Por que os talibãs são os donos do tempo?

Os Estados Unidos se retiram derrotados pela rudimentar seita afegã. As causas de um desastre anunciado

Por que os talibãs são os donos do tempo
O exército talibã (Crédito: Paula Bronstein/ Getty Images)

Com aquele provérbio afegão, um negociador dos Talibãs explicou a um enviado americano que eles não deveriam negociar como vencedores, mas como vencidos. “Vocês têm os relógios, mas nós temos o tempo”. Mas por que os talibãs são os donos do tempo?

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Por ter os relógios, mas não o tempo, os Estados Unidos abandonaram milhões de afegãos nas mãos de uma organização retrógrada que, quando governou entre 1996 e 2001, foi mais obscurantista do que o personagem mais sombrio de “O Nome da Rosa”. No romance de Umberto Eco, o bibliotecário cego da Abadia odiava o riso porque o considerava um gesto diabólico. O Talibã aplica o mesmo raciocínio antiaristotélico, mas apenas às mulheres. Por isso proibia que elas rissem em público.

Serão chicoteadas de novo se elas rirem na rua, mostrarem a cara ou saírem sem um parente do sexo masculino ao seu lado? As acusadas de adultério serão apedrejadas e os homossexuais executados mais uma vez?

Se não retomarem essas práticas, não será por causa do acordo que Trump assinou, mas porque finalmente se mantenha na chefia do novo regime Abdul Ghani Baradar, que morava em Doha, onde presidiu um escritório político e chefiou a delegação negociadora do Talibã. É possível que no Catar tenha entendido que não deveriam reeditar o regime psicopata que reinou até 2001, mas sim seguir o modelo das monarquias absolutistas da Península Arábica, que são obscurantistas, mas que, ao invés de comer vidro, interagem e fazem negócios com o mundo.

À China, Paquistão, Rússia e aos reinos árabes convêm apoiar Ghani Baradar ou Abbas Stanekzai, que também passou anos no Catar, sobre outros líderes sem vivência internacional, como Haibatullah Akhunzada, Sarajuddin Haqqani e Mohammad Yaqoob, filho do Mullah Omar.

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Que a remake do Talibã seja “leve” e relegue aqueles que são incapazes de ver além de seus turbantes, depende do que consigam Pequim, Islamabad e Moscou, e já não da potência que não soube lidar com a chave do tempo.

“Em guerras de baixa intensidade, não importa quem ganha mais batalhas, mas quem tem mais tempo. E o Talibã tinha todo o tempo do mundo.”

No Afeganistão, a guerra é o sistema. O movimento militar pashtun faz parte desse sistema. A guerra não o desgasta.

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Os americanos venceram todas as batalhas, mas isso é irrelevante. No Vietnã, eles também venceram as batalhas. Até mesmo a Ofensiva do Tet foi resistida pelos Marines. Mas o tempo pertencia ao Viet Cong.

Essa derrota não se parece com a dos soviéticos no Afeganistão, mas com a dos Marines no Vietnã. Os mujahideen venceram muitas batalhas contra a URSS. Em particular, os guerrilheiros tajiques de Ahmed Shah Massoud, o “Leão do Panshir”.

Havia uma arma fundamental para a vitória nas intrincadas montanhas do Hindu Kush: o míssil Stinger. Esses projéteis antiaéreos com rastreamento infravermelho carregados no ombro foram a arma com a qual os mujahideen, escondidos nas encostas e vales, derrubavam helicópteros Mil Mi-24 como se fossem pombos.

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Quando os americanos começaram a perder a guerra?

Quando George W. Bush, o vice-presidente Cheney, o secretário de Defesa Rumsfeld e o subsecretário Wolfowitz invadiram o Iraque sob justificativas mentirosas. A existência de armas de destruição em massa foi negada pela inspeção do especialista sueco Hans Blix, e a alegada ligação entre Saddam Hussein e a Al Qaeda é negada pelo bom senso: a Al Qaeda é wahhabista e Saddam era baathista; uma vertente islâmica radical e uma ideologia secular árabe: água e óleo.

