Quem é e o que quer a nova esquerda chilena?

O triunfo da esquerda articulada em torno da Frente Ampla e do Partido Comunista mostrou o peso da geração que se politizou nos protestos estudantis de 2011

Quem é e o que quer a nova esquerda chilena
(Crédito: Marcelo Hernandez/Getty Images)

Em 2016, uma coalizão incipiente abalou a política chilena com uma vitória inesperada no município de Valparaíso. No ano seguinte, embora as previsões eleitorais não fossem auspiciosas, a nova coalizão conseguiu consolidar-se com um resultado surpreendente nas eleições presidenciais e parlamentares (nas quais obteve 20 deputados e um senador).

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A Frente Ampla (FA), cujas lideranças jovens surgiram no calor das mobilizações estudantis de 2011, incluiu uma diversidade de agrupações e partidos de um amplo espectro político e ideológico. Após seu sucesso inicial, abundaram as especulações sobre sua capacidade de continuar a crescer e até mesmo se tornar uma força governante. Os dois primeiros anos da FA foram marcados por rupturas e disputas internas que foram corroendo a sua imagem. Em meio a essas brigas, no final de 2019, o Chile viveu uma explosão social sem precedentes, que levou milhões de pessoas às ruas e fez cair abruptamente a aprovação do governo de Sebastián Piñera, junto com a forte erosão da institucionalidade política construída na transição pós-ditadura. Muitas coisas explicaram essa explosão, mas, sem dúvida, um elemento fundamental foi uma crítica implacável a todos os partidos do sistema político e uma denúncia dos pontos cegos da transição democrática. Inicialmente, parecia que as críticas aos partidos tradicionais podiam se traduzir em apoio às novas organizações da Frente Ampla, mas não foi o caso. Aqueles que haviam impugnado a ordem política anterior eram, dessa vez, os alvos do público.

O golpe mais duro para a nova coalizão veio depois que vários de seus principais líderes colocaram as suas assinaturas e as dos seus partidos num acordo político transversal que autorizava o início de um processo constituinte para canalizar institucionalmente as demandas sociais. Para concretizar esse acordo, foram feitas concessões, como aceitar que os artigos da nova Carta Magna serão aprovados com dois terços da Convenção Constitucional, o que daria mais poder de veto aos setores conservadores.

Alguns na FA viram esta assinatura como uma traição. Uma série de rompimentos reduziu significativamente a presença parlamentar da FA. O último golpe na coalizão ocorreu quando, após a confirmação de sua nova aliança com o Partido Comunista (PC), quatro deputados deixaram a organização. Vários meios de comunicação se apressaram para declarar a sua morte, garantindo que o que restava da FA seria absorvido pela identidade do PC. Começou a se instalar, entre a própria militância da FA, a questão de saber se o seu destino seria ser a primeira coalizão da nova ordem política que começava a nascer com a eclosão social, ou a última de uma ordem decadente.

Contexto

Foi esse o cenário para as eleições de 15 e 16 de novembro, nas quais foram eleitos os membros da Convenção Constitucional, prefeitos e governadores. Vários analistas previram (com base em algumas pesquisas, eleições prévias e projeções) uma eleição sem surpresas, marcada pelo voto dos mesmos eleitores de sempre e que havia dado confortáveis vitórias aos dois principais blocos da política chilena nos últimos 30 anos. De um lado, a coalizão de centro-esquerda, herdeira da Concertação de Partidos pela Democracia que liderou o processo de transição para pôr fim à ditadura de Augusto Pinochet. Do outro lado, a coalizão de direita que se formou originalmente em defesa do legado da ditadura, mas que, ao longo dos anos, havia tentado (com algum sucesso) exorcizar aquela marca de nascença. Os analistas não poderiam ter estado mais enganados.

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O Tribunal Eleitoral sequer terminou de certificar as eleições, mas já está claro que esta eleição constituiu um verdadeiro terremoto para a política nacional. Na Convenção Constitucional, ocorreram o colapso do voto da direita, articulado no bloco Chile Vamos, que levou a cerca de 20% dos votos (em 2017 o atual presidente, Sebastián Piñera, da direita, havia vencido o segundo turno da eleição com 54%), e o colapso na votação da lista tradicional de centro-esquerda (a lista do Apruebo), que inclui o Partido Socialista, os Democratas Cristãos e outras forças de centro-esquerda.

Talvez o exemplo mais notório dessa crise tenha sido o dos democratas-cristãos, que conseguiram eleger apenas um militante de suas fileiras para a Convenção Constitucional (o presidente do partido).

