O desafio das tecnologias digitais invasivas

É importante questionar sobre a legitimidade na obtenção de dados pessoais para objetivos humanitários, tendo em vista que não existe a possibilidade de escolha do indivíduo

O desafio das tecnologias digitais invasivas
(Crédito: Canva Fotos)

Nas primeiras décadas do século XXI, as tecnologias digitais mostraram sua face mais invasiva em vários setores da vida humana trazendo um desafio para as pessoas. A utilização de sistemas biométricos para identificação faz parte de uma nova determinação do Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR) como um dos recursos para o gerenciamento de serviços a migrantes refugiados. Na América Latina, uma iniciativa que envolve o uso de ferramentas tecnológicas é o “Regional Safe Spaces Network in the Americas”. Entretanto, se por um lado há o reconhecimento da eficiência de tecnologias digitais para responder rapidamente às questões sociais urgentes, por outro há o dilema ético sobre os riscos à privacidade de indivíduos em posição de vulnerabilidade.

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Dentre as tecnologias digitais para o propósito humanitário, em diversos setores como: serviços governamentais, inclusão financeira, saúde e proteção social, encontra-se o “blockchain”. Esse sistema permite um armazenamento distribuído por diversas bases de dados em nuvem, protegidas por várias camadas de chaves criptográficas. Ele possibilita também o compartilhamento de grande quantidade de dados, por meio de coleta biométrica, que se traduz como um registro das características biofisiológicas do ser-humano. A coleta de dados biométricos pode ser feita por identificação da íris, mapeamento facial, digitais, ácido desoxirribonucléico (DNA), voz e assinatura. Na Bolívia essas tecnologias se concentram nos sistemas de pagamento para acesso a alimentos. No caso do México, por sua vez, as tecnologias voltam-se para a produção de identidades eletrônicas.

Com a implantação e gestão do “blockchain” em acampamentos de refugiados, torna-se possível, por exemplo, adquirir alimentos do World Food Programme (WFP). O “blockchain” funciona como um cadastro eletrônico onde os dados pessoais são registrados e identificáveis apenas no momento de acesso do usuário ao sistema, substituindo a transação em dinheiro por fluxos informacionais.

O arcabouço legal relacionado à proteção de dados pessoais garante uma convergência entre tecnologia e proteção aos direitos humanos na área de atendimento a refugiados, em conformidade com o “Policy on the Protection of Personal Data of Persons of Concern to UNCHR”. Essa convergência pode ser demonstrada pela própria composição de instituições que estão à frente na implantação do guia de implementação do sistema para atendimento humanitário, chamado “Handbook on Data Protection in Humanitarian Action”.

Para o atendimento humanitário, o “blockchain” funciona, de certa forma, como um contraponto à utilização de sistemas de segurança dedicados à vigilância. Por outro lado, a implantação dessa tecnologia pode servir a diversos propósitos, trazendo importantes questionamentos éticos se não for feita com transparência. Os recursos dos quais agências públicas e privadas lançam mão, produzem efeitos cada vez mais profundos em relação à privacidade individual, servindo muitas vezes ao discurso com viés securitário. Zwitter e Boisse-Despiaux alertam para problemas em relação à proteção da privacidade, e à falta de convergência que qualquer aplicação tecnológica deve ter, a partir dos “princípios de humanidade, imparcialidade, neutralidade e independência”.

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Na América Latina, os recursos de coleta biométrica se concretizam de diferentes formas para atingir a objetivos variados: satélites, câmeras integradas de TV (CCTV),  veículos aéreos não-tripulados (VANT), câmeras de reconhecimento facial, câmeras térmicas, aeróstatos de vigilância (balões) e torres de controle. Esses estão instalados em pontos de entrada e saída dos territórios nacionais, como portos e aeroportos, contando com centros de controle e comando nos principais centros urbanos. Nesse caso, valoriza-se mais a infraestrutura para o controle e monitoramento da mobilidade em fronteiras internacionais, em áreas onde viceja a pobreza e a exclusão social (favelas etc.), ou em grandes eventos.

De qualquer forma, é importante questionar sobre a legitimidade na obtenção de dados pessoais para objetivos humanitários, tendo em vista que não existe a possibilidade de escolha do indivíduo. A inexistência de consentimento baseado em “manifestação livre, informada e inequívoca pela qual o titular concorda com o tratamento de seus dados pessoais para uma finalidade determinada”, como prevê, por exemplo, a lei brasileira 13.709/18.

Nesse período de pandemia, muros e cercas continuam a ser erguidos, fazendo parte da paisagem em diversas fronteiras pelo mundo, como, por exemplo, na fronteira da República Dominicana com o Haiti.

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Em ambos os casos, está embutida a lógica de um regime de informação discriminatório, em que o controle sobre os meios de produção informacional determina o grau de controle da mobilidade humana rastreada por fluxos algorítmicos.

No México, por exemplo, foram desenvolvidos “o Plano Sur, em 2001, o Plano Mérida, em 2003, o Programa Integral Frontera Sur, em 2014, além dos memorandos de entendimento com Honduras, Guatemala e El Salvador”, com o objetivo de controlar a mobilidade e efetuar possíveis deportações. Outras iniciativas são destacadas pelo relatório da organização Access Now, que atua na defesa dos direitos humanos no ambiente digital. Neste documento, afirma-se que o perigo está em defender um discurso que se baseia num determinismo tecnológico, acima dos direitos fundamentais.

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“As tecnologias digitais emergem num contexto de aumento da acumulação de renda e de crescimento da exploração de mão de obra barata, principalmente de países subdesenvolvidos.”

Indicadores apontam para aumento da concentração de renda e da desigualdade socioeconômica, crescimento de tráfico de seres-humanos, golpes de Estado, além da permanência de altos índices de utilização de mão-de-obra escrava e análoga à escravidão. Tendências que são acompanhadas por altas taxas de desemprego, queda na renda da população, aumento de doenças, fome e de intenso investimento em infraestrutura dedicada à vigilância e ao controle da mobilidade humana. Está claro que a tecnologia é vista como um recurso verdadeiramente salvador por aqueles que passam as necessidades mais básicas.

Por terem esses recursos um caráter digital, potencializam ações ilegais difíceis de serem identificadas por sua ubiquidade. Entretanto, não há dúvida que a tecnologia pode ser uma aliada para encontrar soluções que transformem a realidade social, e assim deve ser. O arcabouço jurídico recém-constituído, como as leis de proteção de dados pessoais instituídas em diversos países e regiões, concede certas garantias que atendem aos objetivos dos serviços humanitários, além de normatizar as formas de uso das tecnologias digitais, que são cada vez mais importantes num cenário de incertezas sociais, políticas e econômicas. Proporciona também certa garantia para que as tecnologias digitais utilizadas com propósitos humanitários, não se desvirtuem, acabando por se tornarem parte da infraestrutura de vigilância com objetivos exclusivamente securitários.

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*Por Bruno Nathansohn.

*Este texto não reflete, necessariamente, a opinião da Perfil Brasil.

*Texto publicado originalmente no site Latinoamérica21.

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