Opinião

Angola: corrupção e autoritarismo

*Por Omer Freixa – Historiador africanista e conselheiro do CADAL.

Angola corrupção e autoritarismo
José Eduardo dos Santos morreu em Barcelona em 8 de julho. Ele governou por 38 anos e deixou para trás uma fortuna incalculável (Crédito: Sean Gallup/Getty Images)

A história em várias latitudes africanas se repete no século XX e seus ecos chegam até o presente. Líderes combativos e idealistas, próximos das ideologias libertadoras do passado, tornaram-se depois tiranos em tempos de paz e acumuladores de imensas fortunas, compartilhadas com parentes, e sempre à custa do erário público. José Eduardo dos Santos, mais um do clube, morreu aos 79 anos em uma clínica particular em Barcelona no dia 8 de julho. Internado em estado gravíssimo no final de junho, uma de suas filhas denunciou a possibilidade de ter acontecido um homicídio. De qualquer forma, o apelidado de “arquiteto da paz”, com um governo de 38 anos (1979-2017), foi uma das figuras no poder com maior permanência na história recente do mundo e peça-chave para pavimentar o fim da guerra na nação da África Austral, alcançado em 2002. De promotor de confrontos a construtor de paz, mas a um custo econômico e social elevado.

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A disputa local começou em 1975, logo após a declaração da independência, pois uma vez alcançada esta, seguiu-se a disputa pela distribuição do poder entre as facções angolanas em conflito durante a guerra contra Portugal. Um deles, o Movimento Popular de Libertação da Angola (MPLA), de cunho marxista-leninista e com apoio internacional soviético e cubano, saiu vitorioso, mas seu governo sofreu a resistência do principal grupo inimigo, a União Nacional para a Independência da Angola (Unita), que contava com o apoio central do Apartheid da África do Sul e dos Estados Unidos, até que em 2002 a queda em combate do seu líder Jonas Savimbi sentenciou o fim do confronto. O conflito civil, de uma marcada “guerra quente” inscrita na dinâmica do mundo bipolar, transformou-se numa aventura bélica de pilhagem e uso egoísta dos recursos naturais por todos os atores envolvidos. Desde o primeiro momento o MPLA resistiu. O primeiro presidente, Agostinho Neto, médico, ativista e poeta, morreu em 1979 e foi sucedido pelo segundo, Dos Santos, engenheiro formado no então Azerbaijão soviético e, também como oficial militar, aprendiz de Moscou.

Embora a exploração de petróleo tenha servido em parte para financiar alguma recuperação nacional, com a produção aumentando mais de 17% ao ano entre 2004 e 2008, o país ficou extremamente empobrecido após 2002, de modo que o mais básico, como água potável, precisou ser importado, além da perda de cerca de 1,5 milhão de vidas. Apesar dos dados petrolíferos, no início do presente século, a Angola selou a sua marca, tornando-se o país com a maior mortalidade infantil do mundo, com uma esperança de vida de apenas 38 anos e com 70% dos seus 14 milhões de habitantes a viver abaixo do limite linha de pobreza em 2006. Uma realidade que melhorou anos depois, mas não está longe de ser problemática (32,3% em 2020, Banco Mundial), localizada em uma posição não tão boa no Índice de Desenvolvimento Humano (0, 58, 148/189, ONU 2019), bem como não muito melhor em termos de corrupção (136/180, Transparência Internacional 2021). No entanto, o país sul-africano é rico em recursos naturais, entre os quais se destacam o petróleo (o segundo produtor africano) e os diamantes, em parte sustentadores da continuidade da guerra mas também depredados pela família Dos Santos, que construiu um verdadeiro império económico contra uma nação atolada em taxas de pobreza vergonhosas. A família no poder propiciou o que se pode chamar de “capitalismo predatório”.

Perante o protesto, a resposta oficial foi sempre de silenciar e subjugar a população apesar de basear o discurso dos benefícios do seu governo na retórica socialista e incluir o partido único, como prova de um consenso (ainda que muito questionado fora de portas), há vários anos, até o início da década de 1990, como aconteceu em grande parte da África. Em termos de silenciar a oposição, destacam-se duas repressões em 2011 e 2015. Nesta última, o governo prendeu 17 ativistas de direitos humanos e acusou-os de rebelião. O assédio à imprensa era comum.

