Crianças de Israel e Gaza: os dois lados da moeda

A recente operação “Shomer Hahomot” (Guardião das Muralhas) causou centenas de mortes, muitas delas de menores, em Gaza, mas também em Israel. Por que as crianças são sempre separadas nas estatísticas?

Crianças de Israel e Gaza os dois lados da moeda
Uma menina palestina está em meio aos escombros de sua casa destruída em 24 de maio de 2021 em Beit Hanoun, Gaza (Crédito: Fatima Shbair/Getty Images)

Por diferentes razões, os constantes ataques do Hamas a Israel e a reação a eles capturaram a atenção do mundo muito mais do que outros conflitos internacionais mais cruéis e difíceis. Talvez porque, conforme relatado pelo jornalista israelense e candidato ao Prêmio Nobel da Paz Henrique Cymerman, há 450 jornalistas em apenas um pequeno bairro de Jerusalém, enquanto esse mesmo número cobre todo o continente africano. Mas por que as crianças são visualizadas no total? Porque a infância, para as sensibilidades ocidentais, é fundamental. Isso começou a acontecer durante o período do pós-guerra, quando a Cruz Vermelha andava resgatando “crianças-lobo” errantes nas florestas do leste e começou a cuidar deles.

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Preparação

Os pequeninos que viveram uma das duas guerras mundiais foram chamados de “crianças mobilizadas”.

O termo sinalizava como os jogos de guerra, as dramatizações e a propaganda do sistema escolar em todos os países beligerantes os preparavam para que quisessem se alistar ao atingir a maioridade. No entanto, a consciência geral era de que a criança não deveria participar da guerra.

Assim, a partir da segunda metade do século XX, cientes das consequências quase irreparáveis que a dor e a incerteza têm sobre a psique da criança e do futuro adulto, as organizações internacionais passaram a se ocupar deles: trabalharam em consonância com uma corrente interdisciplinar da sociologia e da psicologia que alerta sobre os efeitos negativos que viver situações de risco e catástrofe têm nas crianças.

O impacto de uma infância vivida em temor, sem a segurança que os adultos ou o Estado deveriam proporcionar, fica evidente no desenvolvimento de nações com adultos violentos e com sede de vingança. Por isso, é necessário identificar os jovens que vivem em situação de ameaça natural ou de risco.

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Israelenses

Em geral, as crianças israelenses encontram-se em situação de ameaça natural, definida como “perigo latente representado pela possível ocorrência de um fenômeno perigoso”. O jornalista Cymerman explica a ameaça natural ao relatar que quando viajam para o exterior a primeira coisa que seu filho pequeno pergunta ao concierge do hotel é: “Bom dia, senhor, onde ficam os abrigos?”. Em Israel, dependendo do setor em que se viva, conta-se com 15 a 20 segundos para correr até um abrigo quando soa a sirene, situação que tem gerado nas crianças o chamado “ongoing trauma” (trauma contínuo), de longo tratamento por especialistas.

Israel se esforça para reduzir a incerteza para crianças e adultos, estabelecendo protocolos de ação em situações de emergência, exigindo que cada casa tenha um abrigo, fornecendo auxílio financeiro, entre outros mecanismos. Sabe-se que um adulto equilibrado e estável é o modelo básico para que as crianças tenham menos cicatrizes. Podemos compreender essa situação de seguridade social à luz da sociologia clássica, quando Max Weber afirma que os Estados se constituem, desde que mantenham “o monopólio legítimo da coação física para a manutenção da ordem”.

Gazitas

Ao mesmo tempo, as crianças na Faixa de Gaza, uma área sitiada e com 75% de pobreza, vivenciam o terrorismo diariamente. Desde a criação do Hamas em 1987, as hostilidades causaram cerca de 30% das mortes de crianças. O Hamas interpreta que as crianças são um instrumento legítimo em sua luta contra o Estado de Israel. A doutrinação, conhecida como dawa (“chamado ao Islã”), começa desde a pré-escola, e os mais pequenos dramatizam vinganças contra Israel em diferentes cerimônias. A doutrinação continua nos meios de comunicação, monopolizados pelas elites do Hamas. Estudos do Centro General Meir Amit de Informações sobre Inteligência e Terrorismo (ITIC, pela sigla em inglês) demostraram que o Hamas recrutou menores entre 2008 e 2009, fornecendo dados falsificados na contagem de vítimas, violando a Convenção sobre os Direitos da Criança aprovada pela ONU.

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Se considerarmos o conceito de normalização de Michel Foucault, entendemos que muitas crianças naturalizaram a pobreza, a morte e a dor. Às vezes, ingressar em grupos armados é a única maneira de garantir sua sobrevivência. Estes são menores em situação de risco.

Soldados

Além disso, devemos considerar as etapas ideais para a educação de uma criança, segundo o sociólogo Talcott Parsons: a socialização primária, etapa em que são aprendidos valores e padrões de comportamento do lar familiar; a socialização secundária, desenvolvida no campo educacional, que os tornará bons alunos e cidadãos; e a socialização terciária, vinculada ao ensino de uma profissão ou ofício para inserção no mercado de trabalho. É compreensível, portanto, o desafio que as organizações internacionais devem enfrentar.

O Unicef denuncia a existência de cerca de 300.000 “crianças-soldados” no mundo, que define como “qualquer pessoa com menos de 18 anos que faça parte de qualquer tipo de força ou grupo armado”. Com as guerras dos últimos anos, tem aumentado as possibilidades de se tornarem soldados, caso sejam separados de suas famílias, deslocados de suas casas, vivam em zonas de combate ou tenham acesso limitado à educação.

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No entanto, podemos lembrar a resiliência humana que o sociólogo francês Pierre Bourdieu resgata: na sociedade e em seu funcionamento, a relação entre o individual e o coletivo pode mudar no decorrer do tempo. O sofrimento não determina comportamentos futuros, mas: “embora os agentes reproduzam em grande medida o que recebem durante os seus processos de socialização, podem modificar as condições dos grupos e dos espaços sociais onde vivem, por meio da transformação das regras que definem esses espaços sociais”.

O Ocidente, tão sensível às crianças, tem o desafio de se comprometer com iniciativas que alimentem e eduquem os jovens mais vulneráveis, para que não dediquem as suas mortes a líderes provisórios, mas sim dediquem as suas vidas àquilo que amam. Que não aconteça conosco como com Rudyard Kipling, que, quando decepcionado e ferido pela morte do seu filho na guerra, escreveu: “Se alguém perguntar por que morremos, diga-lhe que foi porque nossos pais mentiram para nós”.

*Por Clotilde Baravalle – Especialista em Ensino Superior e professora da Faculdade de Ciências Biomédicas da Universidad Austral.

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*Texto publicado originalmente no site Perfil Argentina.

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