Ayaan Hirsi Ali: “A China tem o Afeganistão servido de bandeja”

Somali de nascimento, ex-parlamentar nos Países Baixos, grande parte de seu trabalho intelectual e literário se concentrou em denunciar o tratamento dado às mulheres pelo extremismo islâmico. Desse ponto de vista, ela diz que a retirada das tropas americanas de Cabul e a volta ao poder do Talibã são mais do que um erro. Ela afirma que está ocorrendo uma mudança geopolítica na qual Joe Biden abandona os seus aliados europeu

Ayaan Hirsi Ali “A China tem o Afeganistão servido de bandeja
Ativista Ayaan Hirsi Ali (Crédito: Mark Wilson/Getty Images)

Ayaan Hirsi Ali, em 14 de agosto, você tuitou o seguinte: “Como podemos resumir a política do governo Biden no Afeganistão? Estúpida, irresponsável e perigosa”. Por que o presidente dos Estados Unidos não previu as consequências das suas decisões?

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Eu acho que ainda é assim. Fica demonstrado na entrega de bebês por cima do arame farpado. Mulheres e crianças são pisoteadas, pessoas que trabalharam para o governo estadunidense no Afeganistão, abandonadas; cidadãos estadunidenses sem poder sair do Afeganistão. A questão não é se os Estados Unidos deveriam ter se retirado do Afeganistão. A verdadeira questão é: por que agora? A forma como a retirada é feita é estúpida, irresponsável e extremamente perigosa.

Aparece em seu site um artigo titulado “Why the West is Best”, publicado na “Spectator World” em junho deste ano. Nele você diz que “a civilização ocidental pode não ser perfeita, mas não vimos nada parecido em nenhum outro lugar da história humana”. Em entrevista desta mesma série, o cientista político espanhol Josep Colomer disse sobre a democracia: “É o melhor dos sistemas, embora os governantes façam o tempo todo todo o possível para estragá-lo”. O que deve ser feito em torno do Islã para que isso não aconteça?

A civilização ocidental deve se orgulhar do desenvolvimento de instituições que protegem a liberdade e os direitos dos indivíduos, que geram prosperidade. Também do Estado de Direito, da propriedade privada e dos direitos iguais entre homens, mulheres e pessoas de diferentes etnias, religiões e raças. Outras civilizações aspiram a isso, mas não o fizeram. Não é o resultado da civilização chinesa, nem da civilização islâmica, nem de nenhuma outra. A civilização ocidental fez muitas coisas erradas. Mas, diante das alternativas, alguém gostaria de conviver com a ideologia do governo da China ou do Irã ou da Arábia Saudita ou de outro lugar? Sim, o Ocidente é o melhor. Sem camuflar o que o Ocidente fez de errado, ainda acho que é muito importante contar a história completa. E essa história indica que não temos nada melhor do que a civilização ocidental.

A última capa da revista “Charlie Hebdo” traz o assunto do Afeganistão juntamente com uma questão que tem ressonâncias na Argentina. “O Talibã é pior do que pensamos”, lê-se em francês acima da imagem desenhada, na qual você pode ver três mulheres vestindo burcas azuis, todas com o nome e número 30 de Lionel Messi, sugerindo a ligação do Talibã com as potências do golfo. O poder que subjuga as mulheres afegãs também é econômico?

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O resultado dessa subjugação é que afeta as mulheres que são subjugadas. Elas vivem na miséria, mas isso também afeta sua sociedade. As sociedades onde as mulheres são oprimidas são pobres. Há falta de conhecimento e de direitos humanos. A opressão das mulheres vai além das mulheres. Faz toda a sociedade afundar. No Afeganistão, se quisessem libertar as suas próprias mulheres, permitiriam que elas continuassem a ter a educação que os americanos estabeleceram, e a ampliariam, permitiriam que elas trabalhassem e escolhessem os seus maridos e parceiros. Isso tornaria a vida de cada mulher mais satisfatória. Seria uma melhoria para toda a sociedade afegã. A evidência empírica é que as sociedades que libertaram as mulheres são estáveis, pacíficas e economicamente prósperas, ao contrário das que não o fizeram.

Donald Trump, entrevistado pela Fox News, declarou: “Esta é uma época terrível para o nosso país. Não acho que os Estados Unidos tenham sido tão humilhados em todos esses anos. Não sei como chamar isso, derrota militar ou derrota psicológica, mas nunca houve nada parecido com o que aconteceu aqui”. O Afeganistão pode se comparar ao Vietnã e à Coréia?

