Em centenário, especialistas rediscutem legados da Semana de 22

Segundo o professor do IEB, o modernismo brasileiro envolveu uma utopia de transformação, que não se concretizou para aqueles artistas e intelectuais da Semana de 22

“Eu creio que [nós], os modernistas da Semana de Arte Moderna, não devemos servir de exemplo a ninguém. Mas podemos servir de lição”. Vinte anos após a semana ter sido realizada e pouco tempo antes de morrer, o escritor Mário de Andrade ofereceu, durante uma palestra, uma visão mais crítica sobre o evento de 1922, que é considerado o marco do modernismo no Brasil e de ruptura com as correntes estéticas vigentes até então.

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Alguns anos depois dessa declaração de Mário, ao ser questionado por um repórter sobre o aniversário de 30 anos do evento, o poeta Manuel Bandeira também fez suas reflexões: “Acho perfeitamente dispensável comemorar o trigésimo aniversário da Semana. Que esperem o centenário. Se no ano de 2022 ainda se lembrarem disso, então sim”.

Passados 100 anos, a Semana de Arte Moderna é lembrada e celebrada em diversos eventos programados em todo o Brasil, mas sua importância vem sendo revisada e seus legados, rediscutidos.

“A Semana de 22 teve um impacto em 1922, no momento em que ela aconteceu. E isso não é uma metáfora, foi literalmente nesse momento”, disse Luiz Armando Bagolin, professor do Instituto de Estudos Brasileiros (IEB) da Universidade de São Paulo (USP) e curador da exposição Era Uma Vez o Moderno, em cartaz no Centro Cultural Fiesp, na capital paulista.

“Todo mundo me pergunta qual é o legado dos modernistas para nós hoje. Mas eles não deixaram legado nenhum”, enfatizou o especialista.

“O que existe são apropriações que fazemos, à nossa época, das obras, do pensamento e do que foi produzido por essa turma. E dentro dessas apropriações que têm sido feitas desde os anos 60, existe também uma revisão crítica dessas posições – o que é absolutamente normal, salutar, bem-vindo, acho que faz parte do que chamamos de recepção histórica. Eles viveram a história deles. Nós vivemos nossa história”, avaliou.

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“O que podemos fazer é recepcionar o que eles fizeram. E a nossa recepção não pode ser apenas passiva, ela tem que ser crítica. A gente tem que pensar para o bem ou para o mal no que eles produziram. E, principalmente: o que vamos fazer 100 anos depois? Essa é a pergunta”, destacou Bagolin.

Segundo o professor do IEB, o modernismo brasileiro envolveu uma utopia de transformação, que não se concretizou para aqueles artistas e intelectuais da Semana de 22.

“O modernismo, em toda parte do mundo, sempre envolveu uma dimensão utópica, que é a perspectiva de converter a realidade social, política e humana em que vivemos para uma realidade maior, por intermédio da arte. E eles não conseguiram”, explicou.

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“Lá, no início dos anos 40, do ponto de vista do Mário de Andrade, não é possível você ser moderno diante de um país que continua tendo tantas desigualdades.”

Em uma carta escrita em 1944, mas nunca enviada a Manuel Bandeira, e que está sendo exibida na exposição Era Uma Vez o Moderno, o escritor Mário de Andrade fala sobre esse desencanto.

“É uma carta que, se você lê na íntegra, é muito tocante. Ela revela um profundo amor do Mário de Andrade pelo Brasil, mas também um profundo desencanto pela situação que o país passava naquele momento. E ele não vê saídas porque antes fazia parte do projeto utópico do moderno: a arte poderia ser uma saída. Agora, nem isso. Nem mais a arte o põe num horizonte possível de saída”, analisou Bagolin.

“Naquele momento, especificamente, que já era o ápice do Estado Novo de [Getúlio] Vargas, o Mário de Andrade acha que, além de ter desigualdades, ainda estamos sob um Estado que é brutal, ultraconservador, que fica alardeando os valores da família, da pátria e de Deus, mas persegue seus cidadãos. Os que discordavam ou tinham outro ponto de vista no início da década de 30 eram perseguidos politicamente. No final do Estado Novo, na fase mais brutal do regime de Getúlio Vargas, as pessoas eram presas. Como é que você pode ser moderno em um lugar assim, em um país assim, em um país que não resolve as necessidades básicas do seu cidadão?”, destacou.

