O novo leão de Panjshir que enfrenta o Talibã

Filho de um mítico senhor da guerra morto pela Al Qaeda em um ataque de 2001, ele encarna o Islã moderado e promete resistir ao avanço dos fundamentalistas em seu bastião no inacessível Vale do Panjshir, ao norte de Cabul

O novo leão de Panjshir que enfrenta o Talibã
Ahmad Massoud – filho de Ahmad Shah Massoud (Crédito: Reprodução/ Instagram)

Quando baixarem a poeira e as cinzas dessa nova tragédia afegã, talvez seja possível entender um pouco melhor os motivos da embaraçosa retirada dos EUA. Foi a pressão ideológica do ex-presidente Barack Obama sobre Joe Biden? Os negócios com o ópio, o lítio ou o gasoduto TAPI (Turquemenistão-Afeganistão-Paquistão-Índia)? Simples inaptidão estratégica para negociar com o Talibã?

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Até lá, enquanto as explosões ainda ecoam em torno do aeroporto de Cabul, os noticiários internacionais se enchem de comentaristas que fazem muitas outras perguntas urgentes. O que acontecerá com os direitos das mulheres? E com os demais grupos fundamentalistas estabelecidos no país?

Bastião

Em meio a todas essas dúvidas, uma certeza parece emergir: existe no Afeganistão um último bastião contra o avanço do Talibã: é a província de Panjshir, liderada pelo jovem Ahmad Massoud – filho de Ahmad Shah Massoud, um dos os principais senhores de guerra afegãos que enfrentaram os soviéticos –, comandante da Frente de Resistência Nacional (FRN).

De acordo com os registros mais confiáveis, Ahmad filho nasceu em julho de 1989, tem apenas 32 anos e uma barba muito bem cuidada. Quando aparece em público, as câmeras se apaixonam pelo seu look de guerrilheiro, com seu típico chapéu étnico, camisa branca e colete de pescador reciclado para carregar munições e explosivos, uma imagem que o coloca no nível estético de um Che Guevara do século XXI.

Ao contrário do revolucionário argentino, Massoud tem uma luxuosa educação ocidental, incluindo um ano na muito britânica Royal Military Academy, em Sandhurst, estudos teóricos militares no King’s College, na capital inglesa, e um mestrado em Política Internacional pela City University de Londres. Com toda essa bagagem, Massoud voltou ao Afeganistão em 2016, vários anos após o assassinato de seu pai, vítima de um atentado explosivo da Al Qaeda em 9 de setembro de 2001, dois dias antes dos ataques às Torres Gêmeas e ao Pentágono.

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A morte violenta de Massoud pai modificou os planos de Ahmad, que havia voltado ao país com ideias avançadas, como a introdução de um sistema de cantões, no estilo suíço, para evitar a concentração de poder em Cabul.

Os dois Ahmad, o atual chefe da FRN e o falecido Leão de Panjshir, que lutou ferozmente contra os soviéticos, entraram na coluna do que pode ser considerado o Islã “moderado”.

Alguns de seus principais conceitos estão descritos no site da Fundação Massoud, instituição que lembra a memória de Ahmad pai e cujo CEO é Ahmad filho. Ahmad Shah Massoud, diz a fundação, “sempre lutou” por “um Afeganistão independente, autossuficiente e forte, com um sistema político justo e democrático”. O velho líder “era respeitado e sempre insistiria na democracia e nas eleições inclusivas, em que tanto homens e quando mulheres poderiam participar”, acrescenta.

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A seção Missão e Visão do site da organização assegura que “os pensamentos e perspectivas do mártir Ahmad Shah Massoud sempre apoiaram uma vida pacífica em sua sociedade e para outros seres humanos”. Certa vez, ele “disse que queria um Estado islâmico para o Afeganistão”, no qual os habitantes de Panjshir “pudesse viver em paz com seu povo e com o mundo”.

Essas convicções atraíram para os Massoud alguns intelectuais europeus, com destaque para o pensador francês Bernard Henri-Lévy, que – nestes dias de turbulência no Afeganistão – cita constantemente os líderes da FRN em sua conta no Twitter.

Em efeito, o autor de “O Testamento de Deus”, publicou em Paris Match uma longa entrevista por telefone com Massoud, na qual o jovem líder afegão advertiu que “prefiro morrer a me render”. “‘Rendição’ é uma palavra que não está no meu vocabulário”, disse Massoud a Lévy das montanhas de Panjshir.

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Resistência

Embora tenha admitido que está disposto a negociar com o Talibã – que há semanas vem ameaçando uma ofensiva no vale onde os seguidores de Massoud tem a sua fortaleza –, o comandante da FRN garantiu que “nossa resistência está apenas começando”.

Estar à frente do único bastião geográfica e militar capaz de conter o Talibã fez de Massoud em um escolhido entre aqueles que se opõem à saída americana do Afeganistão.

Comentando sobre as explosões que mataram dezenas de pessoas ao redor do aeroporto de Cabul, incluindo 13 soldados americanos, o analista David Sears, ex-Navy Seal com duas passagens por Afeganistão, disse à Fox News que “ajudar Massoud com a resistência” é um dos poucos caminhos que restam ao Pentágono para “fazer a coisa certa”.

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Massoud e o FRN, acrescentou o ex-comando, poderiam ajudar os Estados Unidos a manter um pé no Afeganistão enquanto tentam resolver algumas das consequências desastrosas da decisão de Biden.

O filho do Leão de Panjshir é favorecido pela dura geografia das montanhas da província, localizada a noroeste de Cabul, perto da fronteira com o Paquistão e o Tadjiquistão, região que provou ser inexpugnável para os tanques soviéticos e onde agora se concentra uma força composta de remanescentes de unidades do exército regular afegão e milicianos locais.

Por enquanto, trata-se de um pequeno exército de cerca de 6 mil combatentes, embora “haja muitas outras pessoas de muitas outras províncias que buscam refúgio no Vale do Panjshir, que estão conosco e não querem aceitar” um regime talibã para o Afeganistão, disse Massoud.

Em uma coluna que publicou no Washington Post em 18 de agosto, Massoud escreveu que suas forças precisam de “mais armas, mais munições e mais suprimentos”, para aumentar o arsenal que eles vêm armazenado desde 2018, quando começaram as negociações entre os Estados Unidos e o Talibã.

Ali Nazari, porta-voz de Massoud, disse à emissora norte-americana Voice of the Americas que a FRN “está bastante confiante de que será capaz de manter a resistência até o inverno, quando os combates irão diminuir e o tempo inclemente interromperá qualquer ofensiva do Talibã”.

Especialistas militares citados pela emissora admitiram que, sem apoio externo, “é difícil estimar quanto tempo Massoud poderá manter o Talibã fora” de Panjshir. Especificamente, o reabastecimento será muito complicado, tendo em vista que a região não tem aeroporto e que, “em tese, os talibãs agora cercam o vale”.

Quando o inverno afegão passar, chegará então a hora de ver quanto a amizade com Lévy, os elogios na Fox News e o mestrado da City University ajudaram Massoud.

*Por Marcelo Raimon – Jornalista; trabalhou como correspondente da agência ANSA em Buenos Aires e Washington; se especializa em questões da realidade israelense.

*Este texto não reflete, necessariamente, a opinião da Perfil Brasil.

*Texto publicado originalmente no site Perfil Argentina.

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