Fatos objetivos são menos importantes do que a influência nas emoções dos eleitores

A negação, fechar os olhos, ver o que queremos ver, a ignorância consciente e inconsciente, são estratégias para lidar com a verdade traumática que as pessoas usam desde sempre

Por Renata Salecl*

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Em 2016, o dicionário Oxford escolheu “pós-verdade” como a palavra do ano. E isso aconteceu porque dois acontecimentos importantes do ano (o referendo britânico sobre a sua permanência na UE e as eleições presidenciais nos Estados Unidos) demonstraram que os fatos objetivos são menos importantes do que a influência nas emoções dos eleitores. Claro, você tem que se perguntar se a verdade já foi importante e quando é que a política não venceu por causa da influência nas emoções das pessoas. A negação, fechar os olhos, ver o que queremos ver, a ignorância consciente e inconsciente, são estratégias para lidar com a verdade traumática que as pessoas usam desde sempre. O que mudou hoje é a tecnologia dessa negação.

Há alguns anos, era difícil imaginar que a Internet iria reduzir o fluxo de informações e que saberíamos cada vez menos sobre o que está acontecendo no mundo. Menos poderíamos imaginar que saberíamos cada vez menos sobre o que está acontecendo em nosso entorno imediato. E exatamente isso aconteceu. Com todas as possibilidades que a Internet oferece, as pessoas vivem cada vez mais nos seus mundos limitados e a sua visão do mundo é como olhar através de um túnel: só se vê na direção para a qual se olha e ficam pouco expostos os olhares dos veem de forma diferente. Muitos britânicos e americanos hoje se perguntam como é possível que sua sociedade tenha se dividido tanto por sua visão de mundo, e como é possível que as linhas políticas opostas saibam cada vez menos o que os outros pensam.

Numa época em que muitas pessoas recebem notícias diariamente na Internet e o Facebook se tornou um dos mais importantes divulgadores de informações, a maioria das pessoas segue quem pensa igual que eles. Não é que não concordem com o ponto de vista de seus oponentes; o problema é que muitas vezes eles nem conhecem esses outros pontos de vista.

Diante das eleições nos Estados Unidos, o jornal britânico “The Guardian” fez um experimento: com a permissão de seus leitores, enviou durante um mês e meio às contas de Facebook de um grupo de leitores conservadores e a outro de liberais notícias publicadas em meios de comunicação contrários às ideias de cada grupo. Seria algo como se na Eslovênia os leitores de Mladina passassem a receber textos que os leitores do “Reporter” costumam ler e vice-versa. O resultado dessa lavagem cerebral foi surpreendente. A maioria das pessoas sentiu profunda indignação com as notícias e comentários que seus oponentes políticos estavam lendo. Muitos tinham a sensação de que não viviam no mesmo país por causa de quão diferentes eram as visões sobre os mesmos acontecimentos políticos. Como resultado das novas notícias, alguns mudaram convicções que haviam mantido as suas vidas inteiras. Ler um pensamento crítico sobre o candidato que até então apoiavam convenceu algumas pessoas de que era melhor não ir votar. Muitas pessoas ficaram com medo após este experimento. Isso aconteceu com imigrantes que leram comentários de um ódio descomedido sobre a ameaça de expulsar os imigrantes, construir um muro na fronteira mexicana e assim por diante. Por exemplo, um dos estrangeiros que vivem nos Estados Unidos há muito tempo disse que não achava que seus vizinhos o odiassem tanto.

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Wael Ghonim, um dos pais da Primavera Árabe, é muito cético em relação aos novos meios de comunicação, pois afirma que os mesmos meios de comunicação que são fundamentais para a divulgação de mensagens sobre a necessidade de mudanças hoje desempenham o papel de quem impede essas mudanças. Os meios de comunicação da Internet tendem a reduzir problemas sociais complexos a slogans que mobilizam as pessoas em seus sistemas informacionais fechados, nos quais ouvem apenas opiniões com as quais já concordam de antemão. O discurso de ódio e a mentira ocupam o mesmo lugar nesses meios de comunicação que as boas intenções e as diferentes verdades.

O problema de nosso tempo não é apenas que sabemos cada vez menos o que pensa a linha política oposta, mas também que nos importamos cada vez menos com os fatos. Na campanha eleitoral dos Estados Unidos, toda uma série de jornalistas alertou todos os dias que as declarações de Trump estavam cheias de mentiras. Um repórter do jornal “Toronto Star”, por exemplo, confrontava todas as noites com os fatos aquilo que Trump havia defendido em suas aparições públicas durante o dia; geralmente encontrava mais de vinte imprecisões por dia, e no total ele encontrou quinhentas. Uma tropa de jornalistas americanos também se deu ao cuidado de confrontar suas palavras com os fatos, mas Trump permaneceu inabalável frente à constatação. Embora os jornalistas lhe dessem provas de que muitas de suas declarações não eram verdadeiras, ele as continuava repetindo em suas aparições de campanha.

O confronto com os fatos também não afetou os apoiadores de Trump. Eles se ocupavam apaixonadamente dos e-mails de Hillary Clinton e seus discursos bem pagos para instituições financeiras de Wall Street, sem se incomodar com o fato de que Trump não pagasse quase nenhum imposto havia décadas ou porque, em face de numerosos processos judiciais, as corporações de Trump fossem famosas por ter apagado em massa os e-mails dos seus servidores, ou porque uma fundação do candidato parecesse ter recebido US$ 150 mil por uma videoconferência com um magnata ucraniano.

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Enquanto um grande grupo de jornalistas da imprensa escrita tentava provar à opinião pública que o candidato presidencial era um mentiroso em série, os canais de televisão faziam publicidade gratuita para Trump todos os dias, repetindo da manhã à noite (muitas vezes com indignação) o conteúdo de seus tweets. Na verdade, Trump entretinha os seus milhões de seguidores com tweets chocantes no alto da noite, muitas vezes cheios de um ódio intemperado. Os canais de televisão americanos começaram a comentar essas mensagens junto com as informações matinais. Embora muitos jornalistas tenham tentado criticar o conteúdo dos tweets, o efeito propaganda já se concretizava pelo fato de repeti-los incessantemente na televisão.

Trump se saiu bem precisamente porque era muito direto em seus tweets. À noite, ele desencadeava uma enxurrada de sentimentos, muitas vezes muito ofensivos, em relação aos imigrantes, às mulheres e ao Islã. E ele não escondia sua raiva, sua autocomplacência narcisista sempre que se saía bem e, é claro, seu desprezo pelos concorrentes.

Uma jornalista da revista “The Atlantic Monthly” descreveu muito bem o fenômeno Trump: a imprensa o leva literalmente, ela disse, mas não o leva a sério, enquanto seus seguidores o levam a sério, mas não literalmente. Por isso, estes últimos não davam tanta importância ao conteúdo de seus discursos, mas sim à forma como eram divulgados. Ainda mais importante foi o efeito, ou seja, as emoções que essas falas e tweets despertaram.

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Em tempos em que cada vez mais temos a impressão de que algoritmos podem prever nossa vida, e em tempos em que a ideologia do consumo continua a nos convencer de que o sujeito pode escolher racionalmente, que está interessado em maximizar seu bem e minimizar sua dor, as emoções vieram à luz com toda a sua força. Após as eleições, os americanos falavam de uma chuva de ódio, rejeição e angústia. Mas a emoção mais presente era a raiva.

Eleitores brancos furiosos, especialmente homens com pouca educação, são os que mais fortemente se identificaram com Trump, e por causa de sua insatisfação com a perda de empregos e sua crescente marginalização na sociedade, eles o apoiaram em massa. Após a eleição, os eleitores que discordavam de Trump estavam completamente furiosos.

Os psicanalistas enfatizam que a raiva é uma forma particular de repressão. Por exemplo, podemos estar com raiva de nosso chefe, embora inconscientemente possamos estar com raiva de nossos pais. Portanto, quando expressamos o sentimento de raiva, é sempre importante nos perguntarmos de quem realmente estamos com raiva. É possível que culpemos os imigrantes porque os padrões de vida caíram ou perdemos o emprego, mas realmente deveríamos ficar com raiva das empresas, que em sua busca por lucros cada vez maiores estão transferindo empregos para o Terceiro Mundo.

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Para Sigmund Freud, as paixões são sempre mais fortes do que os interesses racionais. Freud disse certa vez que a raiva leva ao medo, o medo ao ódio e o ódio leva à escuridão. Mas também podemos dizer que o medo leva à raiva e ao ódio, e que na verdade é o medo que leva as pessoas a fechar os olhos ou ver apenas o que desejam ver.

Em seu livro “States of Denial” (“Estados de negação”), Stanley Cohen questiona como podemos nos perguntar tanto as razões pelas quais as pessoas negam os fatos. A negação é uma ocorrência tão habitual que seria melhor perguntar como é possível que as pessoas estejam atentas, quando é que percebem algo e quando algo as perturba o suficiente para que elas estejam dispostas a agir, especialmente ao preço do risco pessoal.

Na Europa, pelas mudanças políticas no Estados Unidos, o Brexit e o auge da direita radical em muitos países, os pessimistas temem que a sociedade mude na direção do ódio, e que possa se repetir algo como a ascensão do fascismo que levou à Segunda Guerra Mundial; os otimistas, por outro lado, esperam que essa mudança para a direita abra as portas para um novo movimento social progressista. Quando o crocodilo arrancou o braço direito do otimista, ele disse que a situação não era tão ruim quanto parecia. Finalmente, ninguém iria perguntar se ele era canhoto ou destro.

*Filósofa, socióloga e teórica do direito eslovena, ela é pesquisadora do Instituto de Criminologia da Faculdade de Direito da Universidade de Ljubljana e professora do Birkbeck College da Universidade de Londres. Trecho de seu livro “O prazer da transgressão”.

*Texto publicado originalmente no site Perfil Argentina

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