Na Alemanha de Angela Merkel, há uma atmosfera de desânimo. O coronavírus criou um novo medo em um país rico e estável. As enchentes de algumas semanas atrás deixaram claro mais uma vez o quão urgente é a transformação socioecológica, já que a mudança climática também é claramente palpável na Alemanha.
Uma terceira tendência é a explosão de preços no mercado imobiliário, uma grande ameaça econômica para muitas famílias alemãs, inclusive as de classe média. Quanto à política externa, a retirada abrupta e malsucedida do Afeganistão chocou os alemães pouco antes das eleições. Afinal, o que a comunidade internacional e as forças armadas alemãs conseguiram se o Talibã está (novamente) no poder? O que isso significa para futuras missões, incluindo as não militares? E a União Europeia ainda está sob o fogo dos populistas de direita: Polônia e Hungria são uma dor de cabeça para os Estados membros liberais. Mas também há preocupação com as eleições na França, porque Marine Le Pen, líder do partido de extrema direita Reagrupamento Nacional (antes chamado de Frente Nacional), se sai muito bem nas pesquisas.
Eleições
Neste contexto, as eleições federais para o 20º Bundestag aconteceram. Não é apenas que essas eleições foram realizadas em condições pandêmicas, mas que Angela Merkel (da União Democrática Cristã, CDU), após 16 anos como chanceler, não foi candidata ao cargo desta vez. Três candidatos concorreram à próxima chancelaria alemã: Armin Laschet (CDU), Olaf Scholz (Partido Social-Democrata da Alemanha, SPD) e Annalena Baerbock (Os Verdes). 53 partidos se registraram para participar (Bundeswahlleiter 2021), sete dos quais estão representados no atual Bundestag: a CDU e a União Social Cristã da Baviera (CSU), que juntas formam um grupo parlamentar denominado União; o SPD; Alternativa para a Alemanha (AfD); o Partido Democrático Livre (FDP); a Esquerda; e os Verdes. As pesquisas colocavam o candidato social-democrata e atual ministro das Finanças, Olaf Scholz, em primeiro lugar, e ele foi o vencedor das eleições.
“O coronavírus criou um novo medo em um país rico e estável”
Um olhar sobre as plataformas eleitorais dá uma ideia das prioridades políticas. O certo é que o próximo governo será uma coalizão. Então, o que os manifestos nos dizem sobre as posições e prioridades dos partidos, e como eles harmonizam seus planos?
Propostas
As plataformas eleitorais podem ser divididas em termos de conteúdo em dois blocos: três partidos de esquerda (Esquerda, Verdes e SPD) e três partidos de direita (FDP, CDU/CSU e AfD). É preciso dizer que, embora a AfD pertença ao bloco de direita, suas posições sobre algumas questões diferem significativamente das da CDU/CSU e do FDP. A lacuna entre os dois blocos é claramente visível na dimensão do conflito socioeconômico. No que diz respeito ao Estado de bem-estar, os três partidos da esquerda claramente preferem, em termos gerais, o Estado ao mercado, enquanto para os três partidos da direita ocorre o contrário. Ainda sobre imigração e integração, os partidos de esquerda são mais favoráveis à aceitação e integração dos imigrantes do que os três partidos de direita.
Em relação aos desafios das mudanças climáticas, a Esquerda e os Verdes assumem as posições mais radicais, porque querem forçar a indústria com regras mais rígidas a colocar a proteção climática antes dos lucros. A CDU/CSU também quer a proteção climática, porque tem que querer isso para ganhar votos, mas é amistosa aos empresários.
Ainda no que diz respeito à questão do papel internacional da Alemanha, três grupos podem ser identificados. A AfD é o único partido que assume uma posição anti-União Europeia e fortemente protecionista. A CDU/CSU e o FDP defendem a cooperação internacional, especialmente por razões econômicas (de mercado), enquanto os três partidos de esquerda querem usar a cooperação internacional para promover padrões sociais e de sustentabilidade.
Consensos
Poucas questões são consensuais entre as partes. Apesar de terem ideias muito diferentes sobre a política de saúde, todas os partidos expressam uma atitude positiva em relação a melhores condições de trabalho nas áreas da saúde e atenção “de importância sistémica” e à expansão da infraestrutura de saúde rural. Todas as partes expressam um compromisso fundamental com uma maior proteção do meio ambiente e da biodiversidade. A maioria das semelhanças, entretanto, está nas questões técnicas, menos vinculadas à ideologia, de uma infraestrutura digital preparada para o futuro. Todos os seis partidos reconhecem a necessidade de melhor cobertura de rede para conexões celulares e de banda larga. E todos pretendem de alguma forma quebrar o poder de mercado das grandes empresas americanas do setor digital. Portanto, há questões, mesmo que poucas, sobre as quais existe um certo grau de concordância, embora apenas no nível dos objetivos e das ideias abstratas, e não no nível dos meios e das soluções.
Estado de bem-estar
De um ponto de vista progressista, os desafios para o Estado de bem-estar social alemão parecem particularmente importantes. A crise do coronavírus atingiu duramente a Alemanha; embora não tenha sido o gatilho, pode ser vista como um catalisador para as desigualdades sociais e os déficits existentes no Estado de bem-estar alemão. A prioridade que a Esquerda e o SPD dão a essa questão se reflete em seu plano de reformar de forma abrangente o sistema de seguro de saúde alemão. O SPD quer implementar um seguro cidadão que cubra todas as necessidades assistenciais e que corresponda à demanda da esquerda por um “seguro solidário de assistência integral”. Esse seria um grande marco no sistema de seguro de saúde alemão, que tradicionalmente é dividido entre um privado e um obrigatório. Tendo como pano de fundo a experiência da pandemia da Covid-19, todos os partidos concordam que melhores salários e condições de trabalho são necessários para o pessoal de enfermagem em hospitais e centros de atendimento, embora em graus diferentes.