Talvez seja melhor comparar com a tomada de reféns pelo Irã em 1979. Vemos uma teocracia islâmica que se aproxima e retém os americanos. É uma situação potencialmente factível hoje. Donald Trump está certo neste caso. Os Estados Unidos estão humilhados no cenário mundial, algo que era evitável. Não havia necessidade de que o governo Biden saísse dessa forma. E ninguém entende quando vê isso. Mesmo aqueles que concordam com as suas outras políticas se perguntam por que isso foi feito dessa maneira.

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Os republicanos e os setores mais intimamente ligados a Donald Trump entendem a situação afegã melhor do que os liberais americanos?

Quando Donald Trump foi eleito, a nossa imprensa colocou em marcha freios e contrapesos. A mídia esperava para examinar cada pessoa que ingressara no governo. Eles não fizeram isso com Biden. Há pessoas como Jake Sullivan, o conselheiro de segurança nacional, que não foram devidamente investigadas. Existem pessoas nessas posições que estão além de suas capacidades. Existe incompetência e inépcia. Não é que os republicanos entendam o Afeganistão melhor do que os democratas. O que aconteceu é que os funcionários atuais não enfrentaram o mesmo escrutínio que Trump. No mandato de Trump, aqueles que discordavam ameaçavam renunciar, o que o dissuadiu de algumas atitudes. Ainda não vimos isso na gestão atual. As pessoas do Pentágono, do Departamento de Estado, dizem: “Não tínhamos ideia, nós dissemos o contrário”. Eles deveriam ter renunciado.

Em “Unher”, em julho, você publicou o artigo “America’s Spiteful Foreign Policy”. Nele, você diz: “Consideremos a atitude do governo dos EUA em relação ao Iraque e ao Afeganistão nos vinte anos que passaram desde o 11 de setembro. O governo investiu muito em termos de mortos e feridos, moral e dinheiro em suas campanhas no Oriente Médio. Ao mesmo tempo, paradoxalmente, aprendeu muito. Mais foi alcançado do que aparenta. Mas assim que os brotos verdes começaram a surgir, a América se rendeu”. Quais são as causas desse paradoxo?

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É muito louco. Vivemos em uma época em que a única superpotência e líder da civilização ocidental remanescente não apenas tem uma capacidade de atenção muito curta, mas sua política externa é conduzida em modo de campanha. É preciso olhar a longo prazo. Deve haver algo que possa ser chamado de bipartidário. São questões que deveriam ser deixadas de fora da campanha eleitoral. Cada presidente diz que vai cancelar o que o anterior fez. Isso torna extremamente difícil para os Estados Unidos serem um parceiro e aliado confiável. Os europeus e os países árabes pensam que investiram muito dinheiro e sangue. Treinamos alguns desses líderes árabes nos Estados Unidos e na Europa e agora os estamos abandonando.

A reação dos governos europeus aos acontecimentos no Afeganistão também foi “estúpida, irresponsável e perigosa”?

Joe Biden disse em sua campanha que seria um presidente diferente. “Vou reparar essas relações com os nossos aliados que Trump destruiu”. Mas então ele fez essa maluquice. O Reino Unido responsabilizou Biden pela queda de Cabul. Não é exatamente consertar as relações com nossos aliados, mas continuar a destruí-las. Ele destruiu esses relacionamentos mais do que Trump em quatro anos.

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“A civilização ocidental fez muitas coisas erradas. Mas, diante das alternativas, alguém gostaria de conviver com a ideologia do governo da China ou do Irã ou da Arábia Saudita ou de outro lugar? Sim, o Ocidente é o melhor. Sem camuflar o que o Ocidente fez de errado, ainda acho que é muito importante contar a história completa”

Você disse que “Pequim já está aproveitando o vácuo de poder no Afeganistão”. O Talibã quebrará o equilíbrio geopolítico na região?

Os talibãs são mais fortes agora do que em 1996 e 2001. Eles têm todo o dinheiro e armas que os americanos deixaram para trás. O Afeganistão está servido em uma bandeja de prata. Eles voltaram. No início, eles vão dizer que vêm em paz. Mas não é assim. Eles farão cumprir a sharia, a lei islâmica, da maneira mais dura possível. Veremos novamente as decapitações, todos aqueles castigos horríveis, as amputações, as chicotadas as mulheres, os apedrejamentos. Já acontece. Está em marcha. Já nos obrigam a casar assim que saímos da escola. É horrível. É isso que o Talibã é. Nem o escondem. É desconcertante. Não entendo por que nunca nos livramos do Talibã. Sabíamos do que eles seriam capazes se voltassem ao poder. É exatamente o que eles fazem e farão.