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Literatura

Em termos literários, pensando na apropriação e recepção crítica do trabalho dos modernistas, é possível dizer que essa influência extrapolou fronteiras. Um exemplo é o impacto sobre a produção literária africana, explica a professora de estudos comparados de literaturas de língua portuguesa da Universidade de São Paulo (USP) Vima Lia de Rossi Martin.

“Na verdade, o que acho que vai impactar a produção africana não é exatamente a Semana, mas essa produção poética mais geral”, disse.

Entre os escritores que inspiraram a literatura africana estão Manuel Bandeira, Mário de Andrade e, principalmente, os escritores regionalistas como Jorge Amado, José Lins do Rego e Rachel de Queiroz.

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“O impacto tem a ver com a escrita dos textos, com os temas e com o modo. E aqui penso muito na chamada literatura regionalista mesmo, no impacto da leitura de Vidas Secas [de Graciliano Ramos] por alguns escritores de Cabo Verde que vão, inclusive, identificar uma similaridade climática entre o interior do Nordeste brasileiro e a própria condição das ilhas vulcânicas”, disse.

“Esse exemplo dos textos sobre a seca é bem revelador desse encontro de aspirações de alguns africanos com esse movimento de autores brasileiros que, nos seus projetos literários, optam por discutir aspectos da realidade brasileira, de olhar para populações marginalizadas, de olhar para os retirantes nordestinos”, completou.

O modernismo brasileiro, diz Vima, é fonte de inspiração para a produção literária africana, principalmente a partir da década de 40.

“[O modernismo brasileiro] tem um impacto enorme para os intelectuais e escritores africanos de língua portuguesa – e estou considerando sobretudo Angola, Moçambique e Cabo Verde. No momento de consolidação daquelas literaturas e de afirmação nacionalista desses países, em que as lutas armadas estavam se constituindo e muitos intelectuais estavam travando uma batalha no campo da cultura e da literatura e tentando instituir uma literatura nacionalista, o Brasil foi uma fonte de inspiração enorme para esses intelectuais”, acrescentou.

A professora da USP cita como exemplo um poema escrito pelo poeta Ovídio Martins, de Cabo Verde, no qual ele estabelece um diálogo intertextual com um dos poemas mais conhecidos de Manuel Bandeira, Vou-Me Embora pra Pasárgada.

“O Bandeira publica esse poema em 1930, no livro Libertinagem, e o Ovídio Martins, em 1974, às vésperas da conquista da Independência por Cabo Verde, vai escrever um texto chamado Anti-evasão. Um tema forte do poema do Bandeira é o evasionismo, a ideia de poder ir pra Paságarda, que é esse espaço idílico, de possibilidade de satisfação dos desejos e tal. De poder estar em outro tempo e outro lugar de satisfação, de plenitude”, analisou.

“O Ovídio Martins, num contexto cabo-verdiano de luta pela independência, vai escrever seu Anti-evasão em que, de algum modo, nega essa ideia de sair do espaço – e o espaço considerado é Cabo Verde – e vai reivindicar a possibilidade e o direito de ficar em Cabo Verde para poder lutar pela independência”, explicou.

“Esse é um exemplo muito claro desse diálogo intertextual em que a literatura e a poesia brasileira vão inspirar a produção poética africana de língua portuguesa.”

Para Vima, é possível fazer um paralelo dessa influência do modernismo brasileiro na literatura africana com a Antropofagia, manifesto escrito pelo escritor modernista Oswald de Andrade e que pretendia repensar a questão da dependência cultural do país.

“Acho que, se de um lado os escritores brasileiros foram inspiração para os escritores africanos, a apropriação que os africanos fazem da literatura brasileira não é uma apropriação pacífica. É um gesto criativo, tem a ver sim com a deglutição, com a antropofagia. Então é uma literatura angolana, moçambicana, cabo-verdiana, são-tomense que se dá em diálogo com a literatura brasileira, mas em um diálogo crítico”, afirmou.

“Acho importante enfatizar essa dimensão criativa que se dá por parte de alguns escritores africanos. Não tem nada a ver com assimilação passiva, mas podemos pensar em uma antropofagia, operada em territórios africanos”, analisou a professora.

*Colaboração – Eliane Gonçalves, repórter da Rádio Nacional

(Agência Brasil)

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