OPINIÃO - AMÉRICA LATINA

Democracias eram mesmo as de antigamente

*Por Federica Sánchez Staniak – Professora na Universidade Alberto Hurtado, Chile – Rede de Cientistas Políticos.

As democracias eram mesmo as de antes
Javier Milei, deputado e candidato à presidência da Argentina (Crédito: Flickr)

A democracia em nível global vive um momento de profunda crise, que se manifesta de diversas formas e atravessa gerações dos que nasceram e cresceram na América Latina após as últimas ditaduras, e dos que, por outro lado, nasceram no final dos anos noventa e início de dois mil. O próprio conceito mudou ao longo do tempo para incluir muito mais do que eleições, direitos políticos e liberdades civis. Hoje, a democracia é constantemente analisada por líderes que desafiam abertamente esse conceito original, alimentado por cidadãos insatisfeitos e descontentes, que sentem que a promessa democrática da transição não correspondeu às suas expectativas.

Publicidade

Este desfecho não é um capítulo à parte, pois a política regional vem dando sinais desta crise desde que Hugo Chávez venceu as eleições na Venezuela em 1998. A crise do sistema partidário venezuelano e a incapacidade dos partir dos tradicionais de canalizar as demandas de cidadania foi repetida no Peru, onde o recente afastamento de Castillo, depois de tentar fechar o Congresso, mostra que o custo da fragilidade institucional é uma crise permanente de governança. A frustração com os partidos fomentou o surgimento de candidaturas e lideranças disruptivas, com discursos questionavelmente democráticos como o de Bukele em El Salvador ou a presidência de Bolsonaro no Brasil. Na mesma linha, Milei se inscreve com uma campanha que se baseia na rejeição da política tradicional e uma mensagem que questiona sem cerimônia o desempenho da democracia na Argentina. No Chile, apesar de ter perdido o segundo turno das eleições de 2021, Kast se consolida na nova extrema direita buscando se diferenciar dos partidos habituais ao se recusar a assinar o último acordo para uma nova Constituição.

O enfraquecimento democrático observado na região está alinhado com uma tendência mundial de autocratização da política. A consolidação dos partidos de extrema-direita na Europa encontra em Itália, com a recente eleição de Meloni, mais um exemplo da força deste discurso anti-imigração profundamente conservador que mobiliza o sentimento nacionalista em países como a Hungria, a França ou a Espanha. A América Latina não é estranha às mesmas pressões migratórias, especialmente a diáspora venezuelana nos países do continente, que confronta as sociedades com uma nova era de multiculturalismo e testa os sistemas políticos e suas capacidades de canalizar esse novo fenômeno.

A política está polarizando, as eleições estão cada vez mais competitivas, as margens de vitória estão mais estreitas e as promessas de mudança cada vez mais ambiciosas. Os novos líderes, em sua maioria homens brancos de meia-idade com pouca experiência política, dizem que querem aprofundar a democracia, purgá-la de suas falhas, livrá-la da corrupção da política tradicional. O plano de ação apela aos eleitores cansados ​​e desiludidos com a rotina. Quando o familiar falha em entregar resultados, os cidadãos estão dispostos a confiar em novas alternativas com líderes fortes, capazes de desafiar a imobilidade democrática. Isso se faz sacrificando a democracia, baseada no enfraquecimento institucional, liderado por reformas constitucionais que garantem a continuidade no poder, questionando os resultados eleitorais ou as próprias instituições responsáveis ​​por garantir a integridade eleitoral.

A crise da democracia é evidenciada empiricamente nos índices internacionais que a avaliam anualmente, tanto da sociedade civil quanto de organizações internacionais e da academia. Em todas as medições e relatórios internacionais há um denominador comum: a qualidade democrática está em declínio, desafiada por líderes que buscam se garantir superpoderes com poucas revisões institucionais, e por autocratas que aproveitaram as limitações da pandemia para aprofundar o controle sobre seus cidadãos, restringindo as liberdades civis e desafiando os direitos humanos. A democracia vem perdendo terreno nas mãos de regimes híbridos e autocracias. Ou seja, há mais regimes democráticos que se perdem a cada ano do que democracias que se consolidam. Essa tendência mostra que a era de consolidação democrática pós-transição não só chegou ao fim, mas também está iniciando um processo de reversão, onde o mundo está orientado para um novo formato de regimes ainda difícil de definir. Não serão governos autoritários como os de antes, mas sem dúvida não se enquadram no conceito de democracia que conhecíamos até hoje.

Publicidade

*Este texto não reflete, necessariamente, a opinião da Perfil Brasil.

*Texto publicado originalmente no site Perfil Argentina.

Publicidade
Siga a gente no Google Notícias

Assine nossa newsletter

Cadastre-se para receber grátis o Menu Executivo Perfil Brasil, com todo conteúdo, análises e a cobertura mais completa.

Grátis em sua caixa de entrada. Pode cancelar quando quiser.