Você também escreveu que “os talibãs ‘modernizados’ fizeram um treinamento midiático, mas não devemos no deixar enganar”. O que você recomendaria às mulheres afegãs?

Elas contam com a minha sincera compaixão. As que puderem sair devem fazê-lo, mesmo nas piores condições. Lhes digo que tentem sobreviver o melhor que puderem e que as meninas que tiveram a sorte de ir à escola mantenham acesa a vela do conhecimento. Devemos continuar contrabandeando livros e informações. É uma situação trágica e dolorosa.

Você escreveu sobre o islamismo como regime político: “O regime iraniano o implementou desde 1979. O ISIS o implementou. Boko Haram está tentando implementá-lo em partes da Nigéria. O Afeganistão logo poderá ver seu retorno, embora em algumas áreas nunca tenha realmente desaparecido. Em nenhum destes casos os resultados beneficiaram o desenvolvimento humano, especialmente das mulheres e das minorias religiosas e sexuais”. Em nenhum país muçulmano houve melhora nas condições de vida das mulheres?

Se a lei islâmica for aplicada, o resultado é muito claro. Você vê a subjugação das mulheres, a eliminação do conhecimento. Você vê a diminuição dos seres humanos na sociedade, além das crueldades de que acabamos de falar. Não é que os muçulmanos não queiram liberdade, conhecimento e igualdade. Querem, sim. Muitos muçulmanos, milhões de muçulmanos, votam com os pés quando tentam entrar nos países ocidentais em busca de liberdade, igualdade, conhecimento e estabilidade. Nos países muçulmanos, existem alguns líderes determinados a superar as barreiras culturais e religiosas e modernizar suas sociedades. Mas nós simplesmente os abandonamos.

As autoridades iranianas informam que 70% de todos os estudantes universitários do país são mulheres. E que é muito comum as mulheres exercerem funções como taxistas. É assim? Não há possibilidade de desenvolvimento das mulheres em uma sociedade teísta?

A população iraniana está muito ansiosa para se modernizar. Para educar as suas mulheres. Algumas das mulheres que conheço que mais amam a educação e a liberdade são iranianas. É o regime iraniano que está em seu caminho. Impõe a elas o Islã radical. Mas elas não querem isso.

Sobre a China, você escreveu que “as noções de direitos humanos individuais são alheias ao regime chinês. Os idiotas úteis de sempre voltam de suas viagens a Xangai e Pequim proclamando que ‘viram o futuro, e ele funciona’”. Como você vê o futuro desse país?

Refiro-me aos ocidentais que vão lá e veem aquelas torres reluzentes, o aeroporto e a tecnologia, e ficam maravilhados. Alguns dos que comentam são cínicos. Eles têm interesses. Mas isso não é o futuro, porque é uma ideologia que oprime seu povo, retira as suas liberdades. É um governo que espiona os cidadãos e os pune quando se desviam da linha do Partido Comunista. É o futuro do povo chinês, mas não o considero um futuro desejável.

Mas a situação das mulheres chinesas é diferente das do Irã ou do Afeganistão?

Sim, absolutamente. Cada país é diferente. As mulheres chinesas têm mais liberdade do que as do Afeganistão. E quando você enfrenta o governo chinês, você é punido. E especialmente as mulheres. Vale ver o que eles fazem com os uigures. Homens e mulheres, crianças e idosos são punidos pelo governo chinês. Eles violam os direitos humanos. As mulheres esterilizadas à força. Elas são sistematicamente estupradas e submetidas a coisas horrendas. Se o governo chinês quer ser mau com as mulheres, pode. E é. Mas a mulher chinesa média que mora em Pequim e Xangai pode pelo menos mandar as filhas para a escola. Pelo que eu sei, as meninas costumavam ser mortas quando tinham a política do filho único. Muitos pais optaram por ter apenas um filho. Existe misoginia e crueldade em todas as sociedades.

Em seu último livro, “Prey”, você escreveu: “As mulheres ocidentais tem sido tão ensimesmadas que tem ignorado o que acontece com outras mulheres em sociedades onde elas são vistas apenas como objetos sexuais, mães e cuidadoras”. Quem melhor representa as ideias do feminismo em nível global?

