Cultura se tornou um entretenimento que não transforma, apenas gera prazer

A Mona Lisa de Leonardo pede uma restauração, o problema do Louvre é que a restauração oferecerá, previsivelmente, uma nova visão de La Gioconda, e essa imagem obrigará a substituição de todo o merchandising que circula pelo mundo em acirrada competição com Che Guevara como ícone popular

Cultura se tornou um entretenimento que não transforma, apenas gera prazer
Quadro Mona Lisa (Crédito: Pascal Le Segretain/ Getty Images)

A cultura ainda transforma e trás questionamentos a quem vê, ou apenas causa prazer? O Museu do Louvre, uma instituição que à primeira vista se infere ser alheia aos negócios da arte mais especulativa, atravessa um dilema. A Mona Lisa de Leonardo pede uma restauração, já que aquela feita em Madrid, no Museu do Prado, de uma Gioconda espanhola, obra pintada por um dos dois discípulos prediletos de Leonardo, Francesco Melsi ou Gian Giacomo Caprotti, conhecido como Salai, deixou a tela tão limpa que revelou uma obra nova, quase desconhecida. O problema do Louvre é que a restauração oferecerá, previsivelmente, uma nova visão de La Gioconda, e essa imagem obrigará a substituição de todo o merchandising que circula pelo mundo em acirrada competição com Che Guevara como ícone popular.

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Vincent Delieuvin, curador de pintura italiana no Louvre, afirma que a pintura de Da Vinci está cinza, sem cor e que originalmente não era assim. Mas ele também reconhece que existem duas lógicas opostas neste momento. A dele, que defende a restauração, e a de quem considera as perdas econômicas que ela geraria.

Em 1959, os proprietários do restaurante Four Seasons em Manhattan contrataram Mark Rothko para criar uma série de pinturas para decorar o local. Rothko, animado com um espaço muito espaçoso localizado no Edifício Seagram, de Mies van der Rohe, aceitou. Pintou peças de grande formato com o intuito de converter o espaço público em seu, acreditando que a arte conquistaria o apetite sem se preocupar em competir com a nouvelle cuisine. A coleção nunca chegou às paredes do Four Seasons, pois Rothko se recusou no último minuto a vendê-las – alguém que paga tanto dinheiro por uma refeição nunca vai olhar para uma pintura minha, disse ele.

Hoje, a série não está em nenhum restaurante; habita uma grande sala em um museu, o Tate Modern, em Londres. Como estamos nos antípodas dessa visão de mundo, em plena pós-economia, as pinturas saem dos museus para ir a leilão e, em seu lugar, em outro deslocamento, numa espécie de gentrificação, neste caso gastronômica, chega à comida.

Em 2007, a mostra de arte contemporânea Documenta XII, em Kassel, designou o restaurante catalão El Bulli como pavilhão G e por cem dias uma mesa foi reservada para dois participantes escolhidos aleatoriamente que poderiam “contemplar, cheirar, saborear e experimentar a arte de Ferran Adrià, como explicou à época Roger M. Buergel, diretor da Documenta XII. E Adrià esclareceu: “O que conta na minha cozinha não é o prato, é a experiência de ir ao meu restaurante. É preciso conseguir uma reserva, esperar a chegada do dia, depois pegar o avião, o carro, para chegar a uma pequena baía perdida e comer trinta pratos”. Mas aqueles desafortunados que não passaram por Kassel para tentar a sorte nem tiveram a oportunidade de ir por conta própria ao restaurante de Adrià no Palau Robert, com o patrocínio da Generalitat de Catalunya, outro âmbito da cultura, que abriu suas portas para a Fundação El Bulli. Não era para sentar à mesa e provar suas criações, é claro. Nesta exposição o espectador assistia, entre outras ofertas, à projeção holográfica de um menu do restaurante sobre uma mesa. Se não for possível pagar uma quantia considerável para comer, pode-se pagar o preço de um ingresso para ver. Não é o mesmo, mas para o mercado é o mesmo.

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Assim como o musical enche salas de teatro antes vazias – nestes dias de “novo normal” as salas europeias voltam a abrir as portas – o cinema projeta produtos em três dimensões e estreia boa parte dos filmes em plataformas de conteúdo, os museus são antes lojas de merchandising do que salas de exposição, e as salas de exposição podem abrigar pratos de comida virtual, a cultura tornou-se um entretenimento que não transforma nem questiona, apenas gera certo prazer em um espaço de tempo limitado, sem indagar, sem incomodar, sem provocar desconforto ou iluminação, e tampouco o espanto diante da beleza. Só para matar o tempo.

*Por Miguel Roig – escritor e jornalista.

*Este texto não reflete, necessariamente, a opinião da Perfil Brasil.

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*Texto publicado originalmente no site Perfil Argentina.

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