O Hartz IV (ou seguro-desemprego/ALG II) foi introduzido em 1º de janeiro de 2005. Dezesseis anos depois, o SPD não menciona mais nenhum desses termos em sua plataforma eleitoral. Enquanto a Esquerda e os Verdes querem revogar o Hartz IV e, em vez disso, introduzir uma renda básica, o SPD propõe o desenvolvimento de um “subsídio ao cidadão” que deve permitir “uma vida com dignidade e participação social”. Os três partidos querem abolir as sanções e estender o seguro-desemprego aos trabalhadores autônomos.
Mudanças climáticas e imigração
Mudanças climáticas, meio ambiente e sustentabilidade podem ser os principais temas das eleições de 2021. Em 2019, a maioria da população alemã as viu pela primeira vez como o problema mais importante (Forschungsgruppe Wahlen 2021). Devido à sua importância avassaladora, a pandemia da COVID-19 reduziu indiretamente a atenção que os políticos, a mídia e os cidadãos deram ao assunto, e também reduziu a capacidade de mobilização de movimentos ativistas como o Fridays for Future, que tiveram muito sucesso na Alemanha em 2019. Mas a questão voltou com força na campanha eleitoral de 2021, apoiada pela decisão do Tribunal Federal de Justiça de 29 de março que obriga o governo a acelerar os seus esforços ambientais para evitar problemas drásticos para as gerações futuras.
Os principais núcleos do assunto são a geração de energia (renovável versus fóssil), o transporte (carros e voos versus transporte público, bicicletas, etc.), sustentabilidade, biodiversidade e conservação da natureza, soluções mais gerais para o problema do dióxido de carbono e cumprimento dos compromissos assumidos em tratados internacionais.
Uma importante questão nacional relacionada às mudanças climáticas e à geração de energia é o carvão, já que tem uma longa tradição na Alemanha e sua indústria está localizada em regiões economicamente atrasadas tanto no oeste quanto no leste do país. Hoje, todos os partidos, com exceção da AfD, são a favor da eliminação gradual da geração de energia com base no carvão.
A questão da imigração foi considerada como o problema mais importante pela população entre 2015 e 2018 (Forschungsgruppe Wahlen 2021) e como o maior desafio na campanha eleitoral de 2017. Em 2021, porém, perdeu importância devido à menor pressão da situação migratória atual e pelos dois novos desafios ambientais: a digitalização (um campo em que a Alemanha fica para trás em comparação com outros países desenvolvidos) e a pandemia. Somente o que aconteceu em agosto de 2021 no Afeganistão, onde a Alemanha estava fortemente envolvida como parte da missão da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN), colocou a questão da imigração novamente nos holofotes e mostrou que ela continua sendo um problema diante do qual os partidos estabelecidos se isentam, por medo de fortalecer a AfD.
Coalizão
Pela primeira vez desde as eleições para o Bundestag de 1953, o próximo governo alemão provavelmente consistirá em mais de dois partidos. Dado que já é descartada a cooperação e a participação da AfD em um governo (com os partidos tradicionais), uma coalizão dos três partidos de direita é impossível. Uma coalizão dos três partidos de esquerda (a chamada coalizão vermelho-vermelho-verde) também parece improvável, tendo em vista a postura de política externa da Esquerda, que rejeita a Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) e se absteve em várias votações no Bundestag sobre a questão do Afeganistão.
Existem então quatro opções de coalizão, três das quais levam o nome do país cuja bandeira contém as cores dos partidos constituintes: “Quênia” (CDU/CSU, SPD e Verdes), “Jamaica” (CDU/CSU, Verdes e FDP), “Alemanha” (CDU/CSU, SPD e FDP); já a quarta é conhecida como “semáforo” (SPD, Verdes e FDP). No entanto, um pré-requisito para cada uma dessas coalizões seria que um partido “cruzasse de lado” e cooperasse com os partidos do outro bloco.
De acordo com as pesquisas atuais, a mais popular seria uma coalizão “semáforo” liderada pelo candidato a chanceler do SPD, Olaf Scholz, já que o SPD lidera atualmente as pesquisas com 23%-25% das intenções de voto (o CDU fica com 20%-23%). O SPD não poderia justificar a coalizão “Alemanha”, pois perdeu muito de seu perfil e de suas figuras sob a “grande coalizão” conservadora-social-democrata dos dois últimos períodos legislativos. O liberal FDP terá assim um poder de barganha muito forte nas negociações preliminares, porque aspira ao importante Ministério da Economia, onde pretende colocar Christian Lindner. Tendo em vista a disputa acirrada entre a CDU/CSU, o SPD e os Verdes nas pesquisas atuais, resta ver qual partido pode realmente cumprir as condições de um acordo de coalizão e fazer parte do primeiro governo alemão depois de Merkel.
*Por Katharina H. de Moura – Consultora em análises de democracia social internacional e europeia na Fundação Friedrich Ebert, em Berlim. Originalmente publicado por Nueva Sociedad (nuso.org).
*Este texto não reflete, necessariamente, a opinião da Perfil Brasil.
*Texto publicado originalmente no site Perfil Argentina.