Nem todas as mulheres ocidentais, mas algumas, especialmente entre a elite, dizem que a vida de uma mulher na América é tão ruim quanto no Afeganistão. Eles não têm ideia do que dizem. Dizem que não há espaços seguros nas universidades de elite. É surpreendente. Elas vivem em liberdade, em prosperidade econômica, têm a proteção da lei, e a sua raiva faz que elas se confundam sobre a opressão. Existe um feminismo na sociedade ocidental confundido sobre o seu quadro moral e onde estamos. Eu sugeriria que elas tentassem viver em países onde as mulheres são realmente oprimidas. Veremos o que dizem depois dessa experiência.

Como você analisa a expressão “libertação da mulher”?

Eu vejo isso como igualdade perante a lei. Que sejamos todos igualmente protegidos, que haja oportunidades iguais para meninos e meninas. Que possamos ter igual acesso à educação e ao respeito. Os homens são fisicamente mais fortes. Portanto, são fundamentais o respeito pela integridade física e pela igualdade de salários, e o acesso aos postos de trabalho e ao mercado laboral. É fundamental a igualdade de oportunidades. Quando alcançarmos essas coisas, como fizemos em muitas sociedades ocidentais, comemoremos o que conseguimos e continuemos a luta pelas mulheres do resto do mundo a quem esses direitos básicos são negados. Quando ouço que os Estados Unidos são um país opressor, me pergunto como seria uma sociedade ideal para elas.

A socióloga Eva Illouz fala do conceito de capital sexual para explicar os laços eróticos e amorosos nesta era do capitalismo. Existe um “capital sexual” que pode ser pensado como uma categoria socioeconômica? Como é a ligação entre categorias econômicas e categorias sociais?

Você está tentando dizer que pode-se vender sexo e fazer parte assim de algum tipo de economia?

Eva Illouz usa a categoria de capital sexual como o sociólogo Pierre Bordieu explica o capital cultural ou diferentes tipos de capital.

Se o conceito se referir à venda de sexo, eu diria que a maioria das mulheres que estão no comércio do sexo não o faz voluntariamente. A maioria é forçada ou obrigada a vender seus corpos. Não considero isso um capital sexual. Mas não li o seu livro e, portanto, não posso comentar a sua opinião. Ainda assim, o tráfico de pessoas e o comércio sexual constituem uma forma moderna de escravidão. Não é por escolha. Estamos falando de crianças e pessoas cativas. Se tentassem parar, enfrentariam punições cruéis, até a morte. Isso não pode ser chamado de capital sexual, mas escravidão moderna.

Você escreveu: “Fora do Ocidente, as mulheres são assassinadas, estupradas, escravizadas, espancadas, confinadas e degradadas. Os fetos femininos são abortados e as meninas, abandonadas. As meninas não recebem educação ou têm seus órgãos genitais cortados e costurados. As meninas e as jovens são obrigadas a se casar com homens que mal conhecem”. Você comparou a gravidade desta situação com o que a COVID-19 produz. Quais são os pontos de contato entre as duas situações?

Com a Covid-19, nos disseram que devíamos nos isolar. Todos concordamos com isso do ponto de vista médico. Mas muitos foram contra a quarentena, argumentando que ela comprometia as nossas liberdades. O governo disse que os efeitos da pandemia tornariam essas liberdades relativas. Mas quando se trata de proteger os direitos das meninas e mulheres, temos muitos imigrantes na Europa que violam os direitos e liberdades das mulheres. Quando, em resposta a isso, é dito que algo deve ser feito em relação à imigração, responde-se que isso vai contra os nossos valores e liberdades na Europa. Quando se trata de proteger os direitos de meninas e mulheres, eles encolhem os ombros. Precisamos de um novo movimento de mulheres para enfrentar as ameaças que meninas e mulheres sofrem hoje na Europa, na América, mas especialmente no mundo em desenvolvimento.

Também em “Prey” você diz que “o mítico ‘arco de história’ que os progressistas presumem pende para o progresso humano é melhor descrito como um pêndulo, pelo menos no que diz respeito aos direitos das mulheres. Tem oscilado para frente e para trás, ampliando e anulando as liberdades das mulheres, dependendo da ideologia prevalecente em cada momento”. Qual seria a diferença entre progressismo e liberalismo? Os progressistas não conseguem entender o problema das mulheres?

