*ANÁLISE

Carta à decepção

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Pessoas protestam batendo panelas na Argentina – Crédito: Pablo Cuarterolo

No último dia do ano enviei a amigos e parentes uma clássica mensagem que dizia: “Que este momento excêntrico, absurdo e distópico que temos que atravessar não impeça que a crise seja resolvida democraticamente. Feliz Ano Novo e o melhor 2024 possível.”

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Recebi várias respostas interessantes, mas quero destacar especialmente a do Diretor do Observatório da Dívida Social da Argentina, Agustín Salvia, intitulada: “Sairemos melhores desta crise”.

“Querido Jorge. Tenho acompanhado seus editoriais tanto no jornal quanto no rádio. Em cada ocasião, desperta em mim um impulso para compartilhar uma reação humilde com você. Concordo com os seus critérios, preferências e críticas relativamente aos múltiplos significados com que descreve a nossa atual fase política, excepto pelo menos num que me parece essencial para compreender os tempos atuais, e com o qual a sua epistemia hegeliana não poderia estar mais do que de acordo (no entanto, para contradizer);

a) Estamos numa crise econômica, social e política como resultado dos fracassos do passado; 

b) A reação destrutiva sobre aquele presente herdado tinha que ser feita por alguém, não havia como escapar desse desafio sem agravar os efeitos corrosivos das heranças; 

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c) O futuro ainda está por construir/escrever; este novo ciclo neoliberal apenas começou (na verdade o passado ainda não ficou para trás), o que abre mesmo a janela para a entrada, mais cedo ou mais tarde, de uma nova e eficaz progressismo político que supere a antítese; 

Neste jogo pêndulo, complexo e doloroso da nossa história passado-presente-futuro percebo mudanças distópicas, ao mesmo tempo fascinantes, vital e promissoras na construção de novas e melhores realidades sociais (algo impossível se continuássemos a reproduzir o passado).

Existem muitos exemplos na história, mas sem ir muito longe, sociedades derrotadas durante o pós-guerra ou com a queda do Muro na Europa, ou com a China pós-Mao, etc. No nosso caso, ao contrário dessas mudanças traumáticas, não vejo a nossa democracia em risco grave, embora veja a nossa atual liderança política, que ainda é promissora. Enfim, compartilho com vocês minha reflexão de final de ano, e minha previsão de que estou convencido de que de fato sairemos melhores desta crise… Grande abraço. Feliz crise 2024!!”

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Antes do segundo turno intitulei outra coluna “Teleologia Milei e me perguntei de forma hegeliana “para que serve Milei?” E questionei ainda: “Qual o papel que Milei passa a desempenhar na sociedade? A destruição das duas coligações que compõem o sistema político-partidário tem uma teleologia, uma finalidade, um objeto que serve uma finalidade?

“Aqueles que pensam que a vida é um caos, que as pessoas votam e estão mais erradas do que certas (o exemplo frequentemente referido de Hitler), não precisam de atribuir uma ordem aos acontecimentos.”

“Aqueles que atribuem relações de causas com efeitos (as quatro causas de Aristóteles: a material, a formal, a eficiente e a final) não precisam ser crentes ou metafísicos para atribuir origens e direções aos acontecimentos. Que a Argentina entrou num declínio permanente a partir de 1974 e acelerou com uma decadência a partir da crise de 2002, que a fissura e a polarização do Kirchnerismo-anti-Kirchnerismo é um sintoma dessa agitação social, e que em algum momento terá de ser resolvido, pacificamente graças a um integrador, ou violentamente devido ao efeito de um disruptor.”

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Os leitores de PERFIL conhecem minha inclinação pela primeira alternativa, mas continuei especulando sobre o ditado: “se o líder disruptivo viesse, isso seria interpretado como fechar a brecha e virar a página em 2002, e os mais antigos em 1975, a sociedade argentina ainda precisa de mais uma queda, mais um golpe para só então decolar e crescer de forma constante por décadas, o que seria apenas uma recuperação de tanto perdido?”

A Argentina não está fadada ao sucesso como disse Duhalde, mas à recuperação de seu meio século de fracasso, tanto com um líder integrador (que acabará chegando em algum momento) quanto com um disruptivo, a diferença – infelizmente – é o custo adicional que uma parte importante da sociedade terá que pagar em 2024 por ter um cirurgião mais insensível que reage exageradamente à terapia, muitas vezes indo contra a tendência global no momento errado, desperdiçando oportunidades de ler a geopolítica atual com categorias dos anos 90 – por exemplo, sair do Brics é um dano desnecessário.

Milei é provavelmente o quebra-gelo almirante Irízar, como Carlos Melconian o descreveu com humor, uma espécie de Remes Lenicov de 2002, e depois dele vem um equivalente a Roberto Lavagna de outro século.

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Outro amigo respondeu à minha mensagem de final de ano dizendo: “Não há nada de novo sob o sol, O novo virá dos sonhos que estão nascendo”.

Que assim seja.

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