Odores, tiros e bombardeios na Ucrânia

*Por Nelson Castro – o autor está na capital ucraniana, Kiev, cobrindo a guerra e compartilhando suas impressões em primeira pessoa

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Kiev, Ucrânia (Crédito: Chris McGrath/ Getty Images)

O horror da guerra cruzou meu caminho desde o momento em que cheguei à fronteira polaco-ucraniana. A experiência em um centro de refugiados é terrível. Vê-se que as pessoas descem dos ônibus com cara de triste, mas sem tempo para dar lugar à tristeza e à amargura. Todo mundo tenta proteger o pouco que carrega sem pensar no quanto ainda tem em casa; seus móveis, suas roupas, suas fotos, suas memórias, sua vida. O rosto de quem emigra reflete essa realidade. Meninos que quase não choram mais porque o fizeram com amargura ao se despedir de seus pais, que tiveram que ficar para lutar na frente de guerra. A expressão das crianças que correm com suas famílias para se abrigar é um cartão postal que jamais esquecerei.

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Os cheiros são muito fortes, há pessoas de diferentes nacionalidades que cozinham para os outros e para muitos esses aromas são a única experiência, fora das suas memórias, que lhes devolve uma sensação de normalidade. A solidariedade do povo está se movendo. A precariedade e o desamparo se tornam carne na fronteira. Há milhares de almas para o bem de Deus.

Já dentro da Ucrânia, as cidades se transformam em fortalezas. Confesso que, passados ​​alguns dias, parece algo fantasmagórico mas, para muitos, é quase normal. Alguns dos moradores optaram por não ir mais aos abrigos, o que representa um perigo abismal. Quem opta por se proteger também passa por uma situação de total incerteza. Primeiro, porque quando as sirenes soarem, eles devem parar imediatamente tudo o que estão fazendo e correr para a segurança. Em segundo lugar, porque uma vez dentro dos bunkers ninguém tem ideia do que está acontecendo na superfície. Os bombardeios podem se intensificar ou os ataques podem parar ou ocorrer a uma distância segura do local onde os refugiados permanecem. Só pode ser esperado. As casas que ficaram de pé estão em jogo. Um morador da cidade me disse: “Nós temos a nós mesmos. Estamos unidos ao desejo de salvar nossas vidas, mas há também a questão de saber qual será o destino de nosso patrimônio, o que construímos com o esforço de uma vida. Isso é muito injusto”, enfatizou com angústia.

Chegar a Kiev não foi fácil. Milhas e milhas de pessoas tentando sair. Viajamos em grupo com outros colegas e a sensação de ir contra o resto não deixa de nos acompanhar em momento algum. A viagem de trem foi uma aventura. Antes de sair, tivemos que calcular o horário de chegada porque, se chegássemos no horário do toque de recolher, teríamos que passar a noite na estação. Assim foi; depois de uma pequena pausa saímos do terminal central às 7 da manhã para entrar no centro de kyiv, a caminho do Hotel Nacional, que nos serviria de morada. Eu estava nesta cidade há três anos, quando vim para a cobertura de Chernobyl. A cidade fantástica que conheci com móveis e alternância urbana que mistura o antigo com o moderno não é mais a mesma.

“Vamos ganhar a guerra. Não vamos nos submeter ao regime de Vladimir Putin”

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A cena é impressionante. Ruas semidesérticas com defesas e abrigos que mais parecem o cenário de um filme do que a própria realidade. Os negócios das principais avenidas estão fechados, com exceção dos itens destinados à venda de alimentos. As barricadas sucedem-se, as pessoas vagueiam mas com uma única convicção: “Vamos ganhar a guerra. Não vamos nos submeter ao regime de Vladimir Putin”, exclamam corajosamente. Cada um deles. Seu pensamento é unânime. É algo que me choca, mas que augura uma solução difícil para uma saída do conflito com uma Rússia que parece ter um arsenal infinito para sustentar sua invasão. A Ucrânia sofre, a guerra é sentida. Odores, tiros e bombardeios. A guerra, infelizmente, está presente em cada passo que damos.

*Este texto não reflete, necessariamente, a opinião da Perfil Brasil.

*Texto publicado originalmente no site Perfil Argentina.

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