Cuba, do pluralismo social à democracia

A virtualidade permitiu o intercâmbio com outras vozes cubanas, livres da retórica oficial, prevalente naqueles dias no congresso do Partido Comunista

Cuba, do pluralismo social à democracia
Cuba

Por Inés M. Pousadela**

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A plataforma “Cuba en Plural” realizou-se entre os dias 18 e 20 de abril, paralelamente ao VIII Congresso do Partido Comunista Cubano (PCC), sua Primeira Conferência Cidadã, com o objetivo de dar palco às diversas vozes dos cubanos e das cubanas comuns, de dentro e de fora da ilha, geralmente abafadas pelo monótono discurso estatal controlado pelo PCC, único partido com existência autorizada.

Para o Estado cubano, essas vozes não existem: todas as perspectivas e vontades representáveis, ou dignas de serem representadas, encontram representação no Estado ou, o que dá no mesmo, no PCC. Mas na presença de um pluralismo social teimoso, o regime cubano está encontrando cada vez mais dificuldade para impor as suas reivindicações totalitárias. A proliferação de associações e grupos não autorizados, apontaram vários dos participantes das discussões, deixa em evidência o absurdo do conceito mesmo de “partido único”: por definição, um partido só pode representar uma parte; é estruturalmente incapaz de incorporar o todo. A tentativa de condensar o poder, o conhecimento e a lei no partido-Estado, no topo do qual se senta o egocrata, é a própria definição do projeto totalitário. Um projeto caracterizado, como disse um participante, por uma “arrogância fatal” que o inviabiliza: a diversidade só pode ser esmagada com a repressão, e diante da diversidade irredutível, no longo prazo, a repressão está destinada a perder.

Estágios. Cuba entrou há já alguns anos em uma fase pós-totalitária, na qual as vozes proibidas são cada vez mais numerosas, se levantam com força crescente e com menos inibições, e começam a conversar entre si, senão com um regime incapaz de ouvi-las porque continua a negar o seu direito de existir e não consegue compreender o que dizem porque decidiu décadas atrás que os problemas que estas apontam não têm lugar numa sociedade socialista.

Com efeito, a incipiente sociedade civil cubana inclui, entre outros, grupos de mulheres mobilizadas contra a violência de gênero e as desigualdades que emergem de cada fenda de uma sociedade que quer ser socialista, mas não por isso deixou de ser patriarcal, e organizações que trabalham pela justiça racial, em ambos os casos tendo que justificar permanentemente sua existência contra um discurso oficial que simplesmente decretava a eliminação do sexismo e do racismo em virtude de sua simples incompatibilidade lógica com os princípios proclamados pela revolução.

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Justamente, perspectivas feministas muito diversas marcaram presença na discussão sobre gênero e cidadania, uma das seis que compunham o programa. A partir de suas experiências diferentes, destacaram que, em decorrência do não reconhecimento da violência de gênero como problema, o tema é invisibilizado, não são coletadas estatísticas oficiais, nem são elaboradas políticas públicas para combatê-lo.

O feminicídio não está tipificado no Código Penal, não existe uma lei abrangente contra a violência de gênero e não existem abrigos para mulheres em situação de violência. O fardo desse problema não reconhecido recai sobre os ombros da sociedade civil.

Vozes. Essas vozes e muitas outras foram ouvidas na conferência paralela de “Cuba en Plural”, realizada em um espaço virtual transnacional no qual convergiram várias presenças locais – algumas na ilha, outras além das fronteiras e dos oceanos. A atividade foi realizada por Zoom e veiculada no Facebook; as gravações estão disponíveis no canal de YouTube “Cuba en Plural” e constituem uma conversa necessária e por vezes difícil sobre o futuro de Cuba.

