política na Argentina

Chegou a hora da direita

A designação de Massa como candidato é a admissão de Cristina Fernández de Kirchner de que ela não controlará mais o peronismo

Chegou a hora da direita
Sergio Massa (Crédito: Tomas Cuesta/ Getty Images)

É como se Vladimir Putin tivesse que nomear o senhor da guerra Yevgeny Prigozhin como primeiro-ministro e os propagandistas do regime estivessem tentando fazer as pessoas pensarem que o motim que quase desencadeou a guerra civil na Rússia foi na verdade uma jogada genial do chefe. Cristina Kirchner não pode deixar de saber que, de todos os seus muitos inimigos, Sergio Massa é de longe o mais perigoso. No projeto pessoal da candidata do partido governista não há lugar para ela nem para “os nhoques de La Cámpora”, como ele os chamava quando estava na calçada do outro lado da rua.

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Tampouco há lugar para o primitivismo econômico dos kirchneristas mais belicosos; mesmo que suas próprias ideias sejam um tanto difusas, Massa está tão convencido quanto os líderes comunistas chineses de que o capitalismo funciona decididamente melhor do que qualquer outra alternativa. Ele é, como gritam Juan Grabois e companhia, um maldito “neoliberal”? Do ponto de vista dos Kirchneristas mais apaixonados, não há dúvida de que sim.

Por mais estranho que pareça em um país rachado onde as brigas políticas tendem a ser extraordinariamente rancorosas, pertencem ao mesmo espaço ideológico, os três personagens um dos quais – desde que Javier Milei não nos surpreenda nos próximos meses – acabará o ano enfeitado com a faixa presidencial. Eles são todos pragmáticos de centro-direita. Patrícia Bullrich é bem parecida com a dama de ferro inglesa, Margaret Thatcher, Horacio Rodríguez Larreta com os conservadores mornos que a achavam dura demais e Massa poderia ser um republicano americano do tipo daqueles que comandaram o partido desse nome antes da irrupção do narcisista fenomenalmente disruptivo Donald Trump, o ídolo dos perdedores que tem muito em comum com Cristina.

Os dirigentes do Juntos por el Cambio rezam para que o antológico fracasso da gestão do ministro da Economia seja mais que suficiente para lhe garantir uma derrota contundente no PASO e nas eleições reais. De sua parte, Massa se esforçará para jogar a culpa por sua incapacidade de conter a inflação nos kirchneristas cuja proximidade ele foi forçado a suportar para sobreviver no cargo. Sem ser excessivamente explícito até que se sintam totalmente liberados, mais cedo ou mais tarde o Tigrense o fará para enfraquecê-los ao entender que é de seu interesse desvincular-se completamente dos responsáveis ​​por levar a Argentina à beira de um precipício íngreme pelo qual pode se deslizar.

Será que sua merecida reputação como um político excepcionalmente sinuoso, uma “panqueca” nata e não confiável, muitas vezes vendido pelo maior lance para logo apunhalar nas costas quando não for mais útil, trabalhará contra ele? Até certo ponto, mas a astúcia desinibida que é sua marca registrada para muitos pode ajudá-lo, dando-lhe a ilusão de que estará em posição de lucrar com as conturbadas circunstâncias mundiais.

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Afinal, parece que Massa conseguiu persuadir os frios técnicos do Fundo Monetário Internacional a não abandonar um país governado por pessoas que não hesitam em tratá-los com desprezo. Se não fosse pela disposição das mulheres que hoje dominam o Fundo de lhe dar o benefício de todas as dúvidas concebíveis, a crise econômica que está sangrando a Argentina seria ainda mais destrutiva do que já foi.

A promiscuidade política que sempre caracterizou Massa já está causando problemas no partido Juntos por el Cambio; ele conta entre seus “amigos” Rodríguez Larreta e Gerardo Morales. Não será tão fácil para eles tratá-lo com o extremo desdém que demonstrariam caso se tratasse de outro membro do elenco oficial. Quando Cristina tentou a sorte com a dupla acinzentada formada por Wado de Pedro e Jorge Manzur, os do Juntos por el Cambio acreditaram já ter vencido as eleições presidenciais. Mas, a rebelião vitoriosa de Massa, acompanhado por uma série de governadores provinciais e Prefeitos que estão extremamente preocupados com o que aconteceria se Wado se tornasse um grande espanta votos como Leopoldo Moreau em 2003, os forçaram a recapitular. Se na semana passada eles tinham boas razões para supor que o peronismo estava morrendo, agora eles têm boas razões para temer que ele possa reviver depois de sofrer uma nova mutação ideológica. Há muitos que assumem que um ajuste peronista seria menos cruel do que um implementado por outros.