O regime de Dos Santos mostra o que os autores e africanistas Chabal e Daloz mostram sobre vários governos africanos, a neopatrimonialização do poder. Ou seja, o presidente angolano agiu de forma tradicional na lógica dos estados africanos pós-coloniais, não disruptivos no sentido do que se poderia entender no Ocidente, ao transformar a “caixa” do Estado numa espécie de prebenda familiar. Segundo o FMI, entre 2007 e 2010, desapareceram pelo menos 32 mil milhões de dólares de receitas petrolíferas, de longe a principal fonte de riqueza para a economia nacional fortemente atingida, que reporta 90% das suas exportações provenientes do petróleo.

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Por exemplo, Isabel Dos Santos, sua filha mais velha, ganhou fama ao ser classificada como a mulher mais rica de África, fruto de um enriquecimento que alega ter sido devido ao seu esforço pessoal e dedicação aos negócios. Isabel, nascida em Baku, capital azeri, conseguiu construir uma herança pessoal que transcende as fronteiras de Angola. Além de ter sido atribuída pelo pai à gestão da Sonangol, a petrolífera nacional, obteve participações em outras empresas locais e da antiga metrópole (sem contar as dezenas de empresas com propriedades em vários outros países, partilhadas com o seu esposo congolês). Em 2014, os ativos da chamada “princesa” e também “DDT” (“dona de tudo isso”), somavam US$ 3,7 bilhões, segundo a Forbes. Em suma, esta mulher fez fortuna através do sistema cleptocrata projetado por seu pai. Com a saída do pai do poder, a empresária passou a ser investigada como o restante da família pela forma suspeita de enriquecimento nos anos no poder do clã dos Santos. Se a sua fortuna pessoal for comparada com o valor acima citado, a “princesa de África” ​​sofreu prejuízos, depois de revelada a sua corrupção, conforme publicado no Luanda Leaks (2020), entre outras queixas e processos locais e internacionais que resultaram no congelamento de bens.

Legado e mudança de endereço?

No início de 2017, José Eduardo anunciou que não seria candidato presidencial naquele ano após mais de 35 anos de governo ininterrupto. No entanto, na ausência de reeleição, o MPLA continua a monopolizar a política angolana após 47 anos. O seu sucessor escolhido a dedo, João Lourenço, triunfou nas eleições por larga margem (61,08%, contra 26,68% da Unita), embora inferior face aos resultados anteriores e às habituais críticas externas sob a acusação de manipulação eleitoral.

Assim que assumiu o cargo, Lourenço, apresentando-se como um campeão da cruzada anticorrupção, prometeu uma mudança de rumo para se distanciar dos passos do presidente cessante. Para tanto, sua política mais importante foi o avanço contra o patrimonialismo da família Dos Santos. Por exemplo, depôs a filha do seu antecessor e do seu meio-irmão, José Filomeno, da direção da Sonangol, sendo investigado e detido por furto de dinheiro ao fundo nacional, pelo qual cumpre pena criminal desde 2019. Fundamental, Lourenço acusou o seu antecessor e a família alegando atos de corrupção de mais de 24 mil milhões de dólares do erário público, verbas desviadas para os cofres da família e que aguardam a sua restituição integral.

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No entanto, Dos Santos não se retirou completamente de cena e continuou a ter peso no MPLA. Na denúncia do suposto assassinato do ex-presidente, durante sua internação no hospital espanhol, suspeita-se do envolvimento do atual presidente. Em suma, as investigações e medidas que recaem sobre os membros da família denunciada, do lado do acusado, são concebidas como exemplos de perseguição política. Tudo muito obscuro numa Angola que procura melhorar, apesar de alguns progressos, mas depois de mais de cinco anos em recessão, com uma seca galopante e uma população bastante cansada.

*Este texto não reflete, necessariamente, a opinião da Perfil Brasil.

*Texto publicado originalmente no site Perfil Argentina.

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