Liberalismo é a ideia de que todos os indivíduos nascem livres e que precisamos de leis e instituições para proteger essas liberdades. Isso se estende não apenas aos homens, mas também às mulheres; a todos os indivíduos. O que hoje é chamado de progressismo é regressivo. Em primeiro lugar, eles não querem falar sobre indivíduos. Eles só falam sobre grupos. Os direitos das mulheres são usados como uma ferramenta para chegar ao poder. Na agenda progressista, as mulheres são completamente apagadas. O gênero é fluido. Não se fala mais em “amamentar”, mas em “dar o peito”. Mulheres mães são chamadas de “pessoas que dão à luz” ou “pessoas parentes”. Isso é proteger os direitos das mulheres? Entrar na linguagem “woke” é encontrar tentativas de apagar as mulheres como um todo. Tivemos o conflito com J.K. Rowling, a autora de Harry Potter. Ela disse: “Nós nos chamamos mulheres, não pessoas que menstruam”. Tentaram cancelá-la. Não puderam. Porque ela é uma mulher muito forte e independente.

Alguns intelectuais entrevistados nesta mesma série discutiram e criticaram a suposta “superioridade moral da esquerda”. O pensamento de esquerda venceu a disputa ética no Ocidente?

Há dois tipos de esquerda. A liberal moderada, na qual o liberalismo trabalhista ainda se aplica. Essa esquerda moderada gostaria de ver o governo mais envolvido e compassivo com as consequências negativas do capitalismo selvagem. As pessoas de centro-esquerda, moderadas, são muito boas. Você pode concordar ou não, mas a sua ideologia é liberal. Depois, temos a extrema esquerda. São as pessoas que hoje chamamos de “woke”, que se dizem progressistas. Estão loucos, são extremistas e radicais. Não entendo eles ou a sua ideologia.

Como você analisa o fenômeno dos populismos de direita na Europa? Você consegue entender todo o fenômeno da emigração e imigração? Qual a sua opinião sobre esse fenômeno, o populismo de direita?

Como no caso anterior, também há pessoas de centro-direita. Se preocupam por questões muito importantes, como identidade nacional e fronteiras. Têm uma opinião sobre quanto Estado é necessário para que a sociedade funcione. Os dois grupos mais próximos do centro são pessoas muito boas. Mas a extrema direita são pessoas completamente malucas. Eles pensam em termos de raça, e vimos a destruição que causaram durante a Segunda Guerra Mundial, uma ideologia terrível. Devemos fazer com que “esquerda” e “direita” recuperem os seus significados.

Como você analisa a figura do Papa Francisco em relação aos imigrantes? A sua mensagem serve a uma sociedade europeia mais tolerante?

É difícil falar com o público católico sobre o Papa. Seria bom se o Papa respeitasse a separação entre Igreja e Estado. A imigração e as fronteiras, e as políticas sobre elas, competem ao governo. Quando se trata de ajudar compassivamente as comunidades de imigrantes na Europa Ocidental, a Igreja Católica pode fazer muito bem. Fez muitas coisas boas no passado. O Papa pode continuar a defender isso. Mas acho que ele não deveria falar sobre políticas de migração, que são assunto do governo.

Nos fundamentos da sua fundação, está escrito que: “A organização acredita na liberdade para todos. Isso significa liberdade contra a mutilação genital feminina, a violência e os casamentos forçados. E significa liberdade para desafiar a ideologia do islamismo – o extremismo que ameaça a civilização ocidental – com o pensamento racional do Iluminismo”. Islamismo e extremismo são sinônimos?

O islamismo é uma ideologia baseada no Islã. Reúne a aspiração dos islamistas de que a sociedade seja governada como uma teocracia. Se você mora no Ocidente, pode considera-lo extremo. Mas se você mora no Irã ou na Arábia Saudita, esse é o seu governo. Existem lugares no mundo onde a sharia é aplicada. Às vezes, apenas em questões familiares, em um sentido negativo para as mulheres. Outras vezes, refere-se a toda a sociedade. É algo obsoleto e extremo. O resultado é duro.

As crônicas sobre a sua vida contam que desde muito jovem você se revelou “contra a obrigação de rezar todas as noites pela morte de todos os judeus, contra o casamento forçado e contra a perspectiva de que a sua única função na vida deveria consistir em trazer filhos ao mundo”. Como foi o seu processo interno?

