México: uma votação sem sucesso

Andrés Manuel López Obrador convocou um referendo para julgar os ex-presidentes. A baixa participação mostrou que a consulta foi acompanhada apenas pelo núcleo duro do partido no poder. Perdeu-se, assim, a oportunidade de realizar uma verdadeira vindicação coletiva

México uma votação sem sucesso
Mulher votando durante referendo para colocar cinco ex-presidentes em julgamento em 1º de agosto de 2021 na Cidade do México, México (Crédito: Fred Ramos/ Getty Images)

Em 1º de agosto, no México, a população foi convocada às urnas, o governo de Andrés Manuel López Obrador promoveu uma consulta popular para processar os ex-presidentes do país, mas não houve sucesso nessa votação. No entanto, apenas 6,5 milhões de pessoas, menos de 8% do eleitorado, foram votar. Os que compareceram às urnas falaram quase unanimemente a favor do julgamento dos ex-líderes do Partido Revolucionário Institucional (PRI) e do Partido da Ação Nacional (PAN) que governaram nas últimas três décadas: Carlos Salinas (1988-1994), Ernesto Zedillo (1994-2000), Vicente Fox (2000-2006), Felipe Calderón (2006-2012) e Enrique Peña Nieto (2012-2018).

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Foi uma votação massiva, mas que permanece bem abaixo dos 40% necessários para que a consulta popular seja vinculante. Isso explica a razão pela qual foi lida como uma derrota para o obradorismo, embora os obradoristas ainda a considerem um sucesso. Mas enquanto os milhões que foram às urnas mostraram que há sensibilidade em relação à impunidade e a justiça, e vontade de participar, faltou muito para que o episódio pudesse ser considerado um triunfo do governo. O baixo comparecimento eleitoral e as interferências que viciaram o processo de exercício democrático indicam isso.

A ambiguidade da proposta inicial foi colocada, desde o início, em uma linha tênue entre legitimidade e legalidade, pois sugeria a possibilidade de reverter a impunidade por meio de um julgamento político (uma Comissão da Verdade ou um Tribunal Popular), mas também a de abrir o caminho para “liberar” ações judiciais que, caso tenham amparo jurídico, deveriam ser encaminhadas de ofício, sem a necessidade de referendo. Desde o início, a consulta pode ser lida, alternativamente, como uma forma de “justicialismo” simbólico ou como uma tentativa de legitimar nas urnas o recurso à legalidade. Ambas as leituras são reveladoras da real condição e das percepções do Estado de Direito que impera no México.

Por outro lado, diversos poderes – institucionais e fáticos – dificultaram o processo. O Supremo Tribunal Federal adiou a data para que não coincidisse com as “eleições de meio de mandato de junho passado, ao mesmo tempo em que modificou a redação da pergunta, tornando-a mais abstrata e confusa. A última redação perguntava: “Concorda ou não que sejam realizadas as ações pertinentes de acordo com o marco constitucional e legal, para instaurar um processo de esclarecimento das decisões políticas tomadas nos últimos anos pelos atores políticos, visando garantir a justiça e os direitos das possíveis vítimas?”.

Por sua vez, o Instituto Nacional Eleitoral (INE) não incentivou a participação nas urnas, alegando falta de recursos, ao mesmo tempo em que travou a campanha dos promotores. O partido majoritário, Movimento de Regeneração Nacional (Morena), aceitou a mudança da data e da pergunta de forma a não atrasar o processo e, sem convicção, com o desgaste da eleição de meio de mandato a reboque, convocou a votação, mas sem saber ou querer mobilizar para além da própria inércia de uma máquina eleitoral tradicional.

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A consulta foi, afinal, mais uma oportunidade perdida do Morena para alcançar um papel de liderança e não aparecer como uma simples emanação do carisma presidencial ou uma agência de distribuição de quadros e funcionários nos diferentes âmbitos de representação ou da administração pública. Por sua vez, o presidente López Obrador não quis se envolver na disputa para proteger a sua figura institucional (tanto que nem votou), apesar de que o assunto do julgamento dos ex-presidentes tenha emanado diretamente de sua caracterização do neoliberalismo como corrupção e espoliação do setor público pelo que ele chama “a máfia do poder”. Por último, a investida da imprensa de oposição e do exército de “opinólogos e comentocratas” que são as vozes – e fazem as vezes – de uma oposição partidária desacreditada, sem projeto, lideranças ou bases organizadas, fez a sua parte, desqualificando o processo e apelando à abstenção.

Nessas condições adversas, a grande maioria da população não votou por preguiça ou desinteresse, porque serem contrários à “Quarta Transformação” ou porque se decepcionaram com três anos de malabarismo conservador-progressista. Os quase sete milhões que foram às urnas, descontando o décimo que votou contra, correspondem o núcleo duro do obradorismo, tanto o ideológico como o clientelista, ao qual devemos somar aqueles setores progressistas e de esquerda, ativos e conscientes, mais ou menos (des)organizados, que não pertencem organicamente ao campo obradorista, mas que fizeram parte das lutas antineoliberais das últimas décadas e das que estão em curso.

