Por Edgardo Martolio*

Deus salve a memória do Rei!

Talvez, assim como Pelé magistralmente escolhia o ângulo onde colocaria o chute impecável, ele também escolheu o momento de deixar o planeta que o reverencia.

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(Crédito: Getty Images)

Talvez, assim como ele magistralmente escolhia o ângulo onde colocaria o chute impecável, Pelé também escolheu o momento de deixar o planeta que ainda hoje costuma reverenciá-lo: após a Copa do Mundo; esse ápice futebolístico que – embora o troféu seja diferente – ele e somente ele o conseguiu três vezes transformando o “10” num número mágico.

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A morte do ‘Rei’ Pelé, o rei de mil coroas, exige luto em qualquer coração sensível à arte, pede um minuto interminável de silêncio a todos os amantes do espírito esportivo, reivindica bandeira a meio mastro em qualquer país que tenha se extasiado com sua habilidade e, também, permite uma viril lágrima mesmo naqueles que nunca o viram se apresentar ao vivo…

 

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Pelé não era, simplesmente, um jogador de futebol, ele era um astro, o astro-rei. Sim, na constelação de estrelas do futebol ele é o sol. Não era apenas o melhor do futebol mundial, ele era o próprio futebol: ele o ‘encarnou’ como ninguém. Pelé não era o embaixador mais querido do Brasil e do esporte no mundo todo, era o esporte mesmo e o próprio mundo, segundo exibem suas homenagens aqui e acolá.

E foi o número um por e para todos, independentemente do gênero que importa tanto hoje. Assim, foi amor à primeira vista para todos aqueles que admiramos o admirável. O filho de Dondinho e Dona Celeste nunca esqueceu a pobreza de sua terra natal, Três Corações, lá no Sul de Minas Gerais; nem se banhou em ouro quando pôde fazê-lo no New York Cosmos.

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Sempre foi o mesmo, ele mesmo. Olhando para baixo, alcançou sua maior altura, a da modéstia e da humildade. Ele nunca humilhou seus rivais ou se comparou a seus pares. A realidade fez isso por ele e contra sua – consistente – idiossincrasia. Pelé, o inesquecível, a famosa ‘pérola negra’ parou uma guerra. Literalmente!

As trincheiras africanas desistiram do fogo cruzado para vê-lo, talvez tocá-lo, olhá-lo com a boca aberta e olhos ainda mais abertos, algo que nem Messi e Cristiano Ronaldo conseguiriam enfrentando-se um ao outro como grandes gladiadores que são. O modo-Pelé supera tudo. O Rei foi mais que uma celebridade, e a demonstração disso é que continuou no auge da popularidade sem jogar e até sua morte.

 

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Edson Arantes do Nascimento não é Deus porque não há nenhum Deus na Terra, mas no continente dos semideuses, ele é o primeiro da fila. Dentro e fora dos campos de jogo, aqueles campos que se enchiam de fascínio em tempos em que voar de um lugar para outro era complicado e ainda – às vezes – navegava-se.

Naqueles estádios que o aplaudiram quando a televisão ainda não mostrava e nem produzia ‘replay’ multicores. Ele era a cor: tinha todos os tons, desde o preto intenso de sua pele até a transparência de seus ideais. Assim como Macunaíma, era 100% brasileiro, “preto retinto e filho do medo da noite“.

E como o personagem de Mário de Andrade, também Pelé foi a São Paulo para conquistar seu sonho (um amuleto na obra modernista) e conseguiu; mas a grande diferença entre esses dois ícones do Brasil é que o herói literário, Macunaíma, não abraçou valores morais.

E Pelé o fez absurdamente. Como Ayrton Senna, o outro ídolo imperecível do país (de Alberto Santos Dumont, o famoso pai da aviação, ninguém se lembra, como na Argentina ninguém presta homenagem ao outrora afamado aviador Jorge Newbery. Por quê? Porque Pelé voou mais alto do que eles, além do céu…).

É verdade, alguma provável namorada foi deixada sem véu de noiva e alguma filha não o teve tanto quanto ela desejava; também é real que afinava mal e não cantava bem, embora acreditasse que sim. E, olha aí, admirava os argentinos, seus grandes rivais. Mas, possivelmente, são essas pequenas escaramuças na área do destino e da juventude que o descrevem e reconhecem como humano.