Tive a sorte de que me enviassem para a escola. De ler e imaginar um mundo fora daquele ao qual estava confinada. Tive a sorte de fugir. Encontrei uma oportunidade em 1992, quando estava na Alemanha. Eu deveria ir para o Canadá com o homem que o meu pai havia escolhido para mim. E em vez de ir para o Canadá, fui para a Holanda e solicitei asilo. Primeiro eu tive sorte e depois trabalhei para sair disso.

No seu livro autobiográfico “Minha vida, minha liberdade”, você narra uma situação com um professor que lhe disse: “Você não pode duvidar da palavra de Allah! A sua intenção é oculta. Satanás está falando por você, garota! Sente-se agora mesmo!” Você nunca sentiu que havia algo diabólico em quebrar a fé e os ensinamentos?

Conto essa história para ilustrar quão absoluta era a convicção do professor. Ele não tinha paciência para qualquer tipo de dúvida. Ele não tinha dúvidas e não tinha paciência comigo ou com qualquer um que questionasse a sua visão absolutista da religião. Tive a sorte de escapar e ir para um lugar onde a dúvida, o questionamento e o ceticismo são bem-vindos. Foi uma fortuna ir para a Universidade de Leiden. Passei cinco anos e eles me ensinaram a questionar tudo.

Uma crônica sobre o seu livro, publicada na página do Digital Freedom Club, assinada por Alicia Delibes, diz: “A fé cega que Maomé exigia logo colidiu com a racionalidade cartesiana de nossa heroína somali. Ayaan não podia aceitar a submissão da mulher que o Alcorão pregava, não podia aceitar que as esposas tivessem que obedecer a seus maridos porque assim o haviam decretado Allah e seu profeta. ‘As minhas dúvidas reduziram drasticamente as minhas chances de alcançar a bem-aventurança eterna, mas pensei que não poderia simplesmente descartá-las. Eu tinha que resolvê-las’”. Qual é a ligação entre a razão cartesiana e o liberalismo?

Eu sou uma humanista, acredito na razão humana. É o caminho para sair da ignorância, da depravação e da brutalidade. Sentar na frente de alguém que discorda e raciocinar é o caminho a seguir. Mas também vejo que outros dizem que “a razão não é tudo, porque o ser humano precisa de espiritualidade e beleza, coisas que não podem ser captadas em termos cartesianos”. Também é verdade. Quando se trata de resolver questões políticas, conflitos humanos, entender o mundo que nos rodeia, é necessário recorrer à razão. São tentativas de entender o mundo como ele é, antes de que possamos melhorá-lo.

Em “Minha vida, minha liberdade”, você escreveu: “Nasci na Somália. Fui criada na Somália, Arábia Saudita, Etiópia e Quênia. Vim para a Europa em 1992, quando tinha 22 anos, e fui eleita deputada do Parlamento holandês. Fiz um filme com Theo Van Gogh, e agora vivo com guarda-costas e circulo em carros blindados. Em abril de 2006, um tribunal dos Países Baixos determinou que eu abandonasse a minha casa segura, alugada pelo Estado. O juiz decidiu que meus vizinhos tinham o direito de alegar que se sentiam inseguros devido à minha presença no prédio, o que motivou a minha decisão de morar nos Estados Unidos”. A sociedade americana é mais aberta do que a europeia?

Ambas as sociedades são abertas. A Holanda era um país muito pequeno. Se a sua casa aparece nos jornais e na televisão todos os dias, torna-se muito difícil levar uma vida anônima. Então, quando vim para os Estados Unidos, eu tinha mais anonimato e mais liberdade de movimento. Mas olho para a cultura de cancelamento nos Estados Unidos, por exemplo. O “wokeismo” pode ter ido para a Europa ou estar presente nos Países Baixos, mas é realmente muito forte nos Estados Unidos. E restringe a liberdade. Há pessoas nas universidades e no governo que não podem dizer o que pensam porque têm medo de perder o emprego.

[Imagem: Ayaan Hirsi Ali, na entrevista com Jorge Fontevecchia.]

“Os talibãs são mais fortes agora do que em 1996 e 2001. Eles têm todo o dinheiro e armas que os americanos deixaram para trás. O Afeganistão está servido em uma bandeja de prata. Eles voltaram. No início, eles vão dizer que vêm em paz. Mas não é assim”

Em “Prey” você diz que “a segurança das mulheres diante de homens predadores é a questão em torno da qual todas as verdadeiras feministas devem se reunir e se unir. As mulheres podemos e devemos nos recusar a ser relegadas, como fomos no passado, como fui em minha própria vida, à condição de presas. Espero que se juntem a mim neste esforço”. Você é otimista sobre o futuro das mulheres no mundo?

