realidade distorcida

Por que ‘O Menino do Pijama Listrado’ não é indicado para aprender sobre o Holocausto?

Um relatório do Centro de Educação do Holocausto da University College London alerta que a obra pode ser responsável por “perpetuar uma série de imprecisões e falácias perigosas”

O Centro de Educação do Holocausto da University College London diz que a obra pode perpetuar uma série de imprecisões e falácias perigosas.
(Crédito: Divulgação)

Publicado no ano 2006, ‘O Menino do Pijama Listrado’ vendeu 11 milhões de cópias em todo o mundo. Dois anos depois, o best-seller foi adaptado em uma versão cinematográfica, dirigida por Mark Herman. Uma pesquisa do Centro de Educação do Holocausto da University College London apontou que cerca de 35% dos professores na Inglaterra usam o livro e o longa em suas aulas sobre o genocídio nazista.

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O relatório, repercutido pelo The Guardian, alerta que a obra pode ser responsável por “perpetuar uma série de imprecisões e falácias perigosas”. Mas o que há de tão problemático assim em ‘O Menino do Pijama Listrado’?

Alemães sabiam do Holocausto?

Nas obras, temos Bruno como o personagem principal da narrativa. Jovem alemão filho de um nazista do alto escalão que se muda para perto de um campo de concentração.

No filme, é mostrado que Bruno, um garoto de nove anos, é alheio ao que acontece ao seu redor e parece desconhecer os horrores tramados por Adolf Hitler. No entanto, segundo artigo publicado pelo Holocaust Centre North (HCN), um jovem como Bruno dificilmente escaparia de fazer parte da Juventude Hitlerista.

“As crianças aprenderam que a guerra era algo para se orgulhar, pois significava que a Alemanha se tornaria uma grande potência mais uma vez”, aponta o texto.

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O ideal colocado em Bruno se torna problemático por ajudar a perpetuar que a maioria dos civis alemães desconhecia os eventos dos campos de concentração, o que é uma mentira, visto que muitos deles não só tinham plena consciência do Holocausto como também lucravam com ele.

Cena do filme ‘O Menino do Pijama Listrado’/ Crédito: Divulgação

Afinal, quando os judeus passaram a serem perseguidos, suas propriedades e pertences eram entregues para alemães étnicos. “Uma minoria de civis alemães resistiu à ideologia nazista. As autoridades nazistas reprimiram a resistência ao regime de forma rápida e brutal”, segue o artigo.

Em entrevista exclusiva à equipe do site do Aventuras na História, Marcio Pitliuk, especialista no Brasil sobre o Holocausto e a Segunda Guerra Mundial, via StandWithUs, recorda que a obra é inspirada em um personagem que realmente existiu.

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O filme é baseado numa situação real, apesar de a história ser ficção. O comandante de Auschwitz, Rudolf Hoess, de fato viveu com a esposa e cinco filhos numa casa colada ao muro do campo”, aponta.

Da janela era possível ver o interior de Auschwitz, e quando no seu julgamento perguntaram o que ele dizia aos filhos ao verem aquelas pessoas esqueléticas, morrendo de fome, quase cadáveres, ele respondeu que dizia aos filhos que não eram pessoas, eram ‘Untermensch’”, explica.

O termo, em alemão, significa ‘sub humanos’, que era a maneira como os nazistas se referiam aos judeus. Pitliuk também aponta que, assim como no filme, o cheiro que exalava para a casa “era insuportável” e “a visão era horrível”.

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Uma vítima ‘esquecida’

Do outro lado da narrativa, temos o jovem judeu Shmuel, que Bruno conhece quando explorava os arredores de sua casa. Por motivos óbvios, Shmuel está atrás do arame farpado que impede a fuga de judeus do campo. Eles, porém, acabam se tornando amigos.

Outro problema apontado pelo HCN é que enquanto Bruno se torna um personagem querido para o público, Shmuel é retratado como uma vítima unidimensional; ou seja, ele não possui uma personalidade ou individualidade que leve o público a criar um apreço ou conexão emocional com ele.

Cena do filme ‘O Menino do Pijama Listrado’/ Crédito: Divulgação

Pitliuk conta que, diferente do mostrado no filme, uma relação entre os dois seria algo que jamais aconteceria. “Era impossível uma criança ficar na cerca, eram duplas, eletrificadas, e proibido de se aproximar”.

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“Não havia a menor possibilidade daquela interação. Também não havia ‘tempo livre’ para um bate papo. As crianças, a partir dos 14 anos, eram escravas. As menores, assassinadas na chegada”, explica.

Inverdades e o desfecho

Além de Shmuel, outros judeus são mostrados no filme, mas todos caracterizados como pessoas passivas e incapazes de resistir à crueldade nazista. Mas o Holocaust Centre North recorda que existia uma resistência judaica tanto fora quanto dentro dos campos.

Os Sonderkommando, por exemplo, grupo de prisioneiros judeus, que era obrigado a conduzir pessoas para as câmaras de gás e depois tirar os cadáveres do local, explodiram um crematório, o que vitimou vários guardas.

Por fim, quando Bruno cava um túnel sob o arame para entrar no campo e acaba morrendo numa câmara de gás, o foco emocional do filme fica toda sob a perda do garoto nazista e na dor de sua família, deixando de retratar que as verdadeiras vítimas foram os judeus.

“O livro é bom, a versão cinematográfica que é muito ruim. Ficou muito leve, quase uma água com açúcar de um assunto que não é nada disso. Foge totalmente da realidade e não devia ser usado para educação sobre o Holocausto”, aponta Pitliuk.

Mas quais filmes retratam melhor o período? Marcio Pitliuk diz que muitos como ‘O Filho de Saul’, ‘A lista de Schindler’ e ‘Sobrevivi ao Holocausto’ — documentário que ele produziu e está no Youtube.

“O filme ‘A vida é Bela’ é uma ficção bem romanceada, também impossível, mas o diretor conseguiu construir de tal maneira que a falsidade passa a ser aceita. Ao contrário de ‘O Menino do Pijama Listrado’. Como livros tem de ficções a históricos. ‘A Menina que Roubava Livros’ é ótimo. Já que estamos em ‘O Menino do Pijama Listrado’, vale a pena ler a autobiografia de Rudolf Hoess”, encerra.

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