Um humano como poucos. E eu posso dizê-lo porque tive a benção de manter uma boa relação pessoal com ele, iniciada por telefone nos anos noventa, onde ele começou a chamar-me ‘Presidente’ e eu, claro, chamei-lhe ‘Rei’. Logo depois, nos conhecemos pessoalmente viajando juntos para o Japão, pouco antes da Copa do Mundo de 2002.

Mais tarde, visitei sua casa em churrascos santistas compartilhados com Manoel Maria e Dorval, ex-companheiros dele no Santos FC e que por anos atuaram no Racing de Avellaneda, meu clube de infância. Depois, quando dirigi a revista Placar (a principal e mais histórica do mercado brasileiro) trocamos muitos pensamentos entre nós.

Posso atestar, então, o titã que ele também era como pessoa. Algo que sempre me reforçou seu iel secretário pessoal, seu ladeiro por meio século, o espanhol Pepito Fornos. De resto, ‘perfeição’ é a melhor palavra que define o rei, se não houver outra superlativamente mais indicada. Porque agora, obviamente, em meio à dor, faltam palavras.

Onde estão essas palavras? Sua inspiração sem fim, nas quadras, anula as que podem adornar o texto do cronista. Como alguém pode dizer, ainda que seja uma só vez, o que ele fez tantas vezes tão elegantemente? Impossível. Só há uma palavra – única – que disse tudo: PELÉ.

Sua simples menção traz as lembranças, conta a epopeia do guerreiro vitorioso de todas as batalhas e também narra o conto de fadas que só conhece de belezuras. Dizer PELÉ é unir esses extremos em um círculo que melhor se assemelha a um de seus truques impensáveis e espontâneos num metro quadrado de área penal.

Só seu grato nome o qualifica e só ELE se define. O resto de nós morre na intenção ou não vai além de um mero ensaio. Pelé superou todos os craques anteriores, sejam eles Mathias SindelarZizinho ou Giuseppe MeazzaJust FontaineHéctor Scarone ou o ‘Charro’ Moreno.

Pelé, sem dúvidas, destacou-se acima de todos os seus contemporâneos, por muito bons que fossem Alfredo Distéfano e EusébioBobby CharltonFerenc Puskas ou Franz Beckenbauer. E também superou o próprio Garrincha, “o anjo das pernas tortas”, além de transformar em mítico ao ‘Gordo’ Coutinho.

Pelé, da mesma forma, nunca foi alcançado por aqueles que brilharam depois dele e a favor do novo mundo da mídia, fossem todos tão grandes quanto Michel PlatiniZicoMarco Van Basten ou o segundo melhor da história, o próprio Diego Maradona que, também para ele, foi o mais próximo que se aproximou naquele pódio quase celestial.

Muito menos se podem comparar a Pelé as figuras da atualidade, por marqueteiras que sejam – Lionel Messi, Cristiano Ronaldo ou Kylian Mbappé – que trabalham tanto nas redes sociais e no universo digital quanto nas quadras, na grama, esse espaço onde melhoram seu desempenho com calçados personalizados, bolas eletrônicas, treinamento científico e atendimento médico 5G. Mordomias que o verdadeiro Rei nunca teve ou sonhou.

Por quê ele foi superior a todos os seus colegas? Porque em termos de futebol ele não tinha defeitos (nos treinos surpreendia a todos defendendo melhor do que os bons goleiros de seus diferentes times). Em todos os restantes craques de cada época, por outro lado, você pode encontrar algum débito, e às vezes mais de um.

Não em Pelé. Ele era um artista produtivo e eficiente, o mais produtivo e o mais eficaz já conhecido. Foi uma esfinge imaculada. O foi nos clubes, onde ganhou tudo, e também o foi na sua seleção onde igualmente ganhou tudo. Ah… que ele não jogou na Europa? Bem, como se isso, especialmente naqueles tempos fosse importante, tempos em que o Brasil dava aulas de brilhantismo para os europeus. Não vamos incomodar com essa vulgaridade!