Surpresas

A principal surpresa foi dada pelas centenas de candidatos independentes que conseguiram integrar a convenção. Dos 155 membros da Convenção, 103 não têm militância política. Ao contrário dos dois blocos tradicionais, o recém-lançado bloco de esquerda do PC com a FA conseguiu manter e até aumentar a sua presença, ultrapassando a lista de centro-esquerda (articulada no bloco Apruebo) em número de constituintes.

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No entanto, a maior surpresa ocorreu nas eleições autárquicas que decorreram paralelamente. Nessas eleições, o PC, mas especialmente a FA, conseguiu arrebatar municípios populosos e icônicos da direita.

“De comunas populares até algumas de classe média alta, a proposta dessa coalizão conseguiu angariar um apoio surpreendente.”

Em comunas que incluem prefeituras emblemáticas da direita, como a comuna de Santiago Centro, onde se encontra o “Palácio de la Moneda”, e Maipú, a segunda comuna mais populosa da Região Metropolitana, o triunfo foi inegável. Nessas comunas foram eleitos Irací Hassler, de 30 anos e do PC, e Tomás Vodanovic, também de 30 anos e da FA.

Várias dessas vitórias surpreendem porque ocorrem justamente no espaço municipal. Essas eleições têm sido historicamente marcadas por redes clientelistas e máquinas partidárias consolidadas que dificultam o emplacamento de uma terceira via. Além disso, uma das coisas mais marcantes das vitórias do pacto de esquerda é sua transversalidade em termos socioeconômicos. Das comunas populares dominadas pelas classes trabalhadoras, como Lo Espejo, até aquelas de classe média alta como Ñuñoa, onde Emilia Ríos (32 anos, da FA) conquistou a prefeitura, cobrimos praticamente toda a escala social da capital e nas duas pontas escolheram prefeitos da nova coalizão de esquerda. Mesmo na comuna de Las Condes, residência emblemática das classes altas do país e reduto de votos da direita, uma candidata da Frente Ampla, Isidora Alcalde, conseguiu ser eleita para a câmara municipal.

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Oferta política

As razões para esta chegada massiva aos municípios são diversas. Sem dúvida, uma parte central recai sobre a crise política desencadeada desde a eclosão social de 2019 que se materializou em uma demanda de renovação da política, juntamente com uma profunda desconfiança da política tradicional. Mas, também, parece que há algo na oferta política da coalizão de esquerda que a tornou particularmente atraente neste cenário.

O primeiro elemento que os candidatos municipais vencedores têm em comum é o trabalho territorial e uma carreira ligada às comunas pelas quais competiram. Ativistas locais, vereadores, gestores territoriais dos conselhos, são as experiências que marcam os anos anteriores de todos eles.

Enquanto a mídia e o debate público tinham sido marcados pelas lutas, rupturas e renúncias de porta-vozes nacionais no Parlamento, esses jovens estavam “fazendo a manha”, trabalhando com os conselhos de bairro, organizações de moradores, mídias locais e as diferentes expressões sociais organizadas nessas comunas. Além disso, são todos candidatos que tiveram um cuidado especial em gerar programas participativos com as comunidades que os haviam visto trabalhar nos anos anteriores. Isso explica boa parte de como eles conseguiram neutralizar a lógica clientelista das eleições municipais, dominadas pelos grandes partidos, que funcionava como uma barreira contra desafios externos.

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Jovens, feministas, profissionais

Outro elemento que marca os novos líderes comunitários são os jovens. Em geral, eles têm, como mencionamos, por volta dos 30 anos. Politicamente, é a primeira vez que vários deles assumem um papel de liderança institucional, embora muitos tenham tido experiências no movimento estudantil. Nesse sentido, tem sido fundamental a experiência da mobilização estudantil de 2011. Isso é relativamente óbvio no caso do FA, mas se repete no PC. Os dois novos prefeitos da região metropolitana do PC (Lo Espejo e Santiago Centro) foram dirigentes estudantis da Universidade do Chile. Nesse sentido, as atuais eleições refletem no nível municipal um fenômeno já observado no Parlamento. Trata-se da chegada de uma nova geração de dirigentes, seja na FA ou no PC (o caso mais conhecido é o de Camila Vallejo, também ex-dirigente estudantil da Universidade do Chile).

Junto com sua juventude, é notória a presença de lideranças femininas e feministas. Várias das prefeitas recentemente eleitas tiveram papéis de liderança na maré feminista que surgiu no Chile em 2018 e que conseguiu penetrar profundamente no debate público (a Convenção Constitucional foi eleita com normas de paridade estritas que garantiram a participação igual de homens e mulheres).