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Nem todas essas vozes puderam ser ouvidas ao vivo: na expectativa de que seus serviços de telefone e internet fossem cortados, como de fato aconteceu, vários enviaram vídeos gravados para que os participantes pudessem pelo menos receber seus cumprimentos e conhecer algumas de suas ideias. Waldo Fernández, do “Diário de Cuba”, conseguiu gravar e enviar sua mensagem de um parque wi-fi e com um telefone emprestado, depois de driblar a vigilância que cercava sua casa. Previsivelmente, a mesa dos jornalistas foi a que encontrou mais obstáculos para funcionar, pois todos os convidados residentes na ilha eram jornalistas independentes de renome e, por precaução, os seus dados móveis e acesso ao telefone haviam sido cortados.

Aqueles que foram impedidos de participar brilharam, literalmente, por sua ausência. Talvez ainda mais do que as presenças, as ausências falaram alto da situação do espaço cívico em Cuba.

Liberdades. Ao mesmo tempo físico e virtual, o espaço cívico é estruturado pelas liberdades fundamentais de associação, reunião pacífica e expressão. Por sua natureza, essas liberdades devem ser exercidas em um espaço público de interação, o que não existe em Cuba: uma vez que não se concebe a diferença entre o público e o estatal, todos os espaços supostamente públicos são, na verdade, propriedade do Estado e, em função da identidade partido-Estado, são atravessados de um lado ao outro pela lógica da ideologia oficial.

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Essas liberdades são reconhecidas no Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, que Cuba assinou em 2008, mas ainda não ratificou. A Constituição da República de Cuba, entretanto, não as consagra plenamente. A liberdade de associação é cortada pela raiz no artigo 5º, que designa o PCC – “único, Martista, Fidelista, Marxista e Leninista, vanguarda organizada da nação cubana” – como “a força política dirigente superior da sociedade e do Estado”.

Em coerência com isso, o artigo 6º confere à União dos Jovens Comunistas o status exclusivo de veículo organizador da juventude cubana, e o artigo 14 condiciona o reconhecimento e o incentivo das “organizações de massa e sociais” ao seu compromisso com “as tarefas de construir, consolidar e defender a sociedade socialista ”. A Constituição de 2019 não introduziu mudanças que implicassem em uma redistribuição de poder, o que teria minado o regime desde seus alicerces.

Por outro lado, ao contrário de sua antecessora, a nova Constituição reconhece explicitamente certos direitos, incluindo o acesso à informação (art. 53) e as liberdades de pensamento, consciência e expressão (art. 54), de imprensa (art. 55) e de “assembleia, manifestação e associação, para fins lícitos e pacíficos”(art. 56). No entanto, o fato de que, se implementados na prática, estes direitos se revelariam incompatíveis com a manutenção do regime consagrado pela própria Constituição manifesta-se em várias limitações, imprecisões e contradições. Por exemplo, o artigo 55 da Constituição exige que a liberdade de imprensa seja exercida “de acordo com a lei e os objetivos da sociedade” e estabelece que todos os meios de comunicação são “propriedade socialista de todo o povo”; e o artigo 56 sujeita a liberdade de reunião ao seu exercício respeitoso da “ordem pública” e ao “cumprimento das normas estabelecidas pela lei”. Demais será dizer que apenas são consideradas “de acordo com a lei” as manifestações organizadas por ou em apoio do Estado. O Código Penal impõe multa ou pena de prisão de 1 a 3 meses para quem participar de manifestações que violem as disposições que regulam o exercício do direito de reunião ou “pertença como associado ou afiliado a associação não registrada no cartório correspondente”, e penas consideravelmente mais pesadas para aqueles que promovem ou dirigem tais associações ou organizam as mencionadas manifestações.

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Assim, seja porque a Constituição não as reconhece ou porque as deixa sujeitas a regulamentações posteriores que as restringem, as liberdades cívicas fundamentais não têm vigência efetiva em Cuba. É por isso que o Civicus Monitor, o instrumento de monitoramento do espaço cívico desenvolvido pela rede global da sociedade civil Civicus, classifica seu espaço cívico como “fechado”.