Se os próprios rivais o consagravam, quem somos nós, meros mortais para duvidar de sua magnitude? De fato, há uma anédota que exemplifica isso. Copa do Mundo de 1962, no Chile, segunda rodada. Brasil enfrenta a Tchecoslováquia. Meia hora de jogo. Falta forte acima de Pelé que o tiraria do torneio. Mas, nesse jogo, Pelé continua machucado, visivelmente impotente.

Vai à ponta esquerda apenas para receber e passar sem se movimentar. Mas, apesar de estar mancando, o lateral tcheco o derruba uma vez, duas vezes. Aí o capitão tcheco, o lendário volante Joseph Massoputs, encara seu lateral direito e fala que, caso voltasse a golpear Pelé machucado, ele o trocaria de lado.

E falou para o time todo, não golpear o Rei, apenas encostar se for necessário. E assim foi. Tamanho respeito pela sua qualidade. Outros tempos, outro futebol. Éramos felizes e não sabíamos. Um dia perguntei-lhe qual era o seu segredo e ele disse-me – além de agradecer a Deus pelos atributos que lhe presenteou – uma frase cheia de filosofia que não esqueço:

“O meu segredo era confiar em mim e nunca ter medo de perder; porque o medo de perder anula a vontade de ganhar: e sem vitórias não há glória ou reconhecimento“.

Pelé não precisou de marketing nem do voto dos ‘millennials’ ou da geração ‘Y’ para ser proclamado o ‘Atleta do século’, título que a história pluralizará quando entender que ele foi único e exclusivo; assim dirá que ele foi o ‘Atleta de todos os séculos’. Sim, tudo isso porque Pelé não é só uma lenda dos gramados, ele é A Lenda.

Como o americano Cássius Clay no ringue; outro monstro de ébano. Ambos constituem o orgulho negro que superou as barreiras mais difíceis e rasteiras da historia, as do racismo e da discriminação. Nosso Super-Homem do futebol parte agora, no meio de uma notória pela sua ausência; claro que faltou Pelé, o jogador mais jovem até hoje a disputar uma final do Mundo e o mais jovem a marcar um gol na decisão do campeonato.

E o único – entre os quase sete mil boleiros que já disputaram um Mundial – a conquistar o grande troféu três vezes: 1958, 1962 e 1970. Pelé, agora, subiu ao altar eterno. Está aí não só porque suas estatísticas são inatingíveis e suas façanhas se romantizam e iluminam no relato nostálgico daqueles que se lembram dele. Não.

Pelé está lá porque sua morte nos obriga a estabelecer justiça com sua magia, àquela que o hemisfério direito de seu privilegiado cérebro lhe proporcionou com o único propósito de alegrar ricos e pobres com seus ‘elfos’. E também pela certeza de sua lógica, essa que o hemisfério esquerdo permitia-lhe processar na velocidade da luz para entender o jogo cinco segundos antes do que o mais inteligente de seus adversários.

Ele também não está lá, no cume, porque sua perna esquerda chutava como a direita e sua perna direita driblava como a esquerda. Nem pelo cabeceio que era uma bomba imparável com direito a um bico no chão para vencer os goleiros. Está lá porque seu salto chegava à Lua e desafiava a lei da gravidade, tanto quanto sua frieza para definir, que bem parecia obra de uma inteligência artificial avançada. E pela sua resiliência aos pontapés rivais, resiliência de alienígena.

E de ‘yapa’, seu peito era um ‘fuelle’ com todos os acordes, como a sanfona do ‘tanguero’ argentino Astor Piazzolla, mesmo que sua música fosse uma marcha de carnaval de Noel Rosa e Ary Barroso, cantado em dueto por Carmen Miranda e Chiquinha Gonzaga e remixada com um hino de Lamartine Babo

Embora, e para se corresponder com ‘os intocáveis do além’, em sua despedida nada melhor do que lhe dar adeus em seu passo à imortalidade com a Missa de Réquiem, em Ré menor, de Wolfgang Amadeus Mozart. Saúdo-vos e despeço-me, Pelé com muita emoção. Farei meu luto e gritarei pela última vez “Deus salve o Rei!” Ou, pelo menos, que Deus criptografe sua memória para que os tufões do tempo nunca a profanem.

*Edgardo Martolio é autor do livro “Glória Roubada – O Outro Lado das Copas” (Editora Figurari)

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