À invasão desnecessária, somou-se um grave erro: a dissolução do exército iraquiano. Essa força militar obstruía o terrorismo islamista, mas os negligentes Rumsfeld e Wolfowitz ordenaram que Paul Bremer, o cinzento vice-rei que haviam instalado em Bagdá, abolisse o exército.

Isso deixou centenas de milhares de soldados desempregados, e estes passaram a saquear estoques e a vender armas aos grupos terroristas que brotaram como fungos quando o exército desapareceu. O Iraque foi infectado pelas milícias jihadistas, o que desviou energia militar do Afeganistão para o país árabe.

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A invasão de 2001 desmantelou as bases da Al Qaeda, derrubou o regime e encurralou o Talibã em Helmand, mas com a energia absorvida pelo Iraque, os Marines a ofensiva foi mermando e desde 2014 pararam de avançar. Lançavam-se operações aéreas, como a que matou o líder Akhtar Mansour, mas as tropas não mais se deslocavam em busca dos talibãs. E, finalmente, acabaram como uma espécie de polícia municipal de Cabul, Mazar-e Sharif e Jalalabad.

Percebendo que os EUA já não tinham energia política para eliminá-lo, o Talibã começou a avançar. Tão corrupto quanto os governos de Hamid Karzai e Ashraf Ghani, o exército afegão abria o caminho coletando subornos com dinheiro do ópio. Os americanos estavam sozinhos naquele canto da Ásia Central e se guiavam pelos relatórios do ISI, o aparelho de inteligência do Paquistão, o mesmo que havia escondido deles a presença de Osama Bin Laden em Abottabad.

O Paquistão sempre jogou em duas frentes e os americanos nunca sabiam quando estava ajudando eles e quando aos seus inimigos. Na verdade, o Paquistão apoia a sanguinária Rede Haqqani, que realizou os maiores atentados suicidas contra as bases da coalizão e cujo poder colocou Sirajuddin Haqqani, herdeiro da liderança de seu pai, Jalaluddin, na cúpula do Talibã. Com essa informação, Washington fracassou até no cálculo de quanto tempo o Talibã levaria para chegar a Cabul.

“A guerra no Afeganistão começou a ser perdida pelos EUA no Iraque. Só faltava a desonrosa capitulação que Trump aceitou em Doha e que Biden cumpriu de forma desastrosa.”

O presidente sente que está passando o problema para a China. Ele provavelmente pensa que, se quiser completar a seção afegã da sua Rota da Seda e proteger os seus investimentos em mineração, Pequim vai ter que lidar com esse buraco negro. Que a Rússia deverá lidar com ele, se não quiser que o separatismo islamista ressurja na Chechênia, na Inguchétia e no Daguestão.

Também o Paquistão, se não quiser que seus próprios pashtuns queiram unir o Pashtunistão paquistanês com o afegão. E que o Irã deve se encarregar da defesa dos hazaras, grupo étnico afegão que, como os iranianos, fala farsi e pratica o xiismo, pelo qual o Talibã os considera hereges que devem ser exterminados.

A rigor, o Irã deveria agir como o Vietnã quando invadiu o Camboja em 1978 para destruir o regime genocida do Khmer Rouge. Mas não o fará porque os aiatolás estão interessados apenas em influenciar o Oriente Médio e complicar a existência de Israel.

Washington pode ter razões políticas, mas não a razão moral. Trump assinou uma rendição, Biden a implementou e a imagem americana foi metralhada por uma rajada de Kalashnikov disparada pelos donos do tempo.

*Por Claudio Fantini.

*Este texto não reflete, necessariamente, a opinião da Perfil Brasil.

*Texto publicado originalmente no site Notícias, da PERFIL Argentina.

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