Ordem mundial provou ser inútil diante das mudanças climáticas

A fúria climática e a pandemia mostram que o sistema internacional não serve para salvar o “bem comum global”

Ordem mundial provou ser inútil diante das mudanças climáticas
Morador de rua sentado na neve em Nova York, Estados Unidos (Crédito: Drew Angerer/Getty Images)

Em Yakutsk, as pessoas não podem usar óculos com armação de metal porque o frio faz sua pele queimar, o inverno dura sete meses e as temperaturas passam de 70 graus abaixo de zero, mas as mudanças climáticas mexeram com o tempo. Esta cidade russa no leste da Sibéria é considerada a mais fria do mundo. É por isso que foi tão estranho para os seus habitantes sentir um calor infernal, enquanto ardiam as florestas que cercam a cidade. Essas coníferas da taiga siberiana estão sempre cobertas de neve. É por isso que a imagem de Yakutsk coberta pela fumaça de uma floresta em chamas foi um dos muitos cartões-postais inéditos que o mundo tem visto nesta época.

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Naqueles mesmos dias, a fúria das monções estava atingindo Bangladesh com uma força incomum e as suas chuvas devastavam cidades indianas da Baía de Bengala ao estado ocidental de Maharashtra, enquanto na China central outros sistemas climáticos sazonais também mostravam intensidades sem precedentes e transformavam as cidades em Atlântidas modernas.

Dias antes, cartões-postais tão catastróficos quanto estranhos chegaram da Europa. Ruas transformadas em rios poderosos e selvagens como aqueles que cortam as selvas tropicais; casas varridas pelas águas, pessoas nos telhados e carros empilhados como se fossem brinquedos.

O que é normal ver nos cantos do sul da Ásia atingidos regularmente pelas monções, ou nos países do Caribe assediados por furacões, agora é visto na Alemanha e na Bélgica. As estatísticas de mortalidade também parecem vir de outras latitudes; elas vêm de lugares onde o clima pode ser rigoroso, mas que nunca explode com a fúria vista recentemente.

Pouco antes, o Canadá sofreu com temperaturas saarianas. Com os termômetros marcando mais de 50°, houve quase duzentas mortes em cidades da Colúmbia Britânica. Não há ar condicionado nas casas que estão preparadas apenas para o frio extremo. Esses calores sufocantes sem precedentes também causaram mortes nos estados do noroeste dos Estados Unidos de Washington e Oregon, enquanto as florestas da Costa Oeste queimavam novamente, desde as fronteiras canadenses até a Califórnia.

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Os meteorologistas falam de uma “cúpula de calor”, que explicam como uma bolha de ar tórrido que fica estacionada em um ponto geográfico. O fato é que os habitantes de Vancouver, Lytton, Seattle e Portland, entre outras cidades canadenses e americanas, sofreram temperaturas usuais no Saara marroquino.

Na faixa central dos Estados Unidos estendem-se as planícies agrícolas atravessadas pelo corredor dos tornados. De Dakota do Norte ao Texas, passando pelo Colorado, Nebraska, Kansas, Oklahoma, Wyoming, Alabama, Iowa e Dakota do Sul, vastas planícies permitem que as massas de ar polares que descem do Ártico se misturem com o ar tropical que sobe do Golfo do México, formando os destrutivos funis com forma de redemoinho.

O aumento em quantidade e intensidade desses fenômenos não tem precedentes. Se fossem normais, não haveria tantas casas de madeira voando que nem castelos de cartas quando os atuais tornados passam. Se a destruição quebra recordes históricos, é porque estão atingindo magnitudes inéditas.

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Da mesma forma, se tantas casas na Renânia-Palatinado e na Renânia do Norte-Vestfália não foram construídas com materiais resistentes à água em grandes quantidades ou em locais adequados para não serem arrastadas pelo transbordamento de pequenos rios, é porque caiu uma quantidade de chuva nunca antes vista.

Os climatologistas explicam que, por quatro dias, o frio bloqueou na altitude as massas de ar com água abundante. Ninguém pode dizer com certeza absoluta que o fenômeno que deixou centenas de mortos na Europa Central foi causado pelas mudanças climáticas, mas todos os especialistas afirmam que o aquecimento global torna esses fenômenos atmosféricos extremos mais frequentes.

As pandemias também serão cada vez mais frequentes devido às transformações que as mudanças climáticas operam na biosfera. E se as tempestades extremas e a Covid-19 estão mostrando algo claramente, é que a ordem mundial não serve para lidar com eles.

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Poucos meses depois que o primeiro surto de coronavírus foi detectado em Wuhan, ficou claro que, em um mundo globalizado, a única maneira de retardar a propagação do vírus era realizando duas proezas: a proeza científica de produzir vacinas eficazes e seguras em tempo recorde, e a proeza política de organizar e implementar rapidamente uma vacinação global e simultânea.

A simultaneidade é crucial para vencer a corrida contra as mutações do vírus. As novas variantes estão avançando porque prejudicam a eficácia da imunização. Desde o início ficou claro o quão essencial um acordo entre superpotências e grandes laboratórios era necessário para produzir vacinas em escala global no maior número de países possível, a fim de alcançar a maior vacinação simultânea possível. No entanto, a grande maioria dos países ficou esperando que as vacinas cheguem por avião e a aos poucos. Até mesmo o sistema Covax de acesso equitativo às vacinas falhou.

A proeza científica foi alcançada, mas a política não

A inércia da ordem mundial impedia acordos entre potências e com a indústria farmacêutica. As principais lideranças sequer tentaram, apesar de saberem que o vírus deve ser combatido simultaneamente e em todo o planeta, ou não poderá ser contido antes que as mutações gerem variantes que escapem à imunidade das vacinas. Cada potência agiu separadamente, usando suas drogas como peças no tabuleiro geopolítico.

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As mudanças climáticas também devem ser enfrentadas por todos os países simultaneamente. É inútil alguns países reduzirem as suas emissões de gases de efeito estufa, se há outros que vão continuar a gerá-los.

Pela primeira vez na história, existe um bem comum global: o habitat indispensável para a vida humana. A única maneira de salvá-lo é aquela que não está sendo implementada. E não será implementada enquanto persista a atual ordem mundial, um sistema de Estados soberanos que dividem o mapa do mundo, ao mesmo tempo em que a vida no nosso planeta enfrenta ameaças que ignoram as fronteiras, tornando-as absurdas por inúteis e contraproducentes.

A atual ordem internacional tornou-se absurda porque é inútil e contraproducente no enfrentamento ao maior desafio já encarado pela espécie humana: salvar o bem comum global.

Com o Portão de Brandemburgo como pano de fundo, uma encenação artística mostrava pessoas em um andaime, em pé sobre blocos de gelo. As pessoas com a corda no pescoço representavam a espécie humana em pé no bem comum global. E a forca cumprirá a sua função mortal quando o gelo derreter.

*Por Claudio Fantini.

*Este texto não reflete, necessariamente, a opinião da Perfil Brasil.

*Texto publicado originalmente no site Notícias, da PERFIL Argentina.

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