhões, cavalos e soldados adversários.

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Mas também senti falta de muita coisa, o que em um filme de cerca de 3 horas, creio que constituem algumas falhas, entre elas;

– O filme retrata Maria Antonieta rapidamente demais e sequer menciona Danton, embora mostre os estertores de Robespierre e do período do Terror com fidelidade;

– Não há alusão ao fato de que, embora Napoleão tenha sido um militar revolucionário, tenha sido um governante conservador, a ponto de inclusive, revogar a abolição da escravidão nas colônias;

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– Me incomodou também o tom do terço final da obra, onde penso que uma visão tipicamente inglesa (Scott é inglês) se apoderou da narrativa, apresentando Duque de Wellington, o nemesis real e narrativo de Napoleão de forma superficial e não humanizada, quase heróica.

– Embora a obra sugestione (e isso de fato aconteceu) que a Inglaterra despejava montanhas de dinheiro, homens e armas para insuflar rebeliões monarquistas dentro do território francês para derrubar o governo revolucionário e jamais tenha admitido a legitimidade de Napoleão (que verdade seja dita, causava asco e repulsa em todas as famílias reais europeias pela falta de linhagem nobre e modos) como governante, penso que faltou explorar mais a visão dos dois lados: como os monarquistas se sentiam vítimas de um golpe de Estado que derrubou Luis XVI, e ao mesmo tempo vários revolucionários se sentiam traídos por Napoleão e o seu golpe de Estado contra o comitê revolucionário;

– A despeito de Ridley Scott já ter provado que consegue fugir de alguns maniqueísmos, como quando deixa claro em ‘Cruzadas’ que os bárbaros invasores eram os cristãos medievos e não Saladino e os seus súbitos muçulmanos, o diretor parece ter mais dificuldade em se livrar das lentes inglesas ao analisar um momento histórico mais recente e onde a rivalidade com o Estado francês deixou marcas por todo mundo.

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Se trata de uma obra que claramente se verga a uma visão estritamente europeia da história napoleônica: mal se menciona a Revolução do Haiti e como esta assustou a elite dos EUA e América Latina, assim como em momento algum a obra revela interesse pela visão dos africanos e árabes sobre o imperador.

O momento político é retratado, com os bastidores servindo de pano de fundo, mesmo quando a obra não é explícita, para quem conhece a História, é possível sentir e contextualizar:

– A tentativa de Napoleão em dividir o mundo com os Ingleses, em uma espécie de Tratado de Tordesilhas tardio, oferecendo aos britânicos que ficassem com o domínio dos mares e colônias, contanto que deixassem o espaço continental sob domínio francês. A proposta foi recusada (em rigor, nem respondida), o que levou ao famoso bloqueio continental de comércio, ou seja, a proibição de que as nações sob jugo francês abrissem seus portos aos ingleses, o que nos leva à fuga da família real portuguesa ao Brasil e à elevação do status de nosso país para “capital” do Reino ultramarino.

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– Também é possível sentir no ar a visão eurocentrista no Congresso de Viena, onde líderes do velho continente estabeleciam fronteiras para si e para as colônias sem as levar em consideração. Mas aqui novamente indago: em 3 horas de filme, não caberia expor um pouco do prisma dos povos subjugados?

– O paralelo com Hitler e a fatídica (e ruinosa) decisão de invadir a Rússia (mais de cem anos após Napoleão) é palpável: os russos esvaziam e incendeiam as cidades invadidas e usando a tática de terra arrasada, conferem aos invasores franceses uma das maiores perdas em guerras de todos os tempos: dos 600.000 homens que marcharam para invadir Moscou, somente 40.000 sobreviveram.

– O paralelo com Hitler também existe na batalha de Waterloo, quando para fazer frente ao bem treinado exército napoleônico, foi necessário se recorrer a uma coalizão enorme (com ingleses, austríacos, russos e prussianos).

Enfim, é um filme nota 08 e que a despeito dos defeitos, me parece acima das produções recentes.

*Alexandre Gossn é investigador colaborador do grupo de pesquisas Europeísmo, Atlanticidade e Mundialização, pesquisador na Universidade de Coimbra, Doutorando em Estudos Contemporâneos pelo Instituto de Investigação Interdisciplinar da UC, Mestre em Direito, Advogado e escritor.

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