Cuba e a “hemiplegia moral” da política

Hemiplegia moral é um termo cunhado pelo filósofo espanhol José Ortega y Gasset, a intenção é criticar as pessoas que se autodeterminam parte da direita ou da esquerda política, dizendo que são incapazes de pensar de uma forma ampla

Cuba e a “hemiplegia moral” da política
(Crédito: Donald Miralle/Getty Images)

Como se tivessem ousado negar publicamente a “santidade” da Igreja na Idade Média, em Cuba ousaram contradizer orações, dogmas, liturgias e a política do Partido Comunista.

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“Chega de mentiras… chega de doutrinas, não gritemos mais ‘pátria ou morte’, mas ‘pátria e vida’”, canta em ritmo de rap um oceano de jovens que não querem se ajoelhar diante das palavras de ordem sacrossantas da ideologia dominante. Eles consideram o ascetismo franciscano que padecem não como uma virtude revolucionária, mas como uma calamidade, provocada por uma economia improdutiva e uma burocracia incompetente.

Eles sabem que o bloqueio traz dificuldades, mas não ignoram que o regime o usa como álibi para esconder suas inaptidões e a futilidade do sistema. O caso não é idêntico, mas Taiwan é também uma ilha à qual a China, seu vizinho gigantesco, aplicou bloqueios de todos os tipos, inclusive privando-a do reconhecimento internacional como Estado independente, e nessas circunstâncias tornou-se uma potência econômica.

É lógico e justo denunciar a política inútil e danosa dos EUA contra o regime. Mas não é lógico nem justo espalhar o álibi da casta burocrática dominante culpando os Estados Unidos por todos os males.

Cuba desmascara hipocrisias e cumplicidades. Alberto Fernández evitou questionar a repressão, mas questionou o bloqueio, alguns meses depois de publicar sua preocupação sobre a repressão na Colômbia. Por sua vez, Jair Bolsonaro critica a repressão a quem pede liberdade, mas defendeu publicamente como legislador e como presidente o golpe de Castelo Branco contra Goulart e a ditadura que instituiu, chegando à aberração de pedir desculpas ao coronel Ustra, o maior torturador desse regime.

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Na Espanha, para a esquerdista Unidas Podemos “em Cuba não há ditadura”, enquanto a extrema direita VOX qualifica como ditadura o castrismo, mas se recusa a fazer o mesmo com o franquismo.

É simples: quem reprime brutalmente é repressor, quem tortura é torturador, quem censura é censor e quem governa sem pluralismo nem liberdades públicas e individuais é ditador. É óbvio para qualquer pessoa, exceto para os viciados em ideologismo. À esquerda e à direita, as ideologias podem levar ao que Ortega y Gasset chamou de “hemiplegia moral”.

Em Cuba havia um incipiente setor privado, formado por aqueles que deixaram seus cargos no Estado para abrir em suas residências mini-hotéis ou restaurantes, entre outros empreendimentos. Foram estrangulados pelo torniquete aplicado por Trump, fechando as flexibilizações implementadas por Obama para estimular o surgimento do empreendedorismo privado.

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Somou-se a isso a pandemia, desacelerando a única turbina econômica que funciona: o turismo. Sem entrada de dólares, agravou-se a escassez de alimentos e remédios. Mas antes de tudo isso, a economia já era fraca e obsoleta.

A Covid-19 expôs o paradoxo de um sistema que consegue criar vacinas, mas não produzi-las em escala industrial para vacinar sua população a tempo. Tudo isso atiçou a indignação contra um regime que só tem competência para reprimir e produzir propaganda. Mas o que é relevante é que as manifestações mostraram que Cuba está em um novo capítulo da sua história.

Quando as pessoas ousam desafiar os mecanismos que inibem os protestos desde o momento em que começam a engatinhar, cresce a sensação de que a rebelião popular triunfará sobre o autoritarismo. Não é pouca coisa desafiar a teia de denúncias que caracteriza o totalitarismo.

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Em Cuba, um desses dispositivos mal se disfarça: os CDRs (Comitê de Defesa da Revolução), que agrupam os vizinhos sob o comando daqueles que, na prática, agem como comissários políticos de cada quarteirão nos bairros de todas as cidades.

Os mecanismos de denúncia ativam instrumentos dissimulados de punição. Por isso, quando as pessoas superam o medo e saem às ruas cruzando aquele terreno minado, gera-se a sensação de que os protestos vão triunfar.

Foi o que aconteceu na Polônia quando Lech Walesa e o sindicato Solidariedade derrubaram o regime chefiado por Wojciech Jaruzelsky. É também o caso das manifestações que começaram em Leipzig e chegaram a Berlim Oriental, derrubando o muro e o totalitarismo da RDA.

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A ditadura de Ceausescu na Romênia foi derrubada pelos protestos que começaram em Timisoara. Mas o protesto nem sempre triunfa. Na China, os tanques que Li Peng enviou para a Praça Tiananmen o esmagaram.

Há outros antecedentes de vitórias da repressão contra os protestos sociais. Em 1956, o Partido Comunista Húngaro subjugou as manifestações em Budapeste com sangue e fogo, e, doze anos depois, os tanques soviéticos atropelaram a rebelião tchecoslovaca que defendia a abertura política e econômica conhecida como “Primavera de Praga”.

Como o regime castrista sempre fez, o presidente Miguel Díaz-Canel culpou o bloqueio norte-americano pelos cortes de eletricidade e pela falta de alimentos e remédios que desencadearam a explosão social. E mandou as “boinas negras”, força antimotim de elite que age com imensa agressividade, liderarem a repressão.

Mas a carta mais brutal que o presidente jogou foi seu apelo para que as bases do PCC saíssem às ruas para confrontar os manifestantes. Díaz-Canel promoveu o confronto entre civis. E nesse campo, com a internet bloqueada, o partido leva vantagem, porque pode organizar seus militantes enquanto a sociedade tem cortados os canais de interconexão horizontal.

A Internet e os telefones celulares possibilitaram protestos espontâneos como os que derrubaram Zine Al-Abidine Ben Ali na Tunísia, Hosni Mubarak no Egito e Abdelaziz Bouteflika na Argélia, mas tanto a ditadura saudita quanto a dos aiatolás iranianos conseguiram cortar esses serviços a tempo para interromper a comunicação horizontal que possibilita as manifestações “autoconvocadas”.

Uma diferença entre este protesto cubano e o de 1994 é que o chamado “maleconazo” se limitou a Havana, enquanto o atual se originou em San Antonio de los Baños e atingiu dezenas de cidades, inclusive a capital. Mas a principal diferença é que, nesta ocasião, as ruas falam de “ditadura” e repetem “pátria e vida”, desafiando o “pátria ou morte” que o regime prega há seis décadas.

Alguns ouvem e apreciam aquela réplica no estilo do rap, enquanto outros preferem se apegar à sua “hemiplegia moral”. No final das contas, ao diagnosticar essa deficiência ética e psicológica em um dos prólogos de A Rebelião das Massas, Ortega y Gasset explicou que “ser de esquerda, como ser de direita” pode ser “uma entre as infinitas maneiras que o homem pode escolher ser um idiota”.

*Por Claudio Fantini.

*Texto publicado originalmente no site Notícias, da PERFIL Argentina.

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