Depois de priorizar a coesão de sua própria facção interna, Cristina teve que bater em retirada. Embora continue apegado ao suposto plano original de inviabilizar a vida de seu sucessor, atacando-o desde o primeiro dia, enviando grandes colunas de piqueteros ao centro da Capital Federal e mobilizando os militantes, esses filhos da “geração dizimada” que permanecerem fiéis ao pensamento de seus progenitores biológicos ou espirituais montoneros, além de contingentes de lumpens de rua, como fizeram os kirchneristas em Jujuy, segundo porta-vozes da oposição, seria surpreendente que uma estratégia tão agressiva tivesse o apoio do grosso da os peronistas.

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Ao contrário dos kirchneristas mais fanáticos que estariam perfeitamente dispostos a sacrificar o país, com seus habitantes dentro, em prol de uma “história” supostamente revolucionária, muitos peronistas prefeririam contribuir para uma eventual recuperação nacional. Desnecessário dizer que Massa compartilha esses sentimentos; para um homem acostumado a conviver com a nata dos empresarios americanos e outros dignitários internacionais, não lhe interessaria ser confundido com o potencial líder de uma horda de mendigos dependentes da caridade alheia.

Assim como Cristina, Massa terá seu plano B. Esperará que, se perder desta vez, receba um prêmio de consolação muito valioso: a liderança do peronismo. Apesar do otimismo que lhe é congênito, poderia até acreditar que realmente não lhe seria conveniente assumir o comando do desastre causado pelos kirchneristas, pois, aconteça o que acontecer, o próximo governo terá necessariamente que implementar um ajuste desagradável que implicará um custo político significativo. Então, os peronistas se deparariam com a opção de se comportar de maneira notavelmente irresponsável, como pediriam os fiéis ao cristinismo, e emular os líderes do Juntos por el Cambio que, como seus representantes insistem em nos lembrar, nos últimos anos se destacaram pela sua moderação construtiva. Enquanto aqueles que, como Cristina, privilegiam o curto prazo estarão determinados a desfazer o mais rápido possível um governo não kirchnerista que ouse fazer sérios ajustes, outros vão querer garantir que a herança recebida pelos que virão seja pelo menos administrável.

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Do ponto de vista daqueles que se recusam a abandonar o velho e antiquado costume de interpretar tudo o que acontece em termos geométricos, o centro de gravidade da política nacional acaba de se deslocar fortemente para a direita. Como em muitos outros países, a maioria não se impressiona com os slogans daqueles que entregariam a economia a grupos de burocratas militantes, sindicalistas e outros que seriam orientados por intelectuais com ideias semelhantes.

Na Grécia, na semana passada, um governo pró-mercado que promete continuar pressionando o programa de reformas apoiado pelo FMI que foi inicialmente repudiado pela maioria, obteve uma vitória arrebatadora às custas dos partidos populistas de esquerda. Algo semelhante está acontecendo em outras partes da Europa, como Espanha e Itália, onde “a direita” avança rapidamente graças à sua capacidade de mobilizar jovens prejudicados pelo fracasso de governos de inspiração progressista ou meramente centrista.

A pregação pró-anarcocapitalista de Milei pode ter contribuído pouco para sua popularidade nas pesquisas, mas está claro que sua defesa apaixonada do livre mercado e suas tiradas furiosas contra aqueles ligados à ordem estabelecida fizeram muito por ele. Até muito recentemente, na Argentina, a militância pró-capitalista era típica de um punhado de excêntricos; graças em grande parte a Milei, está pegando. Não é mais necessário esclarecer que se trata de uma infeliz necessidade imposta pelas circunstâncias, implicando assim que se compartilha dos sentimentos “humanos” daqueles comprometidos com o populismo retórico vagamente progressista que tanto dano tem causado.

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Assim, não seria de todo surpreendente se, para escapar do calamitoso fracasso do kirchnerismo, aqueles que continuam a se considerar fiéis ao evangelho de Perón e seus satélites retornem ao “espaço” que ocupavam quando Carlos Menem e Domingo Cavallo deram ao país uma década de estabilidade monetária que, apesar do eventual colapso da conversibilidade, legou aos governos de Eduardo Duhalde e Néstor Kirchner uma economia que, bem administrada, poderia ter crescido tanto quanto a de outros países latino-americanos. Infelizmente, primeiro Néstor e, nos anos seguintes, a sua viúva, optaram por “investir” boa parte do que herdaram na política e nos negócios da família, daí o estado catastrófico do país que os seus sucessores terão de tentar governar.

*Por James Neilson – Ex-editor do Buenos Aires Herald (1979-1986).

*Este texto não reflete, necessariamente, a opinião da Perfil Brasil.

*Texto publicado originalmente no site Perfil Argentina.

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