No Peru, eleições maculadas pela pós-verdade

Apesar de que a eleição tenha se desenvolvido normalmente e tenha sido aprovada por observadores internacionais, Keiko Fujimori recusa-se a reconhecer a sua derrota e maculou o processo com recursos de anulação

No Peru, eleições maculadas pela pós-verdade
Pedro Castillo (Crédito: Ricardo Moreira/Getty Images)

Com 100% das atas contabilizadas pelo órgão eleitoral, é possível afirmar que Pedro Castillo é o virtual presidente do Peru. O resultado – ainda não proclamado oficialmente – prenuncia um simbólico alinhamento do país andino com os países progressistas da região, já que se espera que o professor rural, de origem humilde e carreira sindical, mude o modelo econômico neoliberal vigente por outro de cunho socialista, tal como prometeu em sua campanha. Mas a ascensão de Castillo, longe de significar o fim da tortuosa instabilidade política que caracteriza o país ao longo das últimas décadas, e de fomentar consensos que permitam encontrar soluções ao somatório das crises que o assediam, é um fato que divide a sociedade peruana e amarra os seus políticos, meios de comunicação e instituições em uma espiral de acusações mútuas e campanhas de desinformação.

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Apesar de que a eleição tenha se desenvolvido normalmente e tenha sido aprovada por observadores internacionais, Keiko Fujimori recusa-se a reconhecer a sua derrota e maculou o processo com recursos de anulação e chamadas à mobilização que buscam suprimir os votos recebidos por Castillo em regiões nas quais ganhou por uma maioria esmagadora. Os reclamos de Fujimori ecoam o roteiro de Donald Trump nos Estados Unidos e são baseadas em conjecturas que já foram desmentidas. Ao todo, 135 pedidos de anulação interpostos por seu partido denunciam erros materiais na contagem dos votos, assinaturas falsas nas atas e o suposto conluio entre parentes que compunham mesas de votação. No entanto, estes foram pronta e publicamente refutados e resolvidos pelos Júris Especiais Eleitorais, que emitiram decisões com absoluta transparência, sendo até mesmo parcialmente transmitidas pela televisão.

No entanto, 810 pedidos de anulação, interpostos fora do prazo estabelecido e, portanto, indeferidos, estão na origem das suspeitas que levanta Fujimori a respeito de uma alegada fraude. Como os analistas políticos alertaram, os números mostram que a vitória de Castillo está estatisticamente consumada. Mas a candidata conseguiu instalar a ideia de que os votos contidos naquelas atas poderiam reverter o resultado da eleição, sem fundamento maior do que a conjectura de uma manipulação sistemática do processo por parte do seu rival. Entre os argumentos citados por seu comitê de campanha está o fracasso em obter um único voto em algumas das mesas eleitorais, resultado que atribuem a um suposto conluio entre órgãos públicos e interesses estrangeiros, ao invés do imenso descontentamento que os cidadãos sentem pelo legado fujimorista, principalmente no sul.

Os esforços dos órgãos eleitorais para desmantelar esses argumentos foram infrutíferos. Como explica o filósofo Lee McIntyre, a pós-verdade, mais do que ao império das mentiras, refere-se a uma situação em que os fatos são ofuscados pelas emoções. Neste caso, emoções despertadas por um personagem que encarna os piores temores de uma sociedade nervosa diante da mudança econômica e social: o fantasma do comunismo.

A propagação de meias-verdades não seria possível sem a cumplicidade da mídia e de personagens alinhados à narrativa imposta por Keiko Fujimori. Entre os primeiros estão os emuladores da Fox News e os tabloides, mas também veículos tradicionais de alcance nacional, como o grupo El Comercio, que mantem uma posição dominante na imprensa escrita e televisiva peruana. As recentes mudanças na direção jornalística do principal canal de sinal aberto, controlado pelo grupo, levaram à renúncia de uma dezena de repórteres em protesto contra as pressões para que apoiassem a candidata Fujimori.

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Figuras políticas ligadas à direita no exterior têm ecoado esta campanha de desinformação, principalmente o escritor e ganhador do Prêmio Nobel de Literatura Mario Vargas Llosa e o ex-presidente colombiano Andrés Pastrana; este último, que apontou sem provas a existência de infiltrados de nacionalidade venezuelana na gestão da informação e do software do tribunal eleitoral do Peru, foi desmentido diretamente pelo órgão em suas redes sociais. Enquanto isso, nas ruas, uma parte da classe alta da capital – pequena em número, mas notoriamente influente – resiste ferozmente à nomeação e saiu para apoiar os reclamos de Fujimori. Personalidades representativas desse movimento, como o deputado eleito e almirante aposentado Jorge Montoya, têm feito apelos para ignorar o resultado final e a legitimidade do virtual presidente que beiram a sedição.

Além do possível desfecho dos acontecimentos, a teimosia dos oponentes de Castillo pressagia um governo marcado pela turbulência. Em 2016, Fujimori perdeu por uma estreita margem de 40.000 votos para Pedro Pablo Kuczynki, o que a levou a instigar um confronto aberto entre os parlamentares de seu partido e o governo eleito, que resultou na sucessiva queda de gabinetes ministeriais e na promoção de uma presidência vaga. Nesta ocasião, tendo perdido por diferença semelhante, os primeiros discursos de Fujimori deram a entender que a luta não vai parar. Embora não tenha uma bancada majoritária, as alianças que vem forjando com outras forças de direita ameaçam bloquear as iniciativas do governo Castillo e, se houver oportunidade, apressar a sua saída do cargo.

O que esperar de um eventual governo de Pedro Castillo? A plataforma que o levou ao governo é extremamente precária. Os radicalismos presentes em seu discurso foram atenuados na última etapa do pleito, em grande parte graças à incorporação de tecnocratas de esquerda, os quais trouxeram de volta à realidade parte das suas propostas, elaborando um novo plano de governo e corrigindo os pontos que suscitavam maiores receios entre os investidores. Mas nada exclui que uma escalada do confronto possa levar Castillo a abraçar novamente posições extremistas.

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O que esperar de seus adversários? No ano do bicentenário da sua independência, o Peru entrou fatalmente na era da pós-verdade. Em tempos de engano universal – argumentava George Orwell – dizer a verdade torna-se um ato revolucionário.

*Por Esteban Valle-Riestra – Cientista político peruano.

*Texto publicado originalmente no site Perfil Argentina.

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