“Assim, não é de estranhar que, por exemplo, o slogan da campanha da candidata a prefeita de Ñuñoa, Emilia Ríos, tivesse como foco “trazer o feminismo para o município”.”

Por fim, um aspecto marcante de várias dessas candidaturas de sucesso é que são jovens profissionais, vários formados nas melhores universidades do país. Por um lado, essas candidaturas encarnam o surgimento da nova classe média chilena, marcada pelo acesso massivo à universidade. Por outro lado, também permitiram que candidatos de esquerda, tradicionalmente atacados em espaços locais por sua suposta pouca capacidade de gestão, se mostrassem como uma alternativa de excelência administrativa, diante de casos de ineficiência, inoperância ou franca corrupção nos governos comunais.

Identidade

Por que votaram os que votaram na coalizão FA e PC? Especificamente, uma das questões que se levantam após o resultado eleitoral é qual é essa identidade da FA que, ao contrário do que se previa, esteve longe de ser absorvida na recente coligação com o PC. Aparentemente, os eleitores perceberam uma identidade própria da FA que, ao invés de se diluir na identidade comunista, foi vista como complementar. É uma identidade claramente diferente da de 2017, que era politicamente mais difusa e definida em oposição aos blocos tradicionais. Nesse sentido, a “nova” Frente Ampla tem menos amplitude política, mas maior profundidade social. Além disso, a assinatura do acordo que deu início ao processo constituinte está inevitavelmente associada à sua marca. O que alguns viram como uma desvantagem acabou consolidando uma imagem mais madura da Frente Ampla.

Se o PC assumiu o papel desafiador que antes exercia a FA, esta agora consolida a sua posição crítica, de renovação deste a sociedade organizada, claramente posicionada à esquerda, mas ancorada em um sentido republicano de democracia e diálogo. Tanto é que uma das principais figuras da assinatura do acordo político que possibilitou a Convenção Constitucional, o deputado e ex-dirigente estudantil Gabriel Boric, se tornou sua carta presidencial para as eleições de novembro deste ano.

Papel crucial

Alguns dos que acreditavam que a FA estava morta e enterrada agora atribuem a ela um papel crucial como articulador entre “o novo” e “o velho” na política nacional. Por outro lado, embora este novo FA pareça mais consistente ideologicamente e suas principais lideranças pareçam ter amadurecido no calor das crises e derrotas dos últimos anos, ainda não está claro como enfrentará este novo ciclo político, agora que consolidou a sua posição. Embora tenha começado a emergir um sentido incipiente de militância frenteamplista, antes completamente ausente, as tendências centrífugas e a propensão à rupturas das frágeis instituições partidárias que a compõem ainda persistem.

Será um grande desafio para o conglomerado superar essas tendências, em meio ao turbilhão trazido pela nova cena política chilena. Além disso, por mais que os resultados recentes reflitam um posicionamento relativamente melhor na avaliação que a população faz dessa coalizão, a FA não escapa de boa parte das críticas e denúncias feitas aos partidos e ao sistema político. Nesse sentido, uma questão urgente é como consolidar e integrar as novas forças que vão nascendo da explosão de candidaturas independentes e que têm sido as grandes vencedoras das eleições.

A FA e a nova esquerda chilena ainda estão muito longe de gerar maiorias nacionais consistentes que possam governar o país. Em todo caso, parece que o que a FA de fato ganhou foi a oportunidade de fazer parte do novo capítulo da política chilena. Agora ela terá que mostrar que, além do trabalho territorial e da mobilização eleitoral, é capaz de administrar com sucesso os novos municípios que governa. Os eleitores decidiram lhe dar uma chance para demonstrá-lo, mas não hesitarão em abandoná-los se falharem. Além disso, as eleições parlamentares e presidenciais, que ocorrerão nos próximos meses, serão um termômetro importante de como está consolidada a valorização da FA na opinião popular. Ainda não há certezas a respeito disso. Um conglomerado que demonstrou convicções firmes e corretas pode perfeitamente errar. “A dúvida deve seguir a convicção como uma sombra” é a citação de Albert Camus que Boric tende a parafrasear como um mantra. Um bom resumo do desafio que defronta à renovada esquerda chilena.

*Por Noam Titelman – Economista, Mestre em Métodos de Pesquisa Social pela London School of Economics and Political Science (LSE).

*Texto publicado no site Perfil Argentina e originalmente no “Nueva Sociedad”.

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