Sou otimista se lutarmos para manter o que já foi conquistado em termos de igualdade e proteção das liberdades. A maioria das meninas e mulheres continua desprotegida. Elas ainda não têm instituições que protejam a sua liberdade. Devemos continuar lutando. Nesse momento, serei totalmente otimista. Vivemos em um pêndulo. Houve retrocessos no Afeganistão, Egito, Somália, países relativamente melhores na década de 1960 do que hoje. E por causa da imigração, os direitos das mulheres na Europa foram comprometidos. Os governos europeus estão fazendo muito pouco para proteger as mulheres. Existem motivos reais para o pessimismo, mas eu continuo otimista.

Minha última pergunta é sobre relacionamentos pessoais. Quando você e Niall Ferguson, também entrevistado nesta mesma série, se conheceram e iniciaram o relacionamento, muitos comentaram que essa relação entre dois intelectuais passou a ter um lugar nas revistas de fofoca. Como você descreveria a sua relação com Niall Ferguson, considerado uma das estrelas mundiais do que ele mesmo define como “liberalismo fundamentalista”?

Meu relacionamento com Niall Ferguson é perfeito. Estamos apaixonados. Temos uma família. Nós nos amamos e nos respeitamos, e é assim que deve ser.

Em 2010, um artigo do Daily Mail disse sobre Ferguson: “Apesar de todas as lições da história, Niall tem partido em busca de uma certa ideia liberal de liberdade individual e parece determinado a destruir a sua família”. A ideologia, as ideias, constituem a base da sua relação afetiva? Qual é o vincula, em linhas gerais, entre o afeto e a paixão, em geral, e as ideias?

Nunca prestamos atenção ao que diz a imprensa sensacionalista. Uma coisa é o que eles dizem e outra é a realidade. Temos muito amor e respeito um pelo outro e por toda a nossa família.

A minha pergunta é se ter ideias semelhantes é uma ferramenta para uma melhor harmonia.

Sim, uma visão de mundo e um conjunto de valores e ideias comuns são úteis. É ótimo que concordamos em quase tudo. Quando não, o resolvemos de forma respeitosa. Também concordamos em como resolver os conflitos. Ter uma visão comum do mundo é melhor para os relacionamentos.

“A noção de ‘patriarcado’ e os direitos das mulheres foram sequestrados pela esquerda radical”

O presidente argentino Alberto Fernández, representante de um partido definido como populista latino-americano, disse estar feliz porque em seu governo “estamos acabando com o patriarcado”. As políticas progressistas de gênero são compatíveis com populismos de esquerda?

A noção de “patriarcado” e os direitos das mulheres foram sequestrados pela esquerda radical. A questão dos direitos das mulheres é usada como ferramenta política para ganhar eleições ou chegar ao poder. Não se trata mais de mulheres. Aconteceu com o #MeToo nos Estados Unidos. Tudo começou com o gravíssimo problema de assédio às mulheres no trabalho. Mas agora se tornou uma ferramenta política para a esquerda.

Também em “Prey” você escreve que “evidências de má conduta sexual por parte de alguns imigrantes muçulmanos fornecem aos populistas e outros grupos de direita uma ferramenta poderosa para demonizar todos os imigrantes muçulmanos”. A sociedade europeia entende as pessoas que vêm de países árabes?

O encontro com pessoas de países árabes muçulmanos na Europa vem de longe. Muitas mulheres europeias vão de férias para o Norte da África e outros países muçulmanos e sabem como as mulheres são tratadas. Há muito conhecimento. Mas são assuntos que foram tornados tabu pelas elites culturais, políticas e jornalísticas. É difícil abordar a questão quando um grande número de homens jovens vem de países árabes muçulmanos, onde tratam as mulheres de maneira diferente e continuam a maltratá-las. Essa questão não deve ser ignorada. Esse é o assunto de “Prey”, meu último livro.

Você também escreveu que “as [mulheres] presas em áreas pobres são as menos favorecidas. E de alguma forma, na era do #MeToo, a sua situação desperta muito menos simpatia do que a de atrizes de Hollywood submetidas a assédio sexual por produtores predatórios”. Existe uma transversalidade da questão feminina ou a situação das mulheres pobres é diferente das da classe média ou alta?