Nesse contexto, ativistas e jornalistas são obrigados a operar na clandestinidade. A maioria das organizações fora da órbita do Estado socialista não conseguem formalizar o seu registro e são consideradas ilegais, motivo pelo qual enfrentam restrições que vão desde dificuldades para abrir contas bancárias, conseguir um local no qual operar ou receber recursos da cooperação internacional até multas, ameaças de fechamento, estigmatização, infiltração, vigilância e assédio. Ativistas e dissidentes são acusados nos termos do artigo 72 do Código Penal, que define como “estado perigoso” “a propensão especial em que se encontra uma pessoa para cometer crimes, demonstrada pela conduta observada em manifesta contradição às normas da moral socialista”. Manifestantes pacíficos são rotineiramente detidos, muitas vezes em antecipação a futuros protestos. Nos últimos anos, as prisões arbitrárias por períodos curtos tornaram-se a tática de intimidação predominante. As barreiras à comunicação internacional também foram intensificadas, com a proibição de viagens de ativistas ao exterior e a imposição de represálias para interagir com instituições de direitos humanos da ONU e do sistema interamericano.

Da mesma forma, as mídias independentes não possuem personalidade jurídica e as suas publicações são classificadas como “propaganda inimiga”. A caracterização de jornalistas e blogueiros como “contrarrevolucionários” incentiva a censura e incentiva a autocensura. No entanto, a mídia e os jornalistas recorrem a formas criativas de divulgar seus produtos, enquanto seus usuários acham jeitos de maximizar a sua limitada conectividade e acessar anonimamente sites bloqueados.

Delação. A dissidência é perseguida não apenas pelas forças de segurança do Estado, mas também por cidadãos organizados em grupos vizinhais de vigilância, os Comitês para a Defesa da Revolução. A função dessas organizações é vigiar, denunciar e punir por meio de “atos de repúdio” supostamente espontâneos o “comportamento antissocial”, ou seja, as atividades de oposição.

No entanto, segundo insistiram alguns participantes dos diálogos de “Cuba en Plural”, essa prática delatória é cada vez mais minoritária; entre a maioria da população cubana predominam a apatia e a tendência de continuar com os rituais exigidos com pouca ou nenhuma convicção, algo típico da fase pós-totalitária, enquanto existe uma minoria cada vez mais numerosa de cidadãos que observam com aprovação os atos de rebeldia e até se atrevem, ocasionalmente, a participar deles.

Diversas formas de organização, expressão e mobilização proliferaram apesar das restrições, desencadeando um processo que – ouviu-se afirmar com otimismo – é imparável, porque as pessoas de carne e osso não são os seres unidimensionais que o Estado totalitário pressupõe: elas têm, nas palavras do escritor e jornalista Boris González Arenas, identidades múltiplas e complexas que desafiam a lógica simplista da ideologia. É possível discutir, como foi levantado no decorrer dos debates, se a mudança virá da oposição política ou da sociedade civil – há muitos que consideram a primeira desorganizada e desorientada, e apostam na segunda – mas há poucas dúvidas de que a mudança ocorrerá.

Para abrir o caminho e, sobretudo, “evitar a substituição de um ditador por outro”, argumentaram vários, é necessário “preparar os cidadãos para a democracia”, tarefa que caberia como uma luva às organizações da sociedade civil, tradicionalmente caracterizadas como escolas de cidadania. No decorrer das conversas, enormes diferenças se manifestaram em relação à caracterização da democracia por vir, mas se houve um consenso, foi que ela não nascerá senão da deliberação coletiva, e que para isso é necessário que fóruns como “Cuba en Plural” sejam ampliados, aprofundados e multiplicados.

*Texto publicado originalmente no site Perfil Argentina

** Especialista de pesquisa sênior na Civicus e conselheira acadêmica em www.cadal.org

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