Surpreendente, neste sentido, tem sido o apelo ao voto do Exército Zapatista de Libertação Nacional (EZLN), bem como de outras organizações mais ou menos independentes do obradorismo, em particular aquelas que foram vítimas da repressão ou que representam setores afetados pelas decisões políticas do governo. Também foi manifesta a participação espontânea de muitos cidadãos que viveram e sofreram os sexênios dos presidentes anteriores, sentindo-se lesados em suas crenças e em suas condições de existência.

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Para além da pequena política, dois sentidos profundos da consulta nos permitem comparar o que quis ser e o que parcialmente foi, deixando a sensação de um exercício fracassado. O resultado final é que se tratava de uma vindicação coletiva necessária. A sua forma implicava a abertura de uma instância institucional de democracia participativa.

A consulta popular sobre o julgamento dos ex-presidentes queria e podia ser o ato de abertura de um processo de reparação. Com efeito, a memória coletiva registra três décadas de história nacional marcadas por uma série infindável de decepções que um notório intelectual operário, Pedro Miguel, tentou elencar em um artigo no La Jornada. Todos os que fizeram (fizemos) parte desta história de abusos de poder e de expropriação do público, e das resistências e lutas que lhes corresponderam, sentiram-se chamados por uma consulta que procurava reverter a impunidade dos responsáveis e sofreram as ingerências que finalmente a fizeram descarrilar.

Em um país presidencialista em que a concentração real e simbólica do poder em uma figura unipessoal sexenal faz parte do ritual constitutivo do poder estatal, o ódio aos ex-presidentes faz parte de sentimentos políticos difusos e persistentes. Isso não deixa de distorcer a percepção da real conformação do poder político, o arcabouço tecnocrático e partidário, o entramado com os poderes fáticos. Vale a ironia da história que, no discurso obradorista que acompanhou a consulta, Salinas foi acusado da fraude de 1988 pela qual acabou eleito, sem considerar que, na sua realização, teve um papel de protagonista o então Secretário de Governo, Manuel Bartlett, hoje aliado de López Obrador e membro de seu governo.

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Em todo caso, o resultado da consulta, para além do triunfalismo de López Obrador – para quem tudo é sempre um sucesso – trunca o caminho institucional de uma possível vindicação coletiva ao minar a legitimidade do caminho propriamente judicial que visava desfazer os entraves que garantem a impunidade dos ex-presidentes. Ao mesmo tempo, é evidente que os milhões que foram votar demonstram a existência e o peso de um sentimento difuso e de uma vontade política que seriam mais do que suficientes para justificar a abertura de um exercício de memória coletiva e de julgamento político.

Por outro lado, a consulta popular representava a inauguração de uma forma de democracia participativa que havia tido os seus antecedentes mais relevantes em algumas convocações massivas de agenda anti-neoliberal na segunda metade da década de 1990, promovidas e realizadas por movimentos sociais e partidos de oposição: o zapatismo, que fez desse formato uma prática recorrente e distintiva, mas também o movimento universitário da Universidade Nacional Autônoma do México (UNAM) em 1999-2000 e o mesmo Partido da Revolução Democrática (PRD), então encabeçado por López Obrador, contra a dívida contraída pelo governo Zedillo, numa consulta em que votaram três milhões de pessoas.

Por outro lado, deve-se destacar que, na atual retórica obradorista, a ideia geral de democracia participativa parece se confundir com o simples instrumento de consulta popular, sem considerar outras práticas como, por exemplo, o orçamento participativo (reduzido atualmente a micro-práticas hiperburocratizadas na Cidade do México), a democratização dos espaços de trabalho e educacionais, a participação das assembleias comunitárias ou territoriais e o reconhecimento das dinâmicas organizacionais autônomas como formas de participação e democracia direta. Assim, como resposta imediata à decepção quanto aos resultados da consulta, o obradorismo, após o ritual triunfalista, se projetou para frente. López Obrador declarou que, por ocasião da consulta de revogação de mandato agendada para março de 2022, a participação será massiva, e o dirigente nacional do Morena, Mario Delgado, propôs legislar sobre esta modalidade específica e não, por exemplo, modificar a lei de consultas vigente, que foi elaborada durante o sexênio de Peña Nieto. Além da abertura de outras formas de democracia participativa, a próxima convocação, ligada à continuidade da figura unipessoal do presidente em exercício, inevitavelmente tingirá com uma lógica plebiscitária o uso incipiente do referendo. Concluindo, uma consulta que podia ser um importante ato político, sinal de uma virada significativa, ainda que limitada e relativa, no que diz respeito ao histórico de agravos e impunidade das últimas três décadas e de abertura de novas formas de participação política, resultou, por um conjunto de fatores e responsabilidades que incluem os próprios promotores, num exercício fracassado que corre o risco de criar um precedente negativo e inibir o desenvolvimento de futuras consultas populares não estritamente plebiscitárias.

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*Por Massimo Modonesi – Historiador e sociólogo; professor titular da Faculdade de Ciências Políticas e Sociais da Universidade Nacional Autônoma do México (UNAM) e diretor da revista Memória, do Centro de Estudios do Movimento Obrero y Socialista. Originalmente publicado por Nueva Sociedad (nuso.org).

*Este texto não reflete, necessariamente, a opinião da Perfil Brasil.

*Texto publicado originalmente no site Perfil Argentina.

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