Não há nenhum movimento feminista cuja missão seja proteger os direitos das mulheres da classe trabalhadora. As mulheres trabalhadoras são afetadas negativamente quando se trata das consequências indesejadas da imigração. É um fenômeno que ocorre nos Estados Unidos e principalmente na Europa.

“As mulheres somalis que não fugiram vivem sometidas a um implacável assédio sexual ou ao estupro”

Você escreveu: “No entanto, na perversa cultura americana atual, mais atenção é dada ao uso dos pronomes de gênero preferidos do que à situação das mulheres cujos direitos mais básicos – à educação, à autonomia pessoal, a estar presentes em um espaço público – foram eliminados ou estão seriamente ameaçados”. As chamadas políticas de gênero são uma espécie de “astúcia da razão” para evitar assumir posições políticas mais enérgicas?

Na sociedade americana, estamos nas garras de uma ideologia extravagante e inusitada. O que chamamos de “woke”. Tem muitos nomes, teoria crítica da raça, teoria crítica da justiça, interseccionalidade. Tem todo tipo de rótulos. Não é o marxismo material da União Soviética ou da China quando era comunista. Este é cultural. Existem dois sexos, masculino e feminino, mas essa ideologia afirma que existem mais. Afirma que somos sistematicamente racistas. Divide os seres humanos nas hierarquias dos opressores e dos oprimidos. Introduz um novo racismo. Somos chamados a cometer genocídio contra os brancos, especialmente os homens, por nenhuma outra razão além da cor da pele. É uma loucura. Mas estamos em suas garras. A única coisa que podemos fazer é lutar contra isso. É ensinado em nossas escolas e universidades. Agora está no Estado e no governo.

Você nasceu na Somália. Um relatório do Unicef afirma que “Na Somália, 98% das mulheres e meninas sofreram ablação, a taxa mais alta do mundo, porque a mutilação genital feminina continua a ser uma prática cultural ‘universal’ no país. No relatório ‘Análise da situação das crianças na Somália 2016’, apresentado em Mogadíscio, o Unicef alerta que este país conflituoso no Chifre da África é um dos menos seguros do mundo para as crianças, que só durante o ano passado sofreram mais de 2.000 violações graves”. Como você descreveria a situação das mulheres e crianças em seu país de nascimento?

É nefasta. Nasci na Somália em 1969. Os primeiros vinte anos da minha vida não foram todos vividos na Somália. Mas havia uma ditadura. Ainda assim, pelo menos a vida era melhor para as mulheres naquela época do que é hoje. Agora a Somália está dividida em três partes. A anarquia reina na área controlada pelo Al-Shabab e outros islamistas radicais. Os órgãos genitais das meninas são cortados. Elas são obrigadas a casar muito cedo, aos 11, 12, 13 anos. Muitas das mulheres somalis que não fugiram vivem sometidas a um implacável assédio sexual ou ao estupro. Ser mulher na Somália é miserável. É como ser uma mulher no Afeganistão sob o regime dos talibãs.

Você também disse: “Graças à civilização ocidental, recebi uma boa educação no Quênia, um legado do sistema escolar britânico” e defendeu as ideias do Iluminismo. Como é a história da entrada dessas ideias na África? Quais governos foram e são seus representantes?

Cresci e passei minha adolescência inteira em Nairóbi, Quênia. É uma ex-colônia da Grã-Bretanha. Os britânicos deixaram um sistema educacional longe de ser perfeito, mas no qual muitos de nós fomos educados. O Quênia é muito pobre, mas em muitos aspectos continua a funcionar. Quando falamos sobre a história do colonialismo, focamos apenas no que deu errado. Mas esquecemos que houve alguns bons resultados. Um exemplo é a Índia, um país do tamanho de um continente. A situação nos países africanos também deve ser analisada. As pessoas foram expostas à educação e à modernidade. E depois se tornaram independentes. Em alguns países, os governos locais não se saíram melhor do que as potências coloniais. São assuntos tabu para muitos. Você mal pode falar sobre eles.

Produção – Pablo Helman e Debora Waizbrot.

*Por Jorge Fontevecchia – Co-fundador da Editorial Perfil; CEO do Perfil Network.

*Este texto não reflete, necessariamente, a opinião da Perfil Brasil.

*Texto publicado originalmente no site Perfil Argentina.

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