Será que Biden enfrentará os abusos de poder do FMI?

*Por David Adler – Economista político e coordenador geral da Progressive International, criada em 2020 para organizar e mobilizar as forças progressistas em todo o mundo.

Será que Biden enfrentará os abusos de poder do FMI
(Crédito: Sarah Silbiger/ Getty Images)

O Fundo Monetário Internacional reuniu-se estes dias na sua sede em Washington para reafirmar o plano tripartido do FMI: estabilidade financeira, solidez económica e – como afirmou recentemente a sua diretora-gerente, Kristalina Georgieva – solidariedade internacional. “Estou determinada a apoiar nossos membros como pudermos”, disse Georgieva sobre o novo espírito do FMI. “Agora é a hora de aproveitar esta oportunidade para construir um mundo melhor.” Georgieva está certa: é agora ou nunca.

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A “maior onda de crises da dívida” em uma geração está se aproximando do hemisfério sul. Dois ingredientes compõem essa bomba-relógio da dívida: um rápido aumento nos níveis da dívida pública nos países mais pobres do mundo e uma taxa igualmente rápida de aumento dessa dívida emitida a taxas de juros variáveis. A combinação desses dois componentes significa que mesmo pequenos aumentos de taxas nos países ricos terão consequências explosivas em todo o mundo em desenvolvimento. Também que as cadeias de suprimentos estão paralisadas, os preços dos alimentos disparam e a pandemia de Covid-19 devasta populações que não receberam vacinas suficientes para vacinar a maioria de seus cidadãos.

Em suma, as nações do hemisfério sul nunca precisaram de mais apoio em sua busca por estabilidade, força e solidariedade do que agora. Mas mesmo uma olhada superficial na atividade global do FMI revela uma violação sistemática desse mandato declarado e, em vez de resolver as crises combinadas de saúde, fome e habitat nos países mais pobres do mundo, derrama combustível sobre eles para alimentá-los.

Um exemplo disso é a Argentina. Em 2018, o FMI ignorou os avisos de sua própria equipe e empurrou um empréstimo de US$ 57,1 bilhões para a Argentina, então sob a presidência de Mauricio Macri. Esse foi o maior empréstimo da história do FMI.

“Nenhum dos objetivos do programa do FMI foi alcançado”.

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O empréstimo cumpriu o mandato de estabilidade financeira promovido pelo FMI? Muito pelo contrário: a inflação subiu, o emprego caiu e o capital estrangeiro fugiu do país a taxas recordes. Agora, muito depois de Macri ter sido afastado do cargo, o povo argentino continua pagando o preço da dívida. O ministro da Economia da Argentina, Martín Guzmán, foi direto em sua carta a Georgieva no mês passado: “Nenhum dos objetivos do programa do FMI foi alcançado”.

E a força econômica que o FMI reivindica? No início da pandemia de covid-19, o FMI declarou sua ambição de empregar um trilhão de dólares para combater o vírus, proteger as populações vulneráveis ​​do mundo e sustentar suas economias durante a crise global. “Isso é muito incomum para o FMI. Eu saía e dizia: ‘Por favor, gaste.’ Gaste o quanto puder e depois gaste um pouco mais”, disse Georgieva em abril de 2020. É verdade, é incomum, especialmente incomum demais para ser verdade: dos 85 países que receberam apoio pandêmico do FMI, 73 deles foram forçados a impor medidas de austeridade em nome da “consolidação fiscal”.

O relatório de 2021 da Oxfam é uma turnê mundial da promessa quebrada do FMI de construir e sustentar economias fortes: cortar salários na Tunísia, cortar benefícios sociais em El Salvador, remover subsídios de energia no Egito. A austeridade do FMI deixa os 10% mais ricos economicamente mais fortes e torna os 90% mais pobres mais pobres.

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Essas estatísticas trazem problemas para a proposta de solidariedade do FMI. Mas talvez a melhor ilustração da abordagem solidária do FMI esteja em suas “sobretaxas”: as tarifas punitivas, pró-cíclicas e completamente desnecessárias que o FMI pede aos países mais endividados com aquela organização. Pode-se imaginar que o FMI reduziria – e até eliminaria – essas “sobretaxas” para ser consistente com seu “novo espírito de solidariedade”. Mas, novamente, o oposto está acontecendo: as taxas de “sobretaxa” dobraram: de US$ 1 bilhão para US$ 2 bilhões entre 2019 e 2021, e o número de países que devem pagá-las aumentou de 9 para 16. Até 2025, o FMI espera que esse número aumente sobe para 38. As sobretaxas do FMI afetam diretamente os países vulneráveis ​​do mundo.

Na Ucrânia, por exemplo, onde o governo de Volodimir Zelensky luta contra a invasão russa enquanto presta assistência a mais de 7 milhões de deslocados, o FMI terá obtido “sobretaxas” no valor de 423 milhões de dólares em apenas dois anos: os 25 % da todo o orçamento de saúde da Ucrânia. “As sobretaxas vão exatamente contra o que o FMI deveria fazer”, disse o prêmio Nobel Joseph Stiglitz. “O FMI deveria estar ajudando os países… não extraindo rendas adicionais deles por causa de sua extrema necessidade.”

O mandato não cumprido do FMI pode afetar mais o sul global, mas suas consequências são planetárias. Em países como Mongólia e Moçambique, por exemplo, o FMI estimula a extração de carvão e gás com incentivos fiscais para empresas de combustíveis fósseis. Serão as comunidades mais pobres desses países que mais sofrerão com o colapso climático. Mas todas as nações se aquecem em uníssono. Mesmo os países mais climatizados não podem se dar ao luxo de ignorar o histórico climático do FMI como um problema exclusivo dos pobres.

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Então, como o FMI se safa disso? O FMI é uma instituição pública financiada com dinheiro dos contribuintes e controlada pelos governos membros. Da Argentina ao Equador, do Paquistão ao Egito, pessoas de todo o mundo se organizaram para protestar contra as ações do FMI e exigir um rumo diferente para aquela instituição financiada publicamente. Os especialistas acrescentaram argumentos jurídicos a essa indignação generalizada, documentando as violações do direito internacional e empréstimos fora de qualquer regra, como a que o FMI deu à Argentina.

“O FMI não aceitou a Declaração sobre Direitos Humanos Direitos Humanos. Direitos como princípio motivador de nossas operações”.

Diante disso, o FMI simplesmente dá de ombros. “O FMI não respeita as resoluções da ONU ou a carta da ONU”, disse o economista Andrés Arauz à investigação Progressive International na semana passada. Isso não é segredo: em uma carta a Juan Pablo Bohoslavsky, um especialista independente do Escritório do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos, o FMI expõe claramente sua impunidade: “O FMI não aceitou a Declaração sobre Direitos Humanos Direitos Humanos. Direitos como princípio motivador de nossas operações”.

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O abuso de poder do FMI, portanto, não é surpreendente. É uma resposta natural de uma instituição desvinculada das leis de seus estados membros e das Nações Unidas que os conecta. Ajustar o mandato do FMI não funcionará. Somente mecanismos de responsabilização fortes que mudem quem decide e como podem acabar com a impunidade do FMI. Felizmente, não faltam propostas para esse mecanismo, desde o Conselho Econômico e Social da ONU até a Corte Internacional de Justiça. O que faltou até agora é vontade política, principalmente do maior acionista do FMI e o único com poder de veto, ou seja, os Estados Unidos.

*Este texto não reflete, necessariamente, a opinião da Perfil Brasil.

*Texto publicado originalmente no site